A resposta é bem simples: não. Pelo menos não como nos EUA. O colorismo, ou colorstruck, ou pigmentocracia é um tipo de racismo intrarracial, ou seja, entre sujeitos de um mesmo grupo racial nos EUA. Lá, a comunidade negra acredita que haja um negro ideal, um fenótipo específico para o afroamericano, e esse ideal não tem a pele nem muito escura, nem muito clara. Estudos dos anos1970 mostram que “Black is Beautiful” não conseguiu reverter a ideia de pele mais clara era mais bonita. Estudantes de tonalidades mais escuras, assim como de pele mais clara tinham, segundo o estudo de Holtzman, autoestima mais baixa que os que se declaravam pertencentes à denominação “médio”. Apesar de todo o esforço do movimento Black Power, “Black is Beautiful” voltou a ser “Brown is Beautiful”
A gente pode dizer sem medo que a comunidade negra brasileira não tem essa “preferência”, e que ser negro, ou melhor, não ser branco no Brasil, não é bom pra ninguém, não importa qual a tonalidade da pele. Aqui tem porrada para preto, marrom e beige, como alguns puristas raciais insistem em nos chamar nas redes sociais.
Ou deveríamos dizer, por enquanto? Pois, se essa moda de se achar gringo pega, (e a gente começar a comprar cada vez mais esse discurso de que: uns são pretos, mas outros são mais), a coisa vai acabar ficando bem branca no nosso meio. Já que essa conversa separatista que vem usando a desculpa de “colorismo” para destilar rancores em pessoas com tonalidade de pele mais clara dentro da comunidade negra, não passa disso: fantasias brancas.
Durante o século XIX, em parte do Sul dos EUA, um grupo de negros de pele mais clara, filhos de escravas engravidadas pelos seus senhores, tinha maior poder aquisitivo e melhor escolaridade que negros de pele mais escura. Nesse grupo o número de libertos, ou livres, também era maior. Isso pode esclarecer por que eles tinham maior acesso à escolaridade e, por consequência, melhores chances de aumentar o seu poder aquisitivo. Também é importante ressaltar, que havia um grupo de pessoas negras mais claras que não se encaixava nessa descrição; elas continuavam tão pobres e tinham tão pouco acesso à escola quanto os de pele mais escura. A ideia, porém, de que ser claro era o caminho para melhorar suas condições de vida ficou na memória da comunidade negra estadunidense.
A tese de embranquecer totalmente como solução, como foi proposta e internalizada no Brasil, teria dado certo também nos EUA, se lá não existisse a noção (e por muito tempo lei) de que uma única gota de sangue negro serviria para enegrecer (quase) toda a descendência de uma pessoa. E é por isso que, nos EUA, pessoas que no Brasil seriam entendidas como brancas, podem ser declaradas e serão entendidas como negras. Mesmo tendo pele tão clara como a de uma pessoa branca, olhos azuis e cabelos loiros. Então, quando lemos pele clara versus pele escura no contexto estadunidense, podemos estar, na verdade, falando de branco versus negro no entendimento brasileiro. Essa observação me levou a fazer um paralelo entre o discurso colorista estadunidense e o racismo em famílias miscigenadas no Brasil. Baseada nisso eu escrevi um texto sobre o assunto aqui no Blogueiras Negras, texto no qual vejo hoje muitos pontos problemáticos.
Ao contrário dos EUA, no Brasil nunca houve a proibição da união entre pessoas de grupos raciais distintos. Muito menos foi tabu dentro da comunidade negra, ser negro, lutar pelos direitos da população negra e se unir amorosamente com uma pessoa branca. O problema é que essas uniões, ainda que baseadas “no amor”, não conseguem dissipar o racismo, não importa em que forma: internalizado, reproduzido ou imposto. É nessas relações familiares (não só a família-núcleo, as relações mais distantes também contam) que surgem os conflitos e o imperativo de um embranquecimento que em nada difere do discurso racista do resto da sociedade brasileira. O que chamamos de colorismo, seria então nada mais que a impossibilidade de garantir um espaço em que o racismo da nossa sociedade não fosse reproduzido. A gente sabe que o racismo também é internalizado e reproduzido em famílias onde todos os membros têm pele escura. Para entender melhor essas relações, seus desdobramentos e conflitos, recomendo o documentário “Preto contra Branco” de Wagner Morales, e que pode ser visto na plataforma YouTube.
O racismo internalizado pelos afroamericanos os levou a pensar que afroamericanos com a pele mais clara teriam vantagens, melhores chances, privilégios, termo que parece não pode faltar numa discussão sobre colorismo e que é, aliás, totalmente equivocado. Fazendo um mea culpa, tenho que admitir que também já caí nessa conversa de que o racismo cordial, que nega a nossa negritude pudesse ser talvez algum privilégio, como se somente o racismo escancarado doesse, violentasse ou matasse. E como se pessoas negras de pele mais clara não sofressem nunca ataques racistas violentos. O “privilégio” com o qual supostamente as pessoas pardas no Brasil são agraciadas, infelizmente, não é a prova de balas, muito menos as livra da pobreza ou da prisão.
bell hooks fala sobre colorismo no livro “Rock My Soul: Black People and Self-Esteem” e liga, em primeiro lugar, negros de pele mais clara ao estupro em massa das mulheres africanas escravizadas, o que não pode ser negado. A explicação, porém, de que a hipervalorizarão dessas crianças teria sido desencadeada pela necessidade das mães em ressignificar o fruto de um estupro me parece mais do que absurda. Mas nós chegamos a um ponto muito importante e que sempre retorna nessas discussões sobre cores, tonalidades e complexos raciais: a impureza da nossa existência parda. Nesses discursos, somos ora o resultado do estupro, uma bastardidade quase ancestral, ora o resultado da “traição da própria raça”, bastardidade resultada da covardia, daqueles que se relacionam de livre e espontânea vontade com brancos.
Entre brancos ouvimos que somos a filha da empregada, entre pretos (agora é moda) somos chamados de fetiche da casa grande. Enquanto tanto um lado quanto o outro usam a nossa pele para projetar fantasias brancas, as nossas peles (pardas e pretas) continuam sendo as mais baratas.
Textos de Apoio:
Holtzman, Jo: Color Caste Changes Among Black College Students, Journal of Black Studies, 4.1 (September 1973) 92-101.
Goering, John M.: Changing Perceptions and Evaluations of Physical Chracteristics Among Blacks: 1950-1970, Phylon. The Atlanta University Review of Race and Culture, XXXIII.3 (Autumn 1972) 231-241.
hooks, bell: Rock My Soul. Black People and Self-Esteem, New York, Washington Square Press, 2003, 39.