Nos últimos meses muito tem se discutido, principalmente nos veículos de mídia hegemônicos, sobre os malefícios à saúde causados pelas pomadas modeladoras. Este produto é largamente vendido nos comércios e utilizado por um contingente de trancistas e cabeleireiras afros na preparação e confecção dos trançados. Pomadas modeladoras são utilizadas para finalizar os penteados e dividir as mechas capilares, ou seja, elas servem no trabalho das trancistas para trazer um acabamento impecável ao serviço realizado. Uma técnica de produção dos trançados difundida pela diáspora africana através das redes sociais e plataformas como o Youtube.
No entanto, esse produto tem gerado sérios danos à saúde dos usuários e usuárias dos trançados africanos/afro. Problemas como cegueira temporária, queimadura das córneas, ardência, inchaço nos olhos, alergia nos pulsos e outras formas de lesões na pele são apontados. Tal fato, tem sido denunciado pelos usuários e usuárias de tranças, profissionais da saúde que atendem pacientes que apresentam estes problemas e inúmeros veículos de comunicação. Mediante a aceleração do problema na sociedade, a Anvisa proibiu o uso de todas as pomadas modeladoras. Contudo, é preciso lembrar que a proibição e retirada de algumas marcas de pomada não começaram no início do ano de 2023. Na realidade, as denúncias e suspensão do produto por órgãos de vigilância sanitária começaram em 2021, conforme consta na tese de doutorado “Trancista não é cabeleireira: identidade de trabalho, raça e gênero em salões de beleza no Rio de Janeiro” (2022).
Recentemente, conforme o problema com as pomadas tornou-se de ordem exponencial, a ANVISA deu início a uma investigação sobre quais componentes são utilizados na produção das pomadas e que causam problemas de saúde. Num primeiro momento, a agência suspendeu a comercialização de algumas marcas do produto. Particularmente, eu não veria problemas nessa suspensão, tendo em vista que, de fato, o uso irrestrito das pomadas tem causado lesões graves aos usuários e usuárias. Entretanto, as perguntas que faço são as seguintes: como produtos tão nocivos foram liberados pela agência para a comercialização? Esses testes não deveriam ter sido realizados anteriormente à liberação para o mercado? Até quando o Brasil continuará, no que se refere à indústria de cosméticos, fabricando produtos sem considerar as necessidades, desejos e saúde da população negra? Sabemos que produtos para cabelos crespos e cacheados, hidratantes corporais dentre outros foram durante um bom tempo quase inexistentes para o nosso consumo. Situação que teve uma considerável transformação a partir das exigências e indagações de militantes, artistas, influencer digitais e movimentos de orgulho e empoderamento crespo.
Caro leitor, neste breve texto pretendo refletir sobre as associações que têm sido realizadas nos veículos de comunicação sobre a adoção das tranças como sendo as geradoras dos malefícios à saúde. Ora, as reportagens, notícias e toda forma de disseminação da informação colocam a imagem de um penteado trançado como destaque para falar dos problemas de saúde. Quantas vezes você viu chamadas sobre a toxicidade das pomadas modeladoras com as imagens dos produtos? Este fato não é curioso? Penso que há uma intenção em sempre colocar as tranças e não as pomadas em destaque.
Outro dado pertinente que precisa ser abordado aqui é a última reunião que a Anvisa realizou com fabricantes das pomadas e trancistas afro. Nesta reunião, as trancistas que participaram disseram que ouviram dos fabricantes dos produtos que o problema não é a falta de competência em produzir um produto de qualidade e que não gere agravos à saúde. Nesta ocasião, de acordo com os relatos das trabalhadoras para os sites jornalísticos Alma Preta e Mundo Negro, os empresários disseram que as pomadas não foram feitas para serem usadas nas tranças, que os usuários ficam muito tempo com o produto e os trançados na cabeça, o que ocasiona problemas de saúde como fungos e coceiras. Pois bem, esses argumentos, na realidade, tratam-se de acusações não cabíveis, vexatórias, e, sobretudo, racistas. Há nesses comentários a associação do uso das tranças, uma tecnologia capilar ancestral africana, a agravos à saúde. Além disso, é um discurso que retira a responsabilidade dos fabricantes em produzir produtos com qualidade e coloca sobre os ombros das trancistas e usuários e usuárias a causa dos problemas.
Pensando na história e estrutura da sociedade brasileira, esse tipo de situação não é uma novidade. Quantas vezes a culpa pela ação racista e pela discriminação é imposta como responsabilidade da vítima e não do autor? Sempre é de bom-tom lembrarmos que no Brasil, durante a virada do século XX e meados do século XIX, houve a importação e disseminação de teorias racistas. Além disso, ocorreu a adoção de políticas discriminatórias pelo Estado brasileiro baseadas nessas teorias. Teorias que estão na cabeça da população, nas instituições e nas ações dos agentes públicos. O histórico e adoção dessas teorias pode ser consultado pelo leitor nas obras de Kabengele Muananga “Rediscutindo a mestiçagem” e no livro de Gislene Aparecida dos Santos “A invenção do ser negro”.
Na década de 1980, sociólogos como Carlos Hasenbarlg e Nelson do Valle Silva também mostraram como a questão racial brasileira era central para abordar a problemática das desigualdades sociais e que a pertença racial condicionava negros e negras a lugares sociais demarcados. Ou seja, esses autores e outros estudiosos demonstraram a persistência das desigualdades e discriminações raciais nas terras brasileiras.
Os efeitos das teorias racistas do século XIX, disseminadas por intelectuais como Nina Rodrigues e seus seguidores, podem ser percebidos na ação da polícia e na perseguição às manifestações culturais brasileiras. Não se engane, o debate sobre as pomadas modeladoras está além do malefício do produto. Estamos falando de perseguições históricas às expressões culturais da população negra, caso contrário as reportagens não colocariam os penteados trançados nas chamadas, mas sim as pomadas. Contudo, o que vemos é um processo de marginalização da cultura ancestral dos trançados camuflado de um discurso de preocupação com as pomadas e de seus efeitos nocivos.
Ademais, é importante lembrar que a cultura das tranças expressa uma estética da diferença, uma estética não-branca e uma estética extremamente política. A adoção das tranças acarreta para os usuários e para as usuárias situações constantes de discriminação, que podem ser percebidas nas tentativas de impedir que pessoas negras e trançadas adentrem em locais como escolas, instituições militares, espaços de saúde, além da exclusão no mercado de trabalho.
Novamente, repito que a maneira como o tema vem sendo tratado pela grande mídia gera outros problemas para quem trança e quem usa tranças. Primeiramente, porque trançar cabelos é uma técnica e prática corporal que é anterior à recente fabricação das pomadas. Logo, a forma que o debate é realizado desconsidera todo um processo de manutenção e resistência cultural da diáspora africana. Desconsidera que a cultura das tranças expressa memórias transatlânticas e que o corpo negro é um corpo-arquivo como nos diz o antropólogo Julio Tavares (2020). As tranças são elementos de constituição cultural de várias civilizações africanas. Seu uso pode ser descrito desde o Egito Antigo, passando pelas civilizações Himba, Mbalantu, Iorubás e tantas outras.
Segundo ponto, numa sociedade calcada na produção e reprodução de imagens, os efeitos dessas estratégias adotadas pelas agências de notícias afetam terrivelmente as trancistas. Esse grupo ocupacional sofre com a redução da clientela que acaba por ficar aterrorizada com as notícias e esquece que tranças podem ser confeccionadas sem produtos como gel, gel cola e pomadas modeladoras. Basta lembrarmos das trancistas com mais tempo no mercado. Elas se estabeleceram na prestação do serviço sem o uso desses tipos de produtos.
Terceiro ponto, as trancistas e trançadeiras são em sua maioria mulheres negras, pertencentes a classe C do IBGE. São responsáveis por chefiar suas famílias e sobrevivem da sua cultura como as baianas de acarajés que pertencem às religiões de matrizes africanas (SANTOS, 2022). Esse grupo que já é bastante vulnerável na sociedade brasileira, tem visto seus ganhos mensais serem reduzidos e suas estratégias de inserção no mercado de trabalho e manutenção de suas identidades culturais serem questionadas como impróprias.
Quarto ponto, parece que as reportagens pretendem mais estranhar a adoção de produtos químicos nos trançados do que denunciar o descaso das fabricantes. Ora, no Brasil as técnicas de transformação da textura dos cabelos como a técnica da escova progressiva, escova japonesa, escova italiana dentre outras denominações também geraram problemas de saúde pública por conta da quantidade de formol que continham. Porém, as reportagens não colocavam os cabelos alisados e lisos na chamada como um problema como frequentemente fazem com as tranças. Além disso, trançar cabelos ou estilizar com outro tipo de penteado artesanal nunca foi descolado da adoção de algum tipo de composição. Basta olhar para as mulheres himbas na Namíbia que usam o otijze (mistura de gordura de manteiga e pigmento ocre) nos cabelos para finalizar as tranças e na pele para se protegerem do sol. Ou então, lembrarmos da adoção na diáspora e no território africano da manteiga de karitê, os óleos corporais e dentre outras fusões.
Pergunto: como a trança e a trancista podem ser responsabilizados pela avidez e ganância dos empresários brancos brasileiros? Temos lutado muito para chegar até aqui. Estamos em marcha por direitos, atuamos na educação e em outras instituições pelo direito de usar nossa estética identitária e ancestral. Não percamos de vista que trança é cultura, é resistência, é identidade e que trancistas são mantenedoras deste saber.
Minibiografia
Luane Bento dos Santos é Iaô de Iemanjá no Ilê Axé Ialodé Oxum Karê Ade Omi Aro. Doutora em Ciências Sociais pela PUC-Rio, mestra em relações étnico-raciais pelo CEFET-RJ, bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela UERJ, bacharel em Biblioteconomia e Documentação pela UFF. Dirigiu e escreveu o roteiro do curta-metragem Memórias Trançadas (2022). Pesquisa a mais de dez anos sobre estética e corporeidade negra. Atua no campo da Educação Básica lecionando Sociologia e Filosofia. É mãe da Camilly Bento. Adora desenhar, escrever poesias, assistir filmes de ficção científica e ouvir música preta.
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Referências
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. 5.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do “ser negro”: um percurso das idéias que naturalizaram a inferioridade dos negros. Rio de Janeiro: Pallas, 2002.
SANTOS, Luane Bento dos. “Trancista não é cabeleireira!”: identidade de trabalho, raça e gênero em salões de beleza afro no Rio de Janeiro. Tese de Doutorado em Ciências Sociais. PUC-Rio, 2022.
TAVARES, Julio Cesar. O que pode o corpo negro: uma introdução. In: TAVARES, Julio Cesar (org.). Corporeidades Afrodiaspóricas: perspectivas etnográficas. Curitiba: Appris, 2020. p. 19-31.
Páginas consultadas: Fala Trancista, Alma Preta e Site Mundo Negro