Desde que o mundo é mundo, os seres humanos tem usado diferentes ferramentas para se comunicar. Do fogo às pinturas rupestres, temos continuamente desenvolvido habilidades fantásticas para transmitir o nosso pensamento, nossos medos e ideias.
O que chamamos hoje de mídia (incluindo diversos meios e veículos) tem uma longa história na construção da sociedade brasileira e o que se tem feito hoje no que diz respeito ao registro de uma narrativa contrária aos discursos hegemônicos e grandes conglomerados midiáticos já era uma prática de determinados grupos sociais. Estamos aqui nos referindo claramente a mídia (ou imprensa) negra do século XIX, como bem nos lembra e registra a historiadora Ana Flávia Magalhães:
“Tanto a atuação organizada de grupos e indivíduos afro-brasileiros contra a discriminação racial, de forma ampla, quanto o estabelecimento de veículos de imprensa negra, em particular, tem sido fenômenos comumente localizados no seculo XX.”
Na sua pesquisa, Ana Flávia destaca períodos e periódicos, jornais como O Homem, do Recife e a atuação dos movimentos negros (Teatro Experimental e Frente Negra) como propulsores da mídia negra.
Isso significa dizer que não há nada de muito novo. Uma imprensa com suas características especfícias (produzida por homens, com determinado recorte racial e objetivando a educação), mas que refletia uma forma de resistência junto a sociedade que se desenhava. Me parece que, como afirma Jurema Werneck, os nossos passos vem de longe.
Dando um salto histórico, chegamos num tempo que em as novas ferramentas tem dado voz, visibilidade e registrado o pensamento de grupos de pessoas que antes pareciam não ter meios nem oportunidades de se fazerem ouvidas, lidas, vistas. Estamos nós, mulheres negras redesenhando caminhos, escrevendo, filmando, registrando nossas histórias e resgatando tantas outras, já que somos tão diversas e múltiplas.
Estamos, ao mesmo tempo em que caminhamos, construindo nosso próprio caminho, experimentando jeitos, ferramentas, modos de fazer e medindo o alcance de tudo isso. Especificamente nós, as que contam as narrativas, as que visibilizam e lutam as nossas lutas, para conosco há uma tentativa de apagamento, uma espécie de rolo compressor empurrado pelo machismo e racismo. Ao que parece, os que tentam nos apagar não fazem ideia de cada suor derramado no teclado ou na caneta, cada choro no vídeo ou na fotografia.
A verdade é que as mulheres negras que criam conteúdo, escrevem, fotografam, fazem filmes, produzem arte não são respeitadas muito menos valorizadas. Não é de hoje que nossa produção é subestimada, nossas referências roubadas, nossos livros não mencionados e nossas falas deturpadas.
Para refrescar a memóra e trazer exemplos práticos, mostro aqui algo que aconteceu conosco e que não tem muito tempo: escrevemos sobre o caso Marcelo Mello e um veículo de comunicação produzido por estudantes do centro de comunicação social, jornalismo, turismo e artes da UFPB reproduziu descaradamente o texto, alterando autora, título e palavras.
Não estamos falando de propriedade intelectual, estamos falando de desonestidade e falta de escrúpulos. Estamos apontando que os que aprendem sobre mídia e que clamam por liberdade de expressão, justiça e democratização, praticam escrotidão.
Jurema Werneck, em seu artigo “Nossos passos vem de longe: movimento de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo”, afirma:
“As mulheres negras não existem. Ou, falando de outra forma: as mulheres negras, como sujeitos identitários e políticos, são resultado de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas…”
Somos resultado dessa heterogeneidade, sem ela, nós não existiríamos. Mas existimos. Estamos conscientes dessa existência e o que querem e continuam a fazer é tentar nos aniquilar, calar a nossa voz e dizimar nosso pensamento. Pois bem, resistimos.
E é desse lugar de resistência que mais uma vez denunciamos o que eu ousarei chamar de “mídia vermelha”: depois de exaustivamente pensar e produzir, outra de nossas autoras publicou o texto cujo título original é “Negra, porém bonita e inteligente”: o racismo da direita não é diferente do racismo da esquerda.”. O texto de conteúdo reflexivo e incisivo, foi reproduzido por uma série de portais ditos de esquerda de forma completamente desonesta, com títulos e links alterados, alguns sem o crédito da autora e, muito por conta da estratégia de mudança de título, os comentários nesses portais trazia uma enxurrada de comentários machistas, racistas e carregados de misóginia – alguns até acusando as Blogueiras Negras de não saber discutir política (sic).
Pois bem, volto a dizer que não estamos falando de propriedade intelectual. Engrossamos o coro e lutamos pela democratização da mídia, mas o que isso quer dizer? Isso significa alterar escrotamente textos, falas, fotos – produzidos com muito suor – a custo de likes, comments ou visualizações de portais? Chupar (ou chupinhar) autoras sem lhes fazer referência?
Democratização da mídia: significa responsabilidade
Os mesmos arautos das revistas vermelhas, aqueles que bradam aos quatro ventos que os conglomerados são golpistas e os acusam de manipulação >>> guardadas suas devidas proporções <<< parecem que assim o fazem. Isso nos deixa de algum modo surpresas!
A comunicação como direito tem, dentre seus pilares, a base na liberdade de expressão e opinião, na propriedade e influência dos meios de comunicação, direito à educação e a privacidade. Ora, se todos nós conhecemos tais bases, o que é que rege a prática contrária? O que determina um discurso diferente da prática? Não ousamos dizer.
A ética parece perdida no meio dessas palavras e ações e, mais vale ter audiência dando porrada nas mulheres negras (sejam elas autoras ou legisladoras) do que qualquer outra coisa – esperando sinceramente não ser interpretada como defensora de facista! – muito mais fácil deslegitimar opiniões do que produzir alguma.
O que pensamos sobre tudo isso, está na prática da nossa autonomia onde, até certo ponto e com todas as limitações, tentamos visibilizar e incentivar mulheres negras a registrar suas histórias. Claro que não damos conta e jamais temos pretensão de monopólio de nada, muito menos de opinião, ao contrário, nos alegra e dá sensação de luta avançando quando cada vez, mais e mais mulheres registram das diferentes maneiras suas histórias. Vivendo e fazendo a mídia – relativamente – democratizada.
Continuamos brigando por e incentivando a produção independente de conteúdo.
Produção independente de conteúdo X Ocupar mídia hegemônica
Longe de mim querer travar essa querela infindável, onde argumentos prós e contras dos dois lados incorrem e clamam por conceitos como capitalismo, meios de produção, independência e parcialidade. O que me faz lembrar da conversa com Janaina Oliveira, cineasta, publicitária e produtora, que sabiamente afirmou ser importante a ocupação de espaços e meios ditos tradicionais sem mudança do discurso, lembrando MV Bill no Faustão. Difícil é fazê-lo quando não se tem controle de como sairá o discurso, que mudanças ele sofrerá.
Pensando nisso e resgatando a história registrada na dissertação de Ana Flávia Magalhães, percebemos que a produção independente de conteúdo por determidados grupos sociais, no caso específico pessoas negras, proporciona trazer a tona debates aprofundados sobre temas outros, como foi o caso do primeiro periódico abolicionista de Pernambuco, O Homem. Ao que Ana Flávia nos diz:
“Num nível técnico bem mais avançado do que os pasquins fluminenses, o jornal pernambucano conseguiu também articular um sofisticado repertório intelectual a fim de desbancar as teorias raciais que postulavam a superioridade das raças “sem cor” (…) Afora a defesa e o fortalecimento dos pretos e pardos (…) aquela folha reconhecia a importância dos povos indígenas na luta contra o “preconceito de cor” no Brasil”
Percebemos então que a possibilidade de uma produção “independente” (uso aspas por entender que para essa palavra há muitas variáveis que determinam o que é ser independente) impacta diretamente no que se pode ser produzido, no que se pode ser dito, escrito, censurado. Trazendo ainda mais exemplos, precisamos citar a última entrevista concedida por nós a um veículo reconhecidamente visto como grande e “tradicional”. Tal revista nos abordou com o objetivo de falarmos sobre a mulher negra na publicidade; depois de receber as perguntas e passar horas elaborando respostas, eis que a matéria sai com pequenas citações que mais parecem opiniões pessoais.
Não estamos indagando métodos e metodologias, nem públicos ou formatos. Ficamos apenas encudadas com a falta de cuidado em, por exemplo, nos contextualizar sobre os aspectos da entrevista: que seria com várias mulheres negras, que teria uma linguagem menos rebuscada ou mesmo que as respostas não precisavam ser longas. Entendem como essas são questões importantes, inclusive para decidir (ou não) quando, com quem e o que falar?
Utilizando então da estratégia da querida transfeminista Daniela Andrade, publicaremos num próximo texto o conteúdo da entrevista na íntegra, pois assim acreditamos: que o nosso trabalho inteiro tenha alcance e seja lido por todas.
Por fim, deixamos o desejo e o intento de nos fazermos compreendidas, pensando que os próximos passos da comunicação, neste que é um campo que consideramos “independente”, “alternativo”, “livre”, sejam passos trilhados com responsabilidade, ética e respeito.
Imagem destacada: Social Check.
Referências:
WERNECK, Jurema: Nosos passos vem de longe: movimento de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em http://www.abpn.org.br/Revista/index.php/edicoes/article/view/20/10
MAGALHÃES, Ana Flávia: De pele escura e tinta preta: A imprensa negra do século XIX (1833-1899). Brasília, 2006. Disponível em http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/6432/1/Ana%20Flavia%20Magalhaes%20Pinto.pdf