Gizêlda Nascimento, no texto “Grande mães, reais senhoras”, diz que a experiência da escravidão de ontem e os processos de desamparo social de hoje favoreceram a formação de famílias negras fora dos padrões burgueses, idealizados em torno da família patriarcal nuclear. A função do cuidado nesse modelo recai sobre as mulheres. Ao contrário, afirma Gizêlda que nosso modelo familiar é o extensivo, em que a figura materna se reduplica, migrando para várias mulheres e de forma concomitante. Nas palavras da autora, há sempre a presença de uma irmã mais velha, tia madrinha ou mesmo vizinha pra exercer a função do cuidado. Isso não significa que os homens estejam excluídos. Entretanto, muitas vezes, nós, pessoas pretas intoxicadas pelos modelos burgueses dominantes, às vezes não percebemos a potência daquilo que está tão próximo, ou seja, a riqueza de ter várias pessoas que se ocupam do cuidado.
Além disso, a necessidade de cuidado mútuo faz com que a figura materna agregue pessoas para que os laços de solidariedade não se afrouxem. Nesse modelo, os vínculos não se estabelecem somente pelo pertencimento sanguíneo. Nas nossas casas há sempre um agregado. Lá na rua onde cresci no interior do Estado do Rio de Janeiro, Bonito era a pessoa que recebia cuidados de várias famílias. Todo mundo se sentia responsável por ele. O pouco que tínhamos não nos impedia de repartir.
Voltando falar de minha mãe, ela, como inúmeras mulheres negras e pobres, a fim de não tomar pra si as culpas burguesas e judaico-cristãs em torno da figura materna, foi desenvolvendo um senso de auto-cuidado.
Ela que é mãe-de-santo, e sempre teve muita gente pra cuidar, foi nos ensinando que não éramos o centro de tudo. Sim, ocupávamos um lugar especial, mas esse espaço não era exclusivo. Certamente, minha mãe deixou de fazer muita coisa no exercício da maternidade, mas isso não se traduziu na ladainha da abnegação. Por vezes, com razão, nos cobrava reconhecimento pela sua trajetória de luta, mas nunca um altar.
Hoje percebo que ela, ao seu modo, dizia por meio de suas ações que o amor deve ser algo que nos liberta das cobranças e culpas mútuas.
Em meu processo de aprendizado dessa forma potente de amar, não posso deixar de mencionar minhas irmãs, minha avó, amigas e a vizinha Dona Leda. Santas? Nem pensar. Chega ser ofensivo associar mulheres tão integradas com a vida à uma imagem que evoca sublimação. Agradeço muitíssimo todas elas que, junto com minha mãe, formaram um círculo de ternura ao meu redor. Por conta disso, quando caminho nas marchas de luta promovidas pelas mulheres negras desejo, além de denunciar as múltiplas formas de mortes e violências que assombram nossos corpos, celebrar a vida de inúmeras mulheres que transformam o cuidado de si e do outro numa atitude política.
Um tipo de amor que nos permite voar.
Referências
Para mais detalhes sobre as especificidade da maternidade para mulheres negras ver: NASCIMENTO. Gizêlda Melo. Grandes Mães, reais senhoras. In: NASCIMENTO, Elisa Larkin (org). Guerreiras de Natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008, p. 49-63
Sobre a dimensão política do cuidado ver: FOUCAULT. Michel. A ética do cuidado de si como prática da liberdade. In: Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010 b, p. 264-287.
Imagem destacada: Debora Britto e Taísa Agatha, por Nathalia Cavalcanti.