Na segunda-feira, 2 de Abril, milhares de pessoas foram as ruas de diversos lugares do mundo como parte da campanha pela investigação das mortes de “Marielle Franco e Anderson Gomes – por justiça e democracia”. Entendo que cada ação que envolve dar visibilidade à sua história tem muita relevância para a luta do povo preto e pobre. Acontece que tenho discordância com os aspectos que tem justificado o chamado às mobilizações por parte da esquerda tradicional e àqueles que acompanham o seu discurso, em torno do tema. E quero com esse texto trazer essas divergências à público, entendendo que ainda é possível algum diálogo com este campo político.
Começo explicando que estou chamando de esquerda tradicional os partidos, sindicatos (conselhos e similares) e o movimento estudantil (principalmente o universitário). Considero como um problema que estas entidades ainda conservem forte influência “metodológica” do Marxismo europeu, e que sejam majoritariamente dirigidas por uma classe média branca, ou embranquecida. Estas organizações estão no cerne da disputa estatal, com alguma (ou muita) estrutura material/financeira, e capacidade legal de mobilização de um contingente expressivo da população trabalhadora.
Ao que me parece, a partir dos textos que que abordam as mortes da ex-vereadora do Psol, e seu motorista, o ocorrido é considerado como um fato conjuntural por esta esquerda. E é centralmente a partir desta perspectiva, que se desenvolve o chamado à mobilização por justiça. Mas, emboscadas em torno de militantes populares, com envolvimento de vida prática pela sobrevivência de setores mais explorados da classe trabalhadora não é novidade. Tão pouco, mulheres pretas, faveladas e LGBTs começaram a morrer a partir do crescimento notório do fascismo. Então, o que muda no caso de Marielle Franco, e por consequência, Anderson Gomes? Do meu ponto de vista, à reação desta esquerda tradicional é que é conjuntural, e em certa medida, oportunista, apesar de oportuna.
Marielle Franco e o debate racial dentro da esquerda tradicional
Marielle era uma exceção à regra do que se vê na política institucionalizada. Além da sua origem e identidade, a luta pautada por Marielle, contraditoriamente nunca foi centralidade dentro da esquerda tradicional, apesar de tratar diretamente e, literalmente, com a defesa do direito à vida. Engessada na perspectiva do Manifesto Comunista, essa esquerda tradicional tem centrado seus esforços em mobilizar o “proletariado” a partir do seu lugar de trabalho, através de pautas economicistas e corporativistas. Ela ainda não aceita que a grande maioria da população mais explorada já conhece a reforma trabalhista há tempos. Que antes de chegar no trabalho, está lutando também para não ser morta no trajeto, não ter seus filhos mortos pela “guerra às drogas”, ou cooptados pelo vício ou pelo tráfico.
E é aí, na essência da luta por sobrevivência que a militância preta, afora da esquerda tradicional, tem empenhado seus esforços. São nas ongs, movimentos populares, projetos voluntários e na maioria das vezes com muito custo emocional, material e até familiar que estão lidando estes e estas ativistas. É verdade que dentro da esquerda tradicional existem pretos e pretas na resistência, à exemplo de Douglas Belchior, Sandra Muñoz, e da própria Marielle Franco, dentre outres porquem tenho muita admiração e respeito. Mas apesar de atuarem “em peso na política popular, seguem subrepresentados”. É o que também afirma a socióloga Flávia Rios (UFF), em entrevista ao portal “Global Voicess” (link no final).
Isso acontece porque a branquitude que compõe e dirige majoritariamente essa esquerda tradicional, tem em sua construção identitária o direito a fala, e mais do que isso: A Verdade, a razão! Ela que desde sempre fora incentivada ao aprendizado e reflexão à partir das quatro paredes, com esporte, educação, lazer, com métodos bem definidos e muita proteção, sempre pode “esperar que o Estado cumprisse o seu dever”, porque na verdade, quase nunca precisou do Estado. Nestas condições, a luta racial tem sido bandeira de agitação, objeto de estudo e produtora de mártires como Cláudia, Amarildo, Rafael Braga e agora Marielle. Mas os nossos métodos, forjados na resistência e no apoio comunitário, desde Palmares, aos movimentos como “Maré vive”, “Mães de Maio”, “Slam da Perifa”, “Reaja ou será morto, Reaja ou será morta”, dentre outros, recebem no máximo um tapinha nas costas a cada atividade pública, para depois ser taxada de espontaneísta e filantrópica.
O candidado fascista: entre o símbolo do extermínio e da salvação
Não tenho dúvida, assim como todo ativista de esquerda, que o “O candidato fascista” líder nas pesquisas eleitorais como representação da direita é também a representação material da execução de Marielle. Mas essa não é uma visão unanime na sociedade, pois este indivíduo é um personagem que transita entre o símbolo do extermínio e da salvação do Brasil. Do meu ponto de vista, isso também tem relação com essa escolha metodológica e equivocada da esquerda tradicional.
Apesar de reivindicar a violência como estratégia de defesa, do “cidadão de bem” de poder de consumo mais elevado, esse candidato tem como principal carta na manga a defesa da moral cristã. Esta moral é acompanhada de práticas que a esquerda tradicional, não apenas negligencia, como até chega a criminalizar. E vou citar apenas alguns exemplos, partindo dos mais simples, aos mais complexos: 1. As igrejas geralmente se preocupam com o envolvimento das crianças nas atividades que desenvolve; 2. Elas se “articulam” com o Estado, a fim de promover serviços básicos, como educação, saúde, saneamento, alimentação e lazer; 3. São a principal alternativa de atendimento à família de jovens com dependência química e se preocupam em levar a “palavra de salvação e acolhimento” à população carcerária; e vou parar por aqui.
Enquanto essa igreja se prolifera, levando serviços questionáveis, junto com um projeto ideológico, para quem não tem nada. A esquerda tradicional continua esperando que o Estado cumpra o seu dever. Comemorando migalhas, em meio à enormes retrocessos, e afastada cada vez mais do apoio e compreensão de grande grosso da classe trabalhadora. E é nesse vácuo que “O fascista” se cresce. E ainda que este não seja uma opção levada a sério pelos partidos de direita, a sua expressividade cumpre um papel ideológico que ameaça tudo que represente ideias progressista, mas mantêm no centro da mira, o povo preto, pobre e periférico
A resistência preta segue e precisa sair da agitação para centralidade das lutas
A pauta racial, assim como a pauta das demais opressões tem ganhado expressão, visibilidade e representatividade nos últimos anos, por um somatório de fatores. É verdade que as políticas públicas, como as cotas raciais, a lei maria da penha, o casamento entre homossexuais cumpre importante papel nesse sentido. Mas ao contrário do que alguns defendem, não acredito que essas conquistas sejam fruto de benesses de governos populares, mas respostas conjunturais, oportunas e necessárias, à demandas históricas, pelas quais, estes setores nunca deixaram de lutar.
Nós, povo preto, aprendemos na solidariedade, no encontro nas ruas, na transmissão de conhecimento através da oralidade, na regiligiosidade e na cultura, à fazer política. Nós resistimos mil vezes mais, e recriamos os nossos espaços, por fora desta institucionalidade. Porque lutamos cotidianamente para sobreviver. Mas sabemos que isso não é suficiente, porque continuamos sendo à maioria das vítimas em toda e qualquer estatística que se estude.
Neste sentido, acredito que a luta por justiça à morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, não pode mais se limitar à uma bandeira de agitação contra um contexto de ameaça de um “Golpe Fascista”. A esquerda tradicional precisa abrir mão do seu pensamento branco, que coloca #ForaTemer no centro da luta, e reivindicar de verdade que #paremdenosmatar. O golpe que ameaça essa esquerda das quatro paredes não é a razão da morte de Marielle. A intervenção acontece todos os dias contra o nosso povo, desde os capitães do mato, a invasão do Haiti, e cada UPP e projeto semelhante que ocupa às favelas do nosso país.
Marielle, mulher preta, favelada, LGBT, foi a quinta vereadora mais votada, pela sua trajetória de luta junto ao povo preto. Sua morte arrasta multidões às ruas, pela sua representatividade. Não se apropriem dessa luta para construir mais um mártir, e distorcer o foco do seu legado. Parem de silenciar cotidianamente as Marielles que ainda resistem na luta, e aprendam com o que o povo preto tem a ensinar!
vale muito à pena ler aqui
#paremdenosmatar!