Quase todos dos dias, faço uma caminhada (antes da pandemia da COVID-19) (1) de, pelo menos, uma hora. Num desses dias, havia uma grande mobilização no caminho. Jovens, mulheres e homens, vestidos com camisetas rosa, distribuiam panfletos. Uma dessas pessoas veio na minha direção estendendo o braço para que eu pegasse um papel. Só então, consegui ler a mensagem da camiseta: “Terapia do Amor”. Também pude ver a logomarca da “empresa” realizadora da ação: Igreja Universal do Reino de Deus. Candomblecista e praticante de outros cultos de matriz africana, ouvi, mas não tive interesse de pegar o papel. Diante da minha negativa, a mulher insistiu. Recusei novamente, mas a mulher manteve a disposição de me fazer aceitar o papel. Neguei por três vezes, e, então, a mulher se revoltou. Ela me xingou, apontou, chamou outras pessoas a me odiarem. Recoloquei o fone de ouvido e saí dali o mais rápido que pude. Cheguei em casa e pensei: o proselitismo é uma tecnologia do ódio.
Não disse isso sem referência. Em 2019, fiz uma reportagem sobre Intolerância Religiosa. Ouvi religiosos, pesquisadores, vítimas, ativistas, investigadores, políticos. Uma das entrevistas foi com a pesquisadora Carolina Rocha. Ela me explicou que as religiões de matriz africana são o principal alvo da violência porque uma das justificativas da colonização e escravização de negros e indígenas foi a necessidade de levar a palavra de deus para todo o mundo.
“Hoje o neopetencostalismo é identificado como grande algoz das religiões de afro-brasileiras. Realmente, alguns segmentos do neopetencostalismo têm levado os discursos de ódio até às últimas consequências. Eu friso que são alguns segmentos para não generalizar, mas a verdade é que esse terreno foi construído pelo Cristianismo e a Igreja Católica tem total responsabilidade sobre isso e tem que assumir essa responsabilidade porque ela não foi assumida”, aponta Carolina. (ROCHA, apud GOMES, 2019)
A especialista citou a palavra “ódio” e encontrei muita relação com os debates recentes sobre sentimentos de aversão empreendidos por João Freire Filho(3), com especial espaço reservado ao ódio. Esse texto é o registro da tentativa de elaborar uma abordagem que considere se o proselitismo pode ser, ou não, configurado como uma tecnologia do ódio.
“VOCÊ SABE O QUE É UMA RELIGIÃO PROSELITISTA?”
Carolina Rocha diz que o cristianismo é uma religião proselitista, expansionista e, por isso, ela precisa converter o outro. “As religiões de matriz africana, os candomblés (falando no plural porque existe uma variedade grande), são religiões iniciáticas; não são religiões de conversão”, disse. Carolina também explicou que o início do Cristianismo foi bélico(4) e quando percebemos essa característica conseguimos entender como uma pessoa cristã pode matar, como pode existir traficante evangélico e também como se formam os “exércitos de Cristo” (5). “A gente acha que isso é uma contradição, mas não é. O cristianismo é bélico, expansionista e violento desde o seu cerne.”, afirma. Lembramos das Cruzadas e conseguimos entender a explicação da historiadora.
As Cruzadas foram campanhas de expansão da palavra de Cristo extremamente violentas, que apregoaram a existência de uma morte justa (justificável) caso fosse uma morte ligada ao Cristianismo e à evangelização. No período colonial, uma das grandes fases da expansão capitalista, o desejo de exploração de mão-de-obra barata encontrou no Cristianismo seu mais forte aliado. O deus único cristão justificou a escravização de quase quatro milhões de seres humanos no tráfico transatlântico. A partir daí, negros africanos foram tidos como seres bárbaros, inferiores, incivilizados, sem alma, diabólicos e que sua única possibilidade de redenção e existência seria através do trabalho forçado e da evangelização.
“Foi uma expiação. Os africanos foram escravizados para que seu corpo rebelde fosse domado. Um corpo que precisava ser castigado porque, na justificativa dos europeus, existiu uma dívida dos africanos com seus ‘redentores, evoluídos e civilizados”. (ROCHA, apud GOMES, 2019)
O filósofo e teórico político camaronês, Achille Mbembe, referência nos estudos pós-coloniais, nos brindou com o conceito de necropolítica ao perceber que a noção de biopoder, desenvolvida por Michel Foucault, “é insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte”. Mbembe questiona quem tem direito de matar, quem o exerce, quem deixa viver ou expõe à morte. Ele explora conceitos como soberania, a princípio entendida como produção de normas gerais construída por um povo, composto por homens e mulheres livres. Reflete sobre conceitos de liberdade, autonomia, estado, política, território, campo, terror, racismo, violência, guerra. Questiona o que representa o excesso de tecnologias desenvolvidas exclusivamente com o propósito de matar, de eliminar, exterminar um inimigo – uma inimizade insuperável por representar um perigo mortal e absoluto. Mbembe se concentra em explicar o que acontece em territórios como a Palestina, por exemplo, mas, na construção dessa abordagem, ele faz importantes contribuições sobre a colonização, dizendo que “a escravização pode ser considerada como uma das primeiras instâncias da experimentação biopolítica”. A noção de necropolítica e necropoder, nas palavras do professor, explica
“as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos”.” (MBEMBE, 2016)
Até aqui temos uma prática religiosa com um desejo desenfreado por expansão que, por sua vez, é possibilitada por ações de conversão. Ou seja, ações que convencem uma pessoa a abandonar uma crença e adotar outra, fazendo-a acreditar que há apenas um mundo divino possível e excluem a possibilidade de coexistência com outro saber espiritual. Assim, quando esse sistema não consegue convencer a seguir um novo caminho religioso, usam da violência. No passado, os exemplos de violência são incontáveis, sendo as cruzadas, que já citei, e a insurreição, os modelos mais contundentes. Hoje, destroem terreiros de matriz africana, matam e/ou atentam contra a vida das lideranças desses cultos, obrigam praticantes a engolirem símbolos religiosos, expulsam praticantes de suas casas, destroem-nas e constroem igrejas evangélicas sobre os escombros(6). Eu não tenho dúvidas de que essa prática que leva ao ódio.
Aparentemente, o proselitismo, seja religioso ou como doutrina política, não quer gerar o ódio. Aparentemente, ele só geraria o ódio se não conseguisse sua intenção, quando algo lhe escapasse; fugisse do controle.
Mas se a intenção proselitista acontecer sem violência física, por meio do convencimento, mesmo assim seria ódio? O que precisa acontecer para que todos acreditem na existência de um só deus detentor da verdade e sigam essa unidade religiosa? Entendo que, para que só um seja louvado, outros não podem existir. Se a forma do extermínio se dá por banhos de sangue ou por formas de violência diferentes da física, ainda é aniquilação, erradicação, impossibilita a coexistência, ou seja: ódio.
TECNOLOGIA OU DISPOSITIVO?
Não estou convencida de que se trata de uma tecnologia. De acordo com o dicionário Michaelis(7), tecnologia é um conjunto de processos, métodos, técnicas e ferramentas relacionadas à arte, indústria, educação. Também diz sobre conhecimento técnico e científico e suas aplicações a um campo em particular. Além disso, linguagem peculiar a um ramo determinado do conhecimento, teórico ou prático. E, ainda, a aplicação dos conhecimentos científicos à produção em geral. Assim, em termos simples, tecnologia, tanto como técnica ou processo, está relacionada à produção de alguma coisa. E isso me faz entender que a tecnologia tem um objetivo, que é a produção de determinada coisa. No caso desse texto, acredito que proselitismo religioso seja uma tecnologia uma vez que sua ‘produção’ é a conversão de fiéis.
Contudo, no que se refere a ser uma tecnologia do ódio, acredito que o termo mais adequado seja dispositivo. Sugiro, então, que a resposta à pergunta do título seja negativa. O proselitismo não seria uma tecnologia do ódio e sim um dispositivo do ódio.
Em História da Sexualidade I – A Vontade de Saber, Michel Foucault tratou sobre mecanismos que serviram tanto à sociedade disciplinar quanto à de controle. Ele refletiu sobre as interdições ao sexo e à sexualidade criadas pelo cristianismo para disciplinar, controlar e moldar os corpos à reprodução e não ao prazer. Novas maneiras de exercer controle ou poder foram criadas e serviram à dominação econômica e cultural. Foucault percebeu, então, que tudo isso faz parte de um dispositivo, que engloba discursos, instituições, regulamentos, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições morais, filosóficas. “O dito e o não dito”, célebre frase de Foucault. Dispositivo é um operador teórico; é a rede que se estabelece da relação entre esses elementos (e até outros não citados). Ele dá um exemplo. Um dispositivo de aliança representa: ”sistema de matrimônio, de fixação, de desenvolvimento de parentescos, de transmissão dos nomes e dos bens”. Entendi que dispositivo é um termo sutilmente mais amplo do que tecnologia.
No livro “As revoluções do capitalismo I”, Maurizzio Lazzarato analisa o capitalismo do ponto de vista do trabalho e da produção, mas sobretudo, da transformação da subjetividade, da criação de agenciamentos, dispositivos e instituições. De gerar outras possibilidades de vida e outras formas de relação com a economia, a política, o corpo, a comunicação. Através da forma como encara cada dispositivo, revela o conjunto que relações que os constrói, citou: propriedade intelectual (“dispositivo jurídico de controle e da circulação do saber”); dispositivos tecnológicos; dispositivo de constituição da opinião pública; dispositivo da televisão; dispositivo maioria-minoria; dispositivo de poder.
Giorgio Agamben defendeu que o dispositivo de Foucault tem origem na palavra “oikonomia”, uma economia da casa. Para o filósofo, essa palavra coloca deus como um ser que articula, administra e governa o mundo. Ele definiu a oikonomia como um “conjunto de práxis, de saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar, governar, controlar e orientar, em um sentido em que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os pensamentos dos homens.”
Deleuze, então, vai arregaçar a definição de dispositivo, acrescentando às definições anteriores, as rupturas, as fraturas, as linhas de fuga. Sensibilizado por Foucault, Deleuze diz que dispositivo é um conjunto formado por linhas heterogêneas, que
“traçam processos que estão sempre em desequilíbrio, e que ora se aproximam ora se afastam uma das outras. Qualquer linha pode ser quebrada – está sujeita a variações de direção – e pode ser bifurcada, em forma de forquilha – está submetida a derivações. Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos numa determinada posição, são como que vetores ou tensores.” (DELEUZE, 1990)
Para Deleuze, saber, poder e subjetividade não possuem contornos definidos e estão em relação e disputa no dispositivo. Ou seja, o que é dado como dominante pode ser negado, questionado, rompido. Pode levar a um outro lugar.
DISPOSITIVO DO ÓDIO, POR QUE NÃO DA RAIVA?
Quando sofri a investida do grupo da “Terapia do Amor”, minha primeira reação foi o medo. Entendi que esse sentimento foi desencadeado pela luz da prudência que me fez, numa rápida avaliação, perceber que minha integridade poderia estar em risco. À medida que me distanciava, esse sentimento mudava de tom. A música que ouvia deu lugar aos gritos argumentativos que soavam na minha cabeça e que só eu escutava. Aquele grupo ecoava ódio, enquanto eu continha a manifestação da minha raiva.
Em casa, me lembrei de um artigo do filósofo Auriel Kolnai chamado “Os modos padrão de aversão: medo, nojo e ódio”(8). Kolnai nasceu na Hungria numa família judia em 1900 e, em 1926, se converteu ao catolicismo. A partir daí, ele se sentiu atraído a estudar sentimentos hostis. Durante sua vida (morreu em 1973) escreveu sobre medo, nojo e ódio, ou seja, emoções anti, contra. Reações que dificultam a convivência. Para ele, o ódio se direciona contra pessoas ou grupo de pessoas, coletivo de pessoas, e/ou atitudes e palavras que expressem aquelas pessoas ou aquela coletividade. O ódio coloca o outro no lugar da não salvação, da aniquilação, do extermínio, que pode também ser através da humilhação ou do rebaixamento; corpos destruídos pela humilhação. Depois de ricas associações entre essas emoções, ele conclui que não se aproveita nada do ódio porque o ódio não admite o diálogo.
É interessante que Kolnai não tenha manifestado grande interesse pela raiva, que muitas vezes é confundida com o ódio. Eu me interesso pela raiva. Para mim, a raiva tem uma função de resistência. É necessária.
COLONIZAÇÃO, ÓDIO, RAIVA, RACISMO RELIGIOSO E RESISTÊNCIA
“O ódio racial é real. E é humanizador poder resistir a isso com raiva militante.” (bell hooks)(9)
Carolina Rocha explicou que o que chamamos intolerância religiosa no Brasil é, de fato, racismo religioso. Porém, intolerância religiosa é o termo internacional que consta dos tratados de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Esse arcabouço legal internacional fala do direito à fé e da liberdade de culto para qualquer religião. Assim, quando falamos de intolerância religiosa aqui temos um termo reconhecido internacionalmente. Com a adoção do termo, organizações não-governamentais brasileiras apresentaram à OEA um levantamento jornalístico(10) com mais de 70 casos de ataques ocorridos na Baixada Fluminense, em 2016 e 2017, além disso, algumas lideranças puderam ser ouvidas.
Muitos nobres autores falaram sobre os impactos da colonização na população negra brasileira. Porém, a epígrafe de “Racismo e Sexismo”, de Lélia González é simplesmente arrebatadora para mim. Aliás, esse é um dos artigos que toda pessoa que deseja entender a luta antirracista e antisexista deveria ler. A epígrafe fala de racismo, do mito da democracia racial, de estereótipos, de violências físicas e psicológicas; fala de como ‘as maiorias silenciadas’ são tratadas quando se dispõem a falar. Ao longo do texto, ela vai desembaraçar os fios.
“Por isso, a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente pretende caracterizar. A gente tá falando das noções de consciência e de memória. Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela, consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar é sacar esse jogo aí, das duas, também chamado de dialética. E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a consciência faz tudo prá nossa história ser esquecida, tirada de cena. E apela prá tudo nesse sentido. Só que isso ta aí… e fala. (GONZÁLEZ, 1984)
Óbvio, eu poderia colocar a citação anterior no discurso indireto, mas isso faria justiça à linguagem que Lélia teve a ousadia de defender? Estou certa que não. Tive ainda mais certeza com a leitura de Killing Rage (1995), da militante norte-americana bell hooks. Nesse livro, ela une colonização, racismo e raiva.
A escritora começa dizendo que está num avião e confessa um desejo de matar, com requintes de crueldade, o homem branco que está sentado ao seu lado. A partir daí, ela narra um dia inteiro de racismos e de ódio que ela e sua amiga sofreram numa viagem a Nova Iorque.
Esse livro todo é genial, mas é grandiosa a forma como a autora constrói a memória do racismo, desde a colonização até o dia em que ela e sua amiga entram em um avião nos Estados Unidos, juntando a defesa da verbalização de uma raiva que os negros foram “ensinados” a conter. Crítica, bell hooks também vai refletir sobre essa raiva contida ao longo da história e o que ela provoca na militância. Cita dois psiquiatras negros, William Grier e Price Cobbs, que, influenciados pela corrente freudiana, concluíram, no livro Black Rage (1980), que a raiva era uma demonstração de impotência. Defenderam a patologização da raiva. Não enxergaram, conforme bell hooks expõe, uma resposta potencial à opressão e exploração.
Outro ponto de destaque do texto de hooks é a importância da memória, também ressaltada por González. hooks fala sobre o quão empoderador foi para ela ter consciência dos processos de silenciamento e subalternidade impostos às pessoas negras. Ela descreve que quanto mais ela estudava e conhecia as origens da opressão e da exploração dos negros, mais sentia raiva. Num dado momento, porém, ela percebeu que uma pessoa negra sem vergonha de sua raiva e que a usa como um mecanismo para despertar a consciência crítica não tem lugar na sociedade, tal como está estruturada. Essa atitude só será aceita em outra sociedade.
bell hooks encarou a raiva como forma de crescimento e mudança, com possibilidade de destruir, mas também de construir, em especial, a luta de resistência. Ela não matou o homem no avião, mas ouviu sua raiva e escreveu sobre ela. Escreveu especialmente para si. Para se lembrar a tomar uma posição, falar, escolher entre ser cúmplice ou resistir. “Todos os nossos silêncios diante do ataque racista são atos de cumplicidade.” (hooks, 1995)
Em “Uma raiva de segunda ordem”, María Lugones defende a raiva inaceitável, a raiva difícil de lidar, deslegitimada, logo, associei à raiva que muitas mulheres negras sentem e manifestam. Assim como bell hooks, Lugones também trata do potencial transformador da raiva, mas o que me atrai atenção, é o fato da autora argentina expressar ao longo do texto importância dos sons, tons da raiva – assim como González e hooks. Isso me fez lembrar dos gritos argumentativos que só eu ouvi.
Ela faz uma análise da raiva de primeira ordem, a que tem a função de comunicar. A pessoa está com raiva e vai buscar um sentido dentro das interpretações comumente aceitas e massificadas da sociedade, formas de comunicar essa raiva. Ela estará atenta a como a sociedade vê seus movimentos, no tom da sua voz, suas palavras – enfim, em como está passando sua mensagem por respeito.
Lugones diz que essa raiva é importante, mas não se detém nela. Na verdade, o que interessa a Lugones é a raiva de segunda ordem. É a raiva avassaladora como a paixão, a raiva da metamorfose, da transformação. Uma raiva que ela sentiu e se viu frenética, sem pensar em seus movimentos, no uso do espaço, no tom da voz. Uma raiva, uma ira, que a fez parecer louca, sem qualquer preocupação em se encaixar a qualquer lugar para ser apreciada ou respeitada.
Por quê? Porque essa raiva, assim como a de bell hooks, a fez entender sobre as violências psicológicas que a colonização impõe sobre os que foram colonizados. Ela fala das mulheres “barraqueiras”, que geralmente não são ouvidas quando expressam sua raiva. Lugones observou essas mulheres e viu que eram completamente lúcidas, suas palavras eram limpas, verdadeiras, diretas. Ali não havia nenhuma perda cognitiva, como os estudos psicanalíticos nos fizeram acreditar.
Para ela, essa raiva foi confundida com ódio propositalmente para despotencializá-la. María Lugones acredita, por exemplo, que quando uma mulher torna sua raiva inteligível, mesmo na luta por direitos, é porque ela mudou.
“Como se a potência geradora daquela raiva inicial tenha sido castrada, adaptada, moldada, formatada para se fazer compreensível. Desta forma, ela se tornaria despotencializada.” (LUGONES, 2003)
A resposta de Audre Lorde para o enfrentamento ao racismo é a raiva que, assim como as autoras anteriores, ela ignorou e silenciou durante muito tempo. Sentiu medo dessa raiva, mas aprendeu que esse medo não ajuda em nada. (Vou me lembrar disso, se vou!) Canalizou sua raiva para lutar contra opressões, pessoal e institucional, tornando-a fonte de energia para a mudança, da libertação e do empoderamento. Para a autora, a raiva pode ser uma força para ajudar a criar um mundo de amor no qual a necessidade de destruição do outro, ou seja, de ódio, dará lugar a uma convivência se não harmoniosa, respeitosa, com as diferenças.
CONCLUSÃO
Acredito que o proselitismo religioso se configure como um dispositivo de ódio, pois, envolve discursos, instituições, comportamentos, tecnologias, técnicas etc. em torno de um deus, ou de uma doutrina, que detém a verdade absoluta do mundo e exclui a possibilidade de coexistência com outras religiões ou outras crenças que não compartilham do mesmo entendimento espiritual do mundo ou a corrente político-filosófica. Ao pretender que todas as pessoas sigam única doutrina, o proselitismo propõe a erradicação, o extermínio, de outras religiões ou políticas e, em associação, propõe o ódio.
No Brasil, especificamente, as religiões de matriz africana e indígenas têm sido perseguidas e, em determinados territórios, exterminadas por esse dispositivo. Entender as raízes do funcionamento do proselitismo e de como aconteceu o seu desenvolvimento no Brasil pode ajudar a criar uma resistência em defesa da preservação de determinadas culturas, a saber, africanas e originárias. E será a raiva, não o ódio, a ferramenta que pode fortalecer a resistência e nos abrir possibilidades de caminhar por outras linhas.
NOTAS
(1) O texto foi escrito antes da ocorrência da pandemia da COVID-19. Se puder, fique em casa!
(2) Graduada e mestra em História pela Universidade Federal Fluminense, doutoranda em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora do livro O Sabá do Sertão: Feiticeiras, Demônios e Jesuítas no Piauí Colonial (1750-1758).
(3) Em 2019, João Freire Filho e Henrique Mazetti ministraram a disciplina “O ódio acima de tudo: formas e normas da aversão extrema” no Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
(4) Leia mais sobre o assunto na reportagem “Dois séculos de guerra cristãs: entenda o que foram as Cruzadas”, da revista Galileu, disponível em https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/Historia/noticia/2019/10/dois-seculos-de-guerra-cristas-entenda-o-que-foram-cruzadas.html e o artigo “O poder da Igreja, a inquisição e a ignorância da Idade Média”, disponível em https://www.jornaldocomercio.com/site/noticia.php?codn=7230.
(5) Leia mais em “Neopentecostais armados atormentam minorias religiosas brasileiras”, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/12/neopentecostais-armados-atormentam-minorias-religiosas-brasileiras.shtml e “Por que os cultos de matriz africana são alvos da intolerância religiosa?”, disponível em redebrasilatual.com.br/cidadania/2019/10/religoes-matriz-africana-intolerancia/.
(6) O texto “A violência contra religiões de matriz africana”, disponível no site da ONG Criola, oferece acesso a dois documentos importantes: “Levantamento de casos de racismo e intolerância religiosa contra religiões de matriz africana” e “Mapa da violência contra terreiros de religiões de matriz afrobrasileira”. Em https://criola.org.br/a-violencia-contra-religioes-de-matriz-africana/, acessado em 13 de maio de 2020.
(7) https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/tecnologia/
(8) Original: “The Standard Modes of Aversion: Fear, Disgust and Hatred”
(9) Com essa grafia.
(10) http://criola.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Diagnostico-da-situacao-da-intolerancia-religiosa.pdf
BIBLIOGRAFIA
AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? Outra Travessia, 2005.
DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990, pp. 155-161.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber; tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1998.
GONZÁLEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
GOMES, Viviane. A violência que ameaça a fé. Blogueiras Negras. 2019. Disponível em: http://blogueirasnegras.org/21diasdeativismo-a-violencia-que-ameaca-a-fe/. Acesso em: 20/04/2020.
HOOKS, bell. Killing Rage. 1st ed., New York: Henry Holt and Company Inc. Publishers, 1995.
KOLNAI, Auriel. The Standard Modes of Aversion: Fear, Disgust and Hatred. In: Mind. Vol. 107. Oxford University Press, 1998.
LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo I; tradução de Leonora Corsini. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
LORDE, Audre. Sister Outsider. New York: Crossing Press Berkeley, 1984.
LUGONES, María. Hard-to-Handle Anger. In: LUGONES, María. Pilgrimages/Peregrinajes: Theorizing Coalition Against Multiple Oppressions. New York: Rowman & Littlefield Publishers, Inc., 2003. p. 98-111.
MBEMBE, Achile. Necropolítica. Arte & Ensaios – Revista do PPGAV/EBA/UFRJ, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151, dezembro, 2016. Disponível em: https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2019/04/necropolitica.pdf. Acesso em 13 de maio de 2020.
Imagem: Miguel Á. Padriñán, no Pexels