Dados da pesquisa “A cara do cinema nacional” realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA), do IESP–UERJ entre 2002 e 2012, nas obras cinematográficas de maior bilheteria, aponta que a presença de mulheres negras nas telas é baixa, sendo que aproximadamente 27% da população do país são do sexo feminino e de cor preta (ou parda). Nesse período, atrizes negras representam apenas 4,4% do elenco principal desses filmes e, nas funções de direção e roteiro não se têm a participação feminina negra, também podemos perceber a sub-representação, quando as vemos na tela, limitada a estereótipos associados à pobreza, sexo e a criminalidade e refém da visão masculina (em sua maioria, branca).
Hoje, segundo a professora e pesquisadora Janaína Oliveira, Kbela, dirigido em 2015, por Yasmin Thayná rompe essa lógica. O filme este que busca refletir sobre o lugar da mulher negra na sociedade contemporânea, os atuais padrões de beleza, sua expressão, autoimagem e identidade. “O filme é uma sequência de metáforas presentes no cotidiano de boa parte das mulheres negras do mundo”, como define a realizadora.
Entretanto, fora desse circuito comercial ou das grandes bilheterias, notamos que a presença de mulheres negras na direção do filme vêm se expandindo progressivamente de acordo com a ampliação das frentes de afirmação de gênero e raça, e da acessibilidade às ferramentas de produção, proporcionando assim as atrizes trabalhos em obras que não tem o Brasil Escravocrata como pano de fundo, mas de reflexão, de espaço de afirmação da identidade e etc. Ressaltando que, esses filmes, em sua maioria são de curta-metragem, quase não se dá pra falar da existência de longas. Nosso objetivo, portanto, é verificar outras possibilidades de olhar, de linguagens e estratégias de afeto a partir do filme O dia de Jerusa.
O dia de Jerusa realizado em 2014 por Viviane Ferreira coloca a mulher negra no seu lugar de sujeito de direito e de fato. A obra narra o encontro entre Jerusa (Léa Garcia), moradora de um velho sobrado do Bixiga, com a jovem Sílvia (Débora Marçal) que circula pelo bairro paulistano fazendo pesquisa de opinião sobre sabão em pó. Além de contar com todo elenco negro, o filme é escrito, dirigido e produzido por mulheres negras.
O espaço tempo do filme é o dia em que Jerusa faz aniversário. O filme se inicia com uma sequência de apresentação das personagens e seu cotidiano. Enquanto isso, um poeta recita um poema que acaba dialogando com essas personagens. E termina, “Negra a cor da escravidão”.
O filme possui uma fotografia em tons pasteis e, no cenário da casa de Jerusa vemos muitos objetos em cor azul, bem como paredes da casa. Isso trás consigo signos ligados ao espírito da personagem. Uma senhora e sua solidão. Ao mesmo tempo, muito amorosa e mãezona, feito a Orixá cultuada em religião de matriz africana Yemanjá. Nessa mesma sequência da casa exploram-se as possibilidades da “simultaneidade de ação e reação”: enquanto Jerusa fala de sua vida, percebemos que a princípio Sílvia fica impaciente, pois precisa continuar o trabalho, mas depois logo se rende as suas memórias narradas.
Com a câmera a uma distância próxima, no plano-sequência na casa de Jerusa há escala de tons dramáticos que reverbera com o sentimento da personagem principal da cena. E a ficção é orquestrada para nosso olhar pela encenação cinematográfica que é construída para encantar visualmente.
O filme marca um contexto em que nós mulheres negras nos reconhecemos, através das diversas personagens apresentadas, e em especial, sob um olhar negro e feminista da direção geral, e que, não obstante, os meios de comunicação no Brasil, em grande parte, não nos representam, tal como somos. “Sendo mulher, a objetificação histórica colocada para nós pelo patriarcado já nos subjuga em nossa capacidade política e social de intervir na sociedade” (ROCHA, Bruna e VIEIRA, Beatriz, 2014). Se tratando, em especial, de cinema, a história é em grande parte a luta constante para manter ocultos os aspectos artificiais do cinema e para sustentar a impressão de realidade. O cinema, como toda área cultural, é um campo de luta, e a história do cinema é também o esforço constante para denunciar este ocultamento e fazer aparecer quem fala (BERNARDET, Jean-Claude, 1980).
Sendo uma preocupação “quem fala” e o “que falam”, como revela a pesquisa acima, o olhar sobre nós mulheres negras é carregado de arquétipos e caricaturas, bem como, é “uma identidade sedimentada em estereótipos como os mais sexuais” (Edileuza Penha apud Bell Hooks, 2008, p. 2). Além disso, é perceptível que “o sexismo e o racismo, atuando juntos, perpetuam uma iconografia de representação da negra que imprime na consciência cultural coletiva a ideia de que ela está neste planeta principalmente para servir aos outros” (Penha apud Hooks, 2008). Pensando o cinema, portanto, como um meio que tem o poder de persuasão sobre o imaginário das pessoas, podemos referendar cineastas como Adélia Sampaio, Viviane Ferreira, Juliana Vicente, Sabrina Fidalgo, Edileuza Penha, Raquel Gerber, Larissa Fulana de Tal, Luciana Oliveira, Everlane Moraes, Yasmin Thayná, Renata Martins, Érica Sansil, Elen Linth, Lilian Sola Santiago, Carol Rodrigues, Joyce Prado, Carmem Luz, Gabriela Watson, Eliciana Nascimento, Janaína Refem, Thamires Santos, Débora Melo e tantas outras como exemplo de resistência no meio cinematográfico, que trazem a tela personagens negras reais e individualizadas.
De modo geral, nossa escolha por esta obra concentra-se no fato de que compreendo sua importância em termos de técnica e de discurso. O filme além de contar com todo elenco negro, é escrito, dirigido e produzido por mulheres negras, traz personagens reais e individualizadas, e, o vejo como uma mola propulsora na discussão sobre um cinema que rompe com a reprodução do machismo, “os estereótipos e o racismo de uma “sociedade esteticamente regida por um paradigma branco” (PENHA, Edileuza apud SODRÉ, Muniz, 2008, p, 2). A obra nos conduz em incursões sobre velhice, solidão, cotidiano, afeto e relações de gênero e intergeracionais, com os olhos voltados para a questão da memória e da ancestralidade da população negra, especialmente da mulher.
Olhar, linguagem e afeto
Partindo do pressuposto de que a câmera na produção cinematográfica torna-se móvel “como o olho do espectador” (segundo Martin) ou do personagem do filme, ou seja, ela além de observar os seres e as coisas, proporciona ao espectador os dados essenciais para a construção de sentido. Assim como, os planos (isto é, cada imagem fílmica que apresenta o conteúdo dramático), são condicionados não só pelos conflitos apresentados nas obras, mas também pelas estratégias estilísticas adotadas.
Laura Mulvey, em seu artigo, “Visual Pleasure and Narrative Cinema” procura na teoria psicanalítica as bases para uma profunda crítica da imagem – especialmente “a produzida no contexto do cinema hollywoodiano, como um produto da predominância do olhar masculino, ao qual corresponderia a imagem da mulher como objeto passivo do olhar” (MALUF, MELLO e PEDRO, 2003).
Em entrevista para a repórter Mariana Queen Nwabasili, a Cineasta natural de Salvador-BA, Viviane Ferreira, se expressa:
“O cinema que me disponho a fazer perpassa minhas observações e vivências cotidianas, então é o cinema que eu sinto em minha pele, que reflito no brilho dos fios de meu cabelo. Mas, no Brasil, existe um cenário de total agressão às subjetividades negras. Por isso, não podemos parar de produzir nunca, e as diretoras e diretores negros vêm resistindo. O dia que abandonarmos nossas histórias, nossa estética e subjetividades, significa que o racismo venceu” (NWABASILI, Mariana Queen, 2014).
Com essa entrevista, Viviane Ferreira revela não apenas sua indignação com essa agressão, revelada através da pesquisa, mas também seu olhar que perpassará em sua cinematografia. No curta O dia de Jerusa, Viviane optou pela representatividade negra na tela, bem como o roteiro, que é a base do filme.
Em O dia de Jerusa, por exemplo, o olhar rompe com a lógica do patriarcado (que ajuda a estruturar a forma do cinema), nos proporcionando um outro olhar. Jerusa é uma senhora que traz consigo experiências vividas, uma história de vida, suas memórias e a solidão. Ela mora só, mas mostra-se forte. Sílvia, por sua vez, é uma jovem, trabalhadora e aparentemente uma mulher que não admite ser assediada, que atualmente faz pesquisa de opinião de sabão em pó.
No decorrer do filme acontece o encontro entre ambas, onde Jerusa sente pela jovem uma afeição. Nesse momento, enquanto Sílvia, a princípio, tenta fazer a pesquisa para preencher o questionário, Jerusa vai revelando suas histórias do passado, do seu ser.
Assim, a diretora nos dá outra possibilidade de olhar. Vemos na tela, através da fotografia, uma busca pelos personagens femininos e uma denúncia do “achismo” masculino.
Se tratando de afeto, O dia de Jerusa, protagonizado por mulheres, apresenta sentimentos de afeto entre o encontro de Jerusa e Sílvia. As estratégias de afeto, amor e identidade são vividas por elas no filme, em especial. A partir do momento que se têm o encontro, acabam estabelecendo “o aprendizado gerador da socialização, geradora, por sua vez, da própria vida social”. (Segundo Carlos Rodrigues Brandão, 2005, 70). E, em meio ao afeto vão descrevendo a dureza do dia a dia, e Jerusa vai lhe contanto sua história de vida. Vai mostrando que embora more só, possui uma força herdada de nossos ancestrais, e é uma força ancestral que compõe e estrutura o filme. A força da cena sedimenta de que “nossos passos vem de longe”.
Portanto, o contato com filmes como O dia de Jerusa, que trazem personagens negras reais e individualizadas para o primeiro plano, alimentar em nós histórias de vida e de reconhecimento na tela. A partir dele, se pode também captar aspectos de um modo diferenciado de compreender a feminilidade (ou sua desconstrução), a negritude na visão das próprias mulheres negras e “linguagens moldadas pelo afeto”, nos fazendo assim acreditar que podem ser desenvolvidas outros pontos de vistas. Por meio de um filme como esse, segundo Edileuza Penha, “é possível expressar formas, valores e linguagem capazes de gerar sabedoria, vida e ancestralidade”.
Referencias Bibliográficas
BERNARDET, Jean-Claude. O que é Cinema. Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense. 1980.
VIEIRAH, Beatriz e ROCHA, Bruna. Por uma comunicação negra e feminista. Disponível em:
<https://marchamulheres.wordpress.com/2014/07/23/por-uma-comunicacao-negrae-
feminista/em2014> Acesso em: 22 de abril. 2015.
SOUZA, Edileuza Penha de. Mulheres Negras no Cinema Brasileiro – estratégias de afeto, amor e identidade. In: Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder. Fazendo Gênero 8 – Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST69/Edileuza_Penha_de_Souza_69.pdf> Data do acesso:
22 de abril. 2015.
NWABASILI, Mariana Queen. Por que Brasil rejeitou filme negro? Disponível em:
<http://www.geledes.org.br/mariana-queen-por-que-brasil-rejeitou-filmenegro/#axzz3Xx64khNA> Acesso em: 22 de abril. 2015.
MUVEY, Laura. “Prazer visual e cinema narrativo”, in Xavier, Ismail (org.), A experiência do cinema. 1983, pp. 435-453.
BORWELL, David. Figuras traçadas na luz. A encenação no cinema/DavidBordwell, 2008.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Aprender o amor: Sobre um afeto que se aprende a viver. São Paulo: Papirus, 2005.
Cinema negro no Brasil é protagonizado por mulheres, diz pesquisadora. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2015-12/cinema-negro-no-brasil-e-protagonizado-por-mulheres-diz-pesquisadora> Acesso em: 04 de abril de 2016.
O DIA DE JERUSA. Direção e roteiro: Viviane Ferreira. Produção: Odun Formação e Produção al Intérpretes: Léa Garcia, Débora Marçal, João Acaiabe, Edson Montenegro, Dirce Thomaz, Majó Sesan, Fávia Rosa, Pricila Preta, Adriana Paixão e André Luiz. São Paulo: 2014. 20 min.
– CULTNE – Lélia Gonzalez – Pt 1 e Pt 2 Entrevista concebida a Mali Garcia para o documentário “As Divas Negras do Cinema Brasileiro”
Imagem – Débora Marçal e Léa Garcia, reprodução página facebook O DIA DE JERUSA – o filme