Há muito tempo, várias de nós tem denunciado as festas, espaços, bares e sambas que tem se tornado lugares com a nossa música, nossa cultura, mas sem nos ter lá como consumidoras. Sim, porque as artistas, as dançarinas – ou seja todas as pessoas que são a “atração” podem ser negras, mas a nossa presença nos camarotes, nos banheiros e nas áreas comuns do show não são bem vindas.
Recentemente estive num baile muito conhecido da noite carioca. Num lugar da zona portuária da cidade, onde a maioria dos pretos vendia bebida na porta. Apesar de haver titubeado ir ao evento por outros motivos, entrei junto com mais outras companheiras. Queria poder dizer que amei ver a cantora preta que estava linda até o final e que me diverti muito dançando de me acabar, mas o racismo não deixou. Logo que cheguei na frente do palco, com apenas uma das companheiras e passei na frente de uma mulher (branca, claro) a mesma começou a me empurrar. Tentei perguntar se ela queria passar na minha frente, mas ela insistiu que eu deveria parar de dançar e continuou a me empurrar; estava tudo dito e então começamos a discutir, um homem se meteu e quando eu menos esperava os seguranças já tinham sido chamados, advinha pra quem? Para a preta barrequeira e favelada, como a branca havia se referido a mim todo o tempo, enquanto eu a chamava de racista.
Depois de passar mal com o episódio, comecei a me questionar: será mesmo que precisamos passar por isso SEMPRE que quisermos ir aos espaços onde estão cantores e artistas que queremos ver? Porque a branquitude acha que, apenas por estar em determinado lugar, isso o torna propriedade e posse das pessoas brancas? Devemos evitar certos espaços e nos preservar ou o enfrentamento e a ação direta precisa ser feita?
São de fato perguntas genuínas que ainda estão sem resposta, mas que também nos fizeram tomar uma iniciativa: pesquisar e entender o que significa desapropriação cultural, tomada de espaços pretos por pessoas brancas, espaços exclusivos e festas onde somos nós as protagonistas. Então, preparem-se pra mergulhar na investigação.
PEDRA DO SAL É BAILE DE FAVELA?
Aposto que muitas de vocês já ouviram falar em bares que remontam favelas, festas que utilizam Orixás como enfeite e outras que premiam pessoas que estejam “fantasiadas de pobre”.
I love Cafusu é uma dessas festas, que tem sucesso de público antes e durante carnaval do Recife. E a gente podia citar uma lista enorme de tantas outras que utilizam nossos símbolos, nossa música, mas que não estão preocupadas com a nossa presença – aliás, quanto mais longe melhor, vide os seguranças e vendedores de cerveja e água do lado de fora.
Algumas festas e iniciativas tem foco em públicos específicos, mas sem nenhuma preocupação a não ser o lucro: baladas que usam da linguagem e de estratégias meramente comerciais para atrair pessoas LGBTT, mas que na prática estão pouco preocupadas na não reprodução de racismo, homofobia ou transfobia. Quem nuca foi naquela festa recifense que usa o título de uma música baiana conhecida e presenciou cenas estúpidas de homens agarrando mulheres deliberadamente? A mesma festa que em suas redes sociais afirmou existir heterofobia e absurdos do gênero…
O que acontece é que a apropriação por conceitos, crenças e comportamentos ultrapassa o senso e esbarra numa lógica de “ganhar a todo custo” e desse modo organizadores pouco se preocupam em criar ambientes seguros, confortáveis e sem discriminação e preconceitos. É fácil fazer uma festa, colocar o nome de “Baile de Favela” tirando ela da própria favela e colocando uma cantora preta de sucesso para ser a atração. E aí, é justíssimo cobrar 100 reais – já que a festa é na zona “nobre” da cidade e impedir que pretos se sintam confortáveis caso ousem adentrar tal espaço.
Até aí nenhuma novidade, não?
No texto Pedra do Sal – aqui se respeita o samba, Gabi Porfírio cita o importante trabalho da Pedagoga e Yalorixá Patrícia Alves, que fala sobre a cultura negra estar vivendo uma desapropriação cultural, onde querem as culturas negras sem os pobres, para o deleite fútil das elites. Ao que Patrícia diz:
Nesse sentido, podemos inserir nessa discussão inclusive os outros acontecimentos recentes sobre as religiões de matriz africana, o uso ou não do turbante e etc. O que acontece é que esse processo que tem sim seu pé lá na globalização é capitaneado por algo mais: a colonização e a exploração dos povos ditos vulneráveis. Como projeto em curso, que figurativamente podemos ilustrar como um polvo com vários tentáculos, o pensamento-ação colonial toma pra si não só símbolos, mas elementos culturais inteiros, esvazia-os e os devolve em forma de produtos (e aqui entram as variáveis econômicas, sociais e culturais bem articuladas do velho e novo colonialismo, repaginado de globalização). Um bom nome para entender esse processo é o do professor Doutor Milton Santos, em seu adorável trabalho “Por uma Outra Globalização“.
Bom, entramos nesse assunto tão vasto e polêmico para dizer também que o uso das pautas e discursos das ditas minorias pode servir para o acúmulo de capital, para a difusão de uma “imagem inclusiva”: aqui me refiro a estabelecimentos, festas e bares que se dizem pró causas LGBTT, que são acolhedores e abertos, mas que na prática tem suas ações calcadas no racismo, na transfobia e no elitismo. Recentemente passei por mais uma situação de racismo com uma companheira num desses ambientes e como resposta, não houve nenhuma retratação, nenhum diálogo: apenas a preocupação em não manchar a imagem do tal lugar – o que demonstra claramente um comportamento racista e elitista: “pouco importa o que digam e sintam essas clientes que estão denunciando, o que preciso preservar é o meu patrimônio e minha imagem de bar LGBT inclusivo!”.
O que está a baila, portanto, é um debate que também caberia aqui, mas que citarei somente para uma reflexão posterior: os movimentos precisam entender o que significa interseccionalidade e como aplicá-la na prática. Há tanto racismo e elitismo no movimento LGBTT que tais opressões cegam pessoas, organizações, lugares. Não há como incluir e unir pautas sem reconhecer que, mesmo sendo gay ou sapatão você pode sim cometer racismo, transfobia. Então, esse debate precisa sair do feminismo negro e ganhar todos os espaços possíveis. Sim, porque só assim estaremos de fato agindo de maneira coerente.
RESISTIR OU SAIR
Depois do que me aconteceu no Rio de Janeiro e recentemente em Recife, uma reflexão que me acomete é sobre estar disposta ou não a frequentar lugares que não estão preocupados com a inclusão, com o respeito.
Será que precisaremos, nó mulheres negras, bissexuais e lésbicas, travestis e trans, andar sempre armadas, esperando a próxima agressão – caso escolhamos frequentar aquele bar, aquela festa “mista”? Ou nos restringiremos aos espaços criados exclusivamente para nós? Será sempre necessário estar pronta para o enfrentamento ou ainda nos manteremos sonsas sem prestar atenção nas violências destiladas a nós nesses espaços?
Há uma indagação sobre a segunda opção ser uma “guettificação”- a produção de espaços inversamente racistas [ou racistas reversos] e heterofóbicos. Essa me parece uma argumentação preenchida de falsa simetria. E aqui, utilizo um exemplo do qual eu gosto muito: pense numa pessoa branca (homem ou mulher). Quando será que essa pessoa se sente repelida, constrangida ou mal tratada ao transitar por lugares nobres e centros das cidades brasileiras?
Quando a ela são lançados olhares e expressões de inadequação? Posso imaginar que raramente… Já as pessoas negras são constrangidas e sofrem – o que passamos a nominar RACISMO – todos os dias. E justamente por isso, são afastadas, repelidas e empurradas para os outros espaços da cidade, da vida. Então a guettificação não fomos nós quem inventamos, não é a nossa lógica. A segregação não é nossa ideia e por isso a criação dos espaços exclusivos é resistência, é modo de sobreviver e manter viva a esperança de melhorar uma sociedade racista.
Resistir ou sair vai depender do que se quer. Ficar numa festa ou num espaço que te agride é estar pronta pra ser levada carregada por um segurança, pra ser agredida violentamente com um racismo que bate no seu estômago. Sair é criar outros espaços, produzir outras lógicas outros pensamentos, aprender, beber de outras fontes – como a do pensamento africano de comunidade. E esses espaços já existem!
ESPAÇOS SEGUROS OU GUETTOS DE FELICIDADE
É necessário falar que espaços exclusivos não são a novidade dessa geração. A segregação e a proibição do acesso a grupos que foram marginalizados é antiga e produziu milhares de manifestações, clubes e espaços que são aclamados hoje: para citar alguns, temos a maioria dos blocos afro que hoje imperam (com esforço e sacrifício) no carnaval de Salvador, por exemplo, na época em que negros não podiam sair nas agremiações nem mesmo penetrar os clubes de carnaval exclusivos das pessoas brancas. Assim como os blocos, os clubes para pessoas negras como o Renascença no Rio de Janeiro ou o Sociedade 13 de maio no Paraná.
As casas das tias baianas, as rodas de samba e tudo enfim fazem parte da luta histórica das pessoas negras nesse país. Então, não estamos de fato inventando a roda. São releituras, inspirações ancestrais, olhares para o passado ressignificando o presente.
Por isso, pensando em não somente denunciar, mas mostrar nossos lugares e o nosso jeito de fazer as coisas, trago entrevistas e opiniões inéditas de alguns desses movimentos, projetos e modos de felicidade que a cada dia mais se espalham pelo nosso território.
Brenda Maria contou sua experiência pela primeira vez às Blogueiras Negras no Latinidades, e desde então aquela frase não me sai do pensamento: “Eu digo que hoje nós vendemos 80% dos ingressos pra gente preta e 20% apenas pra brancos. Inverti a lógica”. A lógica de pensar num espaço acolhedor, inclusivo e respeitoso só podia vir das matrizes africanas: “eu tenho toda uma pegada ancestral e cada vez tá vindo mais, aflorando. É como a gente desenha na nossa cabeça primeiro, né, mas eu enxergo o Baile como matriarcado, eu entendo ele como uma pequena África, entendo ele como um ritual urbano de união, onde a gente trabalha com a corporeidade pra acionar afetividades, sociabilidade. Tem uma questão lá da dance line, né? Acabou virando uma regra coletiva, não foi imposta pelo Baile, mas nasceu dos próprios frequentadores. É um espaço que tem que ser conquistado com respeito, mas antes de tudo, com legitimidade. Se não as pessoas viram as costas, não batem palma. É o nosso momento, nosso espaço, nossa hora!
Um Baile Bom se define como um movimento-festa-ato político de mobilização da comunidade negra de Curitiba e Região Metropolitana e completou seu primeiro ano em abril de 2016, tendo já recebido, até agora, um público estimado de 6.000 pessoas. Já imaginou isso numa capital onde a tv e os jornais esmagam a participação da população negra na construção daquele lugar? É de arrepiar!
Com sua experiência de mulher negra, Brenda junto com as pessoas que organizam o Um Baile, trazem os elementos africanos e quilombolas para dentro desta celebração, então não se trata de “racismo reverso” ou o que mais pessoas brancas queiram alegar; veja o que ela diz: “a coisa da lógica, eu pego isso no fundamento ancestral: quando você vai na casa dos outros, você não abre a geladeira logo de cara, né? Então você tem que saber como você se porta na casa dos outros. Você não bota o pé no sofá, né? Tem que saber como se comporta. Você é bem vindo? É. Pode vir? Pode vir! Só saiba na casa de quem você tá. Não é a sua casa e não é porque não é a sua casa que você não é bem vindo, entende? É tão óbvio…”
Entender essa lógica é pensar em como agregar e incluir sem que práticas racistas sejam mencionadas pelo outro como argumento destruidor, em que diz que que há segregação. E Brenda completa: “Às vezes eu tento dar exemplo desses que não são raciais, tá ligado, pra pessoa entender o que é protagonismo. Veio um cara branco na página do Baile e perguntou “ah, acho tão legal, queria tanto ir num evento de vocês, mas é verdade que os brancos não são bem vindos?” – tive que explicar que esse é um boato desleal e que é uma coisa da hegemonia branca que não permite mesmo que espaços constituídos legitimamente por pessoas não-brancas sejam formados. E que sim, as pessoas todas são bem vindas, só que, no seu caso, você fica incomodado quando você vai num casamento, por exemplo, e você não recebe a mesma atenção que a noiva, ou o noivo ou a família dos noivos? Se você fica, realmente você vai ficar incomodado no Baile. Entendeu? É simples! Você vai na festa, você é convidado, vai ser bem recebido, só que você não vai ter a mesma atenção”
Sendo assim, o Um Baile Bom continua sua empreitada com sucesso de público e crítica. Suas produtoras e toda a equipe – que também é preta – e frequentadoras seguem resistindo e entendendo que o fundamento de saber onde você chega e como você chega, faz parte da concepção, pensamento e ação no Um Baile. Em honra daquele espaço de 128 anos, o Um Baile Bom resiste.
Ouvi falar pela primeira vez da Sarrada no Brejo num post da querida amiga e compa de luta, Jéssica Ipólito, o Gorda e Sapatão. A festa é organizada pela Coletiva Luana Barbosa – que possui nove mulheres negras lésbicas e bissexuais – concebida como um projeto a partir do antigo GT das Pretas que organizava a Caminhada de Lésbicas e Bissexuais de São Paulo. A festa surgiu por inúmeros motivos e um deles foi justamente “proporcionar um espaço seguro para as mulheres, principalmente mulheres negras lésbicas e bissexuais, poderem dançar, curtir e se namorar sem ter olhares escrotos de homens misóginos.” Foi o que nos contou Liz, uma das integrantes da Coletiva. “A Sarrada no brejo é uma festa exclusiva para mulheres, por isso tanto homens trans quanto homens cis e hétero, eles não entram. A gente deixa isso disponível até na divulgação… é um espaço procurado por eles, eles mandam mensagem na página perguntando se podem ir, se podem acompanhar e nós tivemos um pouco de problemas com relação a isso no começo, mas é isso: é um espaço apenas para mulheres. É um espaço procurado por mulheres brancas sim e elas também vão e que trás segurança pra elas sim.” – continuou Liz.
Além disso, um dos objetivos da festa é também arrecadar fundos para auxílio de mulheres negras lés-bi que sofrem violências e/ou estão em situação de vulnerabilidade. Dessa forma, a Sarrada no Brejo age como um projeto para além do espaço de felicidade a que se destina, trazendo para si os elementos de coletividade, luta e afetividade. A Coletiva proporciona rodas de conversa e isso tem auxiliado o debate sobre sexualidade, violência e formas de autonomia, ou seja, quando nós, mulheres negras, pensamos e agimos criando espaços seguros, o fazemos com outra lógica – de um jeito holístico e especial.
Formada por mulheres negras lésbicas e bissexuais, a Coletiva também tem uma forte presença de mulheres mães, que se preocupam com a acolhida de outras mulheres mães dentro da festa:“Quando eu entrei no feminismo, entrei por causa de ter sofrido uma agressão e fui acolhida por algumas mulheres, mas eu não fui acolhida como mãe. Fui recebida como uma mulher que tinha sofrido uma agressão, e infelizmente eu tenho essa concepção: o feminismo não abraça as mulheres mães, principalmente as mães solo. E a gente vê pelos atos, se você cuida do seu filho e naõ tem ninguém pra deixar, você não consegue ir porque você não vai colocar a vida do seu filho em risco”.
E nesse sentido, a Sarrada no Brejo tem uma preocupação legítima e que podia ser copiada por todo o movimento feminista: a coletiva organiza uma creche que recebe as crias das mulheres que irão para a festa, onde as crianças são cuidadas até que suas mães voltem no dia seguinte.
Fernanda, também integrante da coletiva Luana Barbosa enfatiza: “funciona durante a festa num outro espaço, lógico que não é no meio da festa, numa casa próxima, nos arredores e as mães podem, sem pagar nada, deixar seus filhos lá das dez da noite às seis horas da manhã, com segurança, com alimentação e pode curtir a festa. Porque? Porque mulheres que são mães tem seus direitos violados, acesso a espaços culturais, direitos sociais violados… tem mães que chegam na gente e falam “meu filho tem três anos e eu nunca sai, eu nunca fui numa balada sem ter que pagar, tipo, muito pra alguém ter que ficar com meu filho, tendo que me humilhar pra minha mãe, pra algum parente, pra alguma amiga. Porque o feminismo é só venha a nós, vosso reino nada. Então a gente tem essa questão do Brejinho, na Sarrada, que é muito importante. Nosso foco também é o Brejinho e é muito daora, saber que tem mulheres que são mães e que podem deixar seus filhos tranquilamente nas festas e curtir a noite inteira de uma festa só com mulheres, além de segurança e de poder curtir a festa”.
Outra preocupação é a representação das mulheres negras: como a coletiva é formada por mulheres negras, a Sarrada no Brejo prima por parcerias e valorização do trabalho de outras mulheres negras: “desde fotos, as publicações no evento, modelos dos vídeos, dj’s, até as trabalhadoras que estão na festa são todas mulheres negras. As pessoas que organizam a festa são mulheres negras, as Dj’s são mulheres negras e a maioria do público são mulheres negras, então a gente não só foca na festa – a gente foca na saúde da mulher negra durante a divulgação da festa, inclusive a gente fala de abuso entre as mulheres, fala de violência entre as mulheres, do “só posso sarrar em você se você me permitir” e a gente deixa bem claro que a gente não aceita lesbofobia dentro da festa, bifobia, racismo, transfobia, ou seja, ser mulher negra não te isenta de ser violenta ou zoada, saca?”
Percebe a interseccionalidade agindo aí? A preocupação da Coletiva na Sarrada do Brejo ultrapassa o discurso e produz um lugar seguro, que acolhe as mulheres negras e que nos mostra como é possível um espaço de felicidade conscientemente politizado.
Realizada em Recife, a festa é uma iniciativa de três jovens pretos – Felipe Araújo, Pedro Andrade Leão e Gael Uno. “A festa surgiu da minha observação de perceber que em Recife não tinha festas voltadas pro público negro e cultura negra, especificamente. Já existiam festas deste tipo no Maranhão, em Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro. Festas que empoderassem os negros, que nos colocasse como foco, só que não existia aqui. E o fato de eu – falando eu porque fui eu quem começou, mas a festa é uma construção de todo mundo e várias pessoas, então eu por querer começar a produzir festas, ser Dj e gostar de música negra, imaginei um formato. E a BAFRO surgiu baseada nisso, mas também é diferente de todas as outras que existem nesses estados, porque a gente reuni moda, arte, cultura e música. A gente chama artesão negros do estado, escolhe artistas negros do mundo pra fazer exposição fotográfica e isso nos diferenciou das outras. Então posso dizer que não existe nenhuma festa como a BAFRO no país” – nos contou Felipe Araújo, nessa que foi sua primeira (de muitas) entrevistas.
O cuidado dos meninos em fazer um espaço seguro e de sociabilidade para os pretos (jovens e adultos) recifenses parte inclusive da escolha do dia e da hora da festa: a BAFRO é praticamente uma matinê, realizada sempre aos domingos a tarde, com ingressos que custam 10,00 reais. Isso é pensar no acesso, na inclusão e no protagonismo do povo preto.
“Essa é a maior prioridade, transformar o negro como protagonista em qualquer área do evento.Então, pra você expor na BAFRO, é necessário que você seja um artesão negro, porque o espaço é pra todos, mas a gente sabe pra quem a festa é feita, quem é o principal ali naquele evento, como circula a energia ali: é uma energia preta mesmo e a gente quer pretos e pretas se amando, se divertindo. Mas isso não impede que outras pessoas compartilhem isso com a gente, porém elas precisam reconhecer e lembrar que os protagonistas somos nós, entendeu? Então do expositor a quem faz a música que vai ser tocada pelo DJ, a decoração em si, então tudo que é feito na BAFRO é feito para o negro seja protagonista, desde o início até o fim da festa… A festa, ela tem livre acesso, mas você precisa reconhecer onde você está, quem está na frente daquilo ali, que ali não é feito como mera decoração pra você se divertir. Ali tem várias coisas por trás, tem uma militância, aquilo ali tem uma luta.”
A BAFRO, assim como as festas citadas, reconhece que para a inclusão é preciso dar acesso, e por isso as diversas preocupações: “a gente sabe que nosso povo não tem acesso a muitas coisas, nos foi tirado o acesso de muitas coisas, então nosso público não é um público elitizado justamente porque sabemos da onde viemos. Daí a festa ser como uma matinê, pra você ir e voltar, pegar seu ônibus, pegar seus três quatro ônibus pra sair da sua casa, vim pra festa se divertir e voltar com segurança, com o pouco ou muito dinheiro que você tenha – a gente tenta diminuir o valor da entrada.”
Fica claro então como concebemos nossos espaços. Não excluímos o outro, não somos segregadores, mas a nossa prioridade sempre será um espaço onde possamos ser nós mesmos, sendo respeitadas e respeitados com a dignidade de pessoa humana que somos.
E LÁ VOU EU MEU AMOR, MAS NÃO VOU SÓ
Já dizia um samba de roda do recôncavo! A luta pela dignidade passa por narrativas e ações antigas de liberdade, como sempre nos ensina a Professoa Ana Flávia Magalhães. Toda a nossa empreitada é de resistência, todos os nossos esforços são pela nossa dignidade como povo, dissemos: COMO POVO. A coletividade precisa estar presente, justamente porque ela está na nossa filosofia de povo negro, afinal, como diz um provérbio africano: “é preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma só criança”. E pensar em espaços seguros, de felicidade, sociabilidade e afetividade é pensar em grupo. Aí está toda a diferença! Porque a visão não é meramente ganhar dinheiro ou a diversão pela diversão, o mistério está em cantar aquela música de punho cerrado juntos, ou dançar James Brown repetindo quase que como um mantra “I feel good”. Fazer passos iguais, entendo que os preto dança todo mundo igual, Aláfia!
Celebrar juntos faz parte do resistir!
Nesse texto investigativo há ainda desejo e espaço para colocar aqui as outras inúmeras festas que acontecem de norte a sul deste país: Don’t Tocuh My Hair, Batekoo, Pandemônia, Caruru das Pretas. E se você, querida leitora, conhecer mais alguma, não hesite em nos apontar. Como propus no início do texto, continuaremos ocupando e denunciando os espaços que nos expulsam – em conjunto, de galera, coletivamente. Mas também mostraremos o que temos feito de bom – com falhas é claro, mas sempre na melhor das intenções – lugares carregados de memória e luta, num movimento sankofa sem fim. Existindo e Resistindo, nos espaços seguros e abarrotados de negritude e felicidade.