Taquaras-Facas, ou Itaquaquecetuba
Para os Guaianá, “Itaquaquecetuba” é a expressão falada de um corpo-território que possui uma quantidade abundante de taquaras-faca. Se hoje, “Itaquaquecetuba” dá nome a uma cidade que fica às margens da Zona Leste de São Paulo, é por causa da grande quantidade dessas plantas afiadas que nasciam nas margens dos rios Tietê e Tipóia. E justamente pelo fato das taquaras serem cortantes, passíveis de romper objetos, corpos e estruturas, as chamamos de taquaras-facas.
Mas, para mim, “Itaquaquecetuba” também possui outros significados. Talvez, o mais importante seja: comunidade, é a periferia que me acolheu desde pequena e misturou cores, saberes, culturas e línguas a quem eu sou hoje. Itaquá, como chamamos carinhosamente, contribuiu para minha construção enquanto sujeita política, fez do meu corpo não só mais um corpo, mas um corpo-território itaquaquecetubense.
Itaquaquecetuba, portanto, como toda periferia brasileira, é um corpo-território que vive e resiste. Porém, a deputada Erica Malunguinho nos lembra: nenhuma resistência é opcional, a gente só resiste porque se não a gente morre. Itaquá não possui espaços de troca de ideias e saberes entre as comunidades, não possui lazer ou cultura acessível, nem mesmo lugares de memória política. Mas apesar das inúmeras tentativas de silenciamento, há resistência política. Até porque, Itaquaquecetuba é taquara-faca, é corpo-território, e por isso é capaz de cortar tradições colonialistas que tentam explorar e se apropriar de corpos e saberes de povos negros, indígenas e quilombolas que ergueram essa cidade.
Principia: onde tudo começou
Há 5 anos tive o privilégio de adentrar os muros da Universidade de São Paulo, um lugar onde ninguém da minha família havia pisado antes. O ir e vir em 6h diárias no transporte público me fez refletir muito sobre as coisas que eu escutava, via e sentia na sala de aula e nas trocas com outros estudantes. Também, me fez perceber mais o espaço em que meu corpo circulava: sair da periferia e me aproximar de uma das regiões mais nobres de São Paulo. Quanto mais próxima eu estava da cidade universitária, mais corpos brancos se juntavam ao meu, mais palavras desconhecidas atravessavam meu caminho, mais olhares de estranhamento se dirigiam a mim.
Por causa das dificuldades do ir e vir cotidiano, tive tempo para refletir sobre vários termos e ideias debatidos por essa dita “elite intelectual”. Mas, uma palavra em especial despertava minha curiosidade: democracia. Vira e mexe, no trem para casa, eu me questionava: que democracia é essa de que eles tanto falam?
Assim, curiosa como sou, procurei entender o que é a democracia brasileira. Tanto na universidade como fora dela, a democracia era definida como um sistema onde todos podem ocupar espaços políticos de poder. Mas, será que podem? Porque eu não via muitas mulheres negras como eu tendo a possibilidade de se eleger, tendo grana, liberdade de manifestar suas ideias e de circular livremente. A única coisa que eu via era um Congresso com representatividade de 3% de nós, uma Câmara com 0% de pretas e uma enxurrada de notícias sobre a violência que atravessava corpos parecidos com o meu que tinha a audácia de chegar ao poder político.
Então, resolvi ler, escutar, assistir e conversar com mulheres negras que pensam e se mobilizam politicamente há tempos nesse sistema que chamamos de democracia. Fui atrás de dados: eu queria saber quem eram as mulheres negras candidatas na minha cidade. Quando identifiquei alguns nomes, marquei uma conversa com cada uma delas. Nestas conversas, me vi encarando olhos como os meus, tons de pele por vezes mais escuros ou mais claros, histórias e ideias diversas, mas que sempre convergiam em olhos d’água, em que se via um mar de dor e amor. Dor, por toda violência que atravessava a tentativa de ocupar a política por essas mulheres negras, amor pelo fazer político, pela mudança social e sobretudo pela comunidade.
Hoje, escrevo para manter viva a memória das mulheres negras de Itaquaquecetuba que vieram antes de mim, para eternizar suas estratégias políticas de resistência, mas principalmente: escrevo para exigir uma democracia amefricana. Uma democracia que traz possibilidades de futuro e presente para as periferias e povos negros e indígenas do Brasil.
Por uma democracia amefricana
Francia Marquez, primeira vice-presidenta negra da Colômbia, resume bem o que é a Democracia Amefricana: é uma possibilidade para que pessoas negras, indígenas, quilombolas e periféricas possam vivir saboroso (ou viver gostoso, em português). Uma possibilidade de bem-viver, com acesso à saúde, moradia, educação, transporte e nutrição de qualidade. Este termo reivindica a partir da categoria político-cultural da amefricanidade de Lélia Gonzalez, uma democracia feminista, negra, decolonial e anticapitalista. Uma forma de fazer política que coloca no centro corpos e olhares negros e indígenas do mundo, que considera nessa centralidade o território como sujeito que co-existe com os demais sujeitos políticos.
Mas reitero: o que chamo de Democracia Amefricana, não é uma ideia ou conceito inovador e muito menos que parte de mim. Diversas amefricanas que pesquisaram e se mobilizaram politicamente antes de mim, seja partindo de Itaquaquecetuba ou de outros territórios periféricos brasileiros, já transmitiam essa possibilidade de viver. Eu apenas faço o trabalho de reunir e traduzir tradições e ideias que só se propagaram oralmente e que coletei através de entrevistas. Neste texto-manifesto em especial, decidi destacar a memória política de duas mulheres negras itaquaquecetubenses: Luisa e Teresa. Para contribuir com a ideia de democracia amefricana também referencio acadêmicos negros, indígenas e quilombolas que tive a oportunidade de conhecer através de livros, palestras, grupos de estudo e aulas.
Começo referenciando Teresa, umas das ativistas negras mais velhas de Itaquaquecetuba, que contribuiu através da arte e da política para a estruturação de espaços políticos formais e informais na cidade. Teresa resistiu sua vida toda, enfrentando uma ditadura, o silenciamento durante e mesmo após a ditadura (na chamada “redemocratização”), e nas inúmeras tentativas de apropriação e apagamento de seu trabalho na política institucional por homens brancos da elite – que muitas vezes nem haviam pisado em Itaquá. Esse movimento que Teresa realiza, buscando preparar a estrada para que pessoas negras tenham a possibilidade de atravessar e construir suas trajetórias políticas pela ocupação do poder, será chamado por Abdias do Nascimento de quilombismo.
O quilombismo é uma ação, uma forma de viver revolucionária, que se estrutura inicialmente pela resistência ao colonialismo e cujo propósito é o Estado Quilombista: uma estrutura sócio-política econômica baseada nos quilombos. Neste sistema político, o cuidado com a terra, com as crianças, idosos e mesmo com os jovens é feito de maneira coletiva e equitativa. Isso significa uma ruptura com o patriarcado, uma vez que a mulher não é a única responsável pelo cuidado; mas também uma ruptura com os ideais racistas e individualistas impostos pelo capitalismo, já que o poder é centralizado no povo preto. No Estado Quilombista todos têm voz, direito ao bem-viver e a terra. Mas, não só os seres humanos são tratados com respeito e dignidade: a terra, as águas e mesmo os animais, são considerados. Até porque, como reitera Abdias, muitas das religiões de matriz africana, assim como as religiões indígenas, entendem a natureza e seus elementos como sujeitos.
No entanto, a prática de organizar e liderar comunidades inteiras nas periferias, buscando a justiça e a coletividade, não é só uma teoria ou termo acadêmico proposto por Abdias e muito menos uma exceção da trajetória de Teresa. Luísa, uma mulher afro-ameríndia de Itaquaquecetuba com quem pude dialogar, já pensava na criação de uma política pautada e implementada coletivamente desde muito jovem. Luísa, em todas suas mobilizações políticas na cidade organizou espaços para que todos pudessem falar de seus anseios e ideias. Ela facilitou a escrita de projetos políticos para Itaquaquecetuba junto do povo de Itaquá e se movimentou em campanhas eleitorais para se fazer ouvir a voz da periferia.
Durante a conversa com Luísa, uma de suas falas me tocou, ela disse: “Itaquaquecetuba foi erguida em cima de um cemitério indígena e desde então a cidade é tratada pelas elites brancas como um animal desvalorizado, tipo uma vaca que a gente só suga todo leite que ela tem, mesmo que a machuque, para satisfazer nossas vontades”. Para que essa violência cesse, ela continua, é preciso cuidar de nossa comunidade, da cidade que nos acolheu, e somente através do afeto pelo território e os corpos que circulam nele, será possível vivermos dignamente. Luísa acredita que será por meio da ocupação de corpos e saberes negros e indígenas no poder político, que poderemos romper com esse ciclo de violência e puxar as raizes de sistemas racistas, patriarcais e colonialistas que se multiplicam como praga nas terras brasileiras e itaquaquecetubenses.
Para Denise Ferreira, a estruturação de um novo sistema político que nos permitirá ocupar o poder, deve se iniciar no ato de decolonizar: destruindo sistemas e ideias impostos pelo colonizador, e isso será feito pelo que ela chama de “desconhecer e desfazer de Mundo”. Ou seja, é preciso adotar novos olhares, novas formas de interpretar a realidade e o modo de viver que foi imposto pela branquitude colonizadora. Neste processo, a centralidade precisa estar nos imaginários políticos radicais de povos indígenas, quilombolas e periféricos. Jurema Werneck complementa esse argumento, afirmando que para destruir e redesenhar a democracia, temos de dar visibilidade para corpos e ideias de povos negros e indígenas. Sendo a mulher negra uma sujeita política central nesta dinâmica.
A partir desses pontos, concluo com uma reflexão de Denise sobre o grito. Denise acredita que o grito é importante porque ele teima em não significar: o grito é a expressividade da revolta, a revolta pela violência que mata e silencia corpos negros e indígenas. Ainda que as palavras reunidas em uma folha de papel não possam trazer o impacto do grito, finalizo esse texto-manifesto com a intenção de gritar, de exigir, uma Democracia Amefricana. Escrevo por uma democracia amefricana: para que as vidas, as mobilizações e os corpos de amefricanas sejam acolhidos pelo sistema político, para que deixem de nos violentar, de nos matar, de nos silenciar. Grito por uma democracia amefricana para que haja justiça, por Marielle e tantas outras mulheres pretas que foram assassinadas pelas elites dirigentes do Estado. Exigo por uma democracia amefricana para que negros e indígenas tenham a possibilidade de sonhar com um futuro possível. Por uma poética negra feminista, por uma democracia amefricana!
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1 GONZALEZ, Lélia. A Categoria Político-Cultural da Amefricanidade. In: RIOS, Flávia; LIMA, Márcia (Org). Por um
feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
2 Como a pesquisa que estou realizando garante a preservação do anonimato em todas as entrevistas e diálogos
que tive com mulheres negras candidatas em Itaquaquecetuba, os nomes não são reais. Reitero também, que os nomes possuem caráter simbólico: “Luísa” em homenagem a Luísa Mahin, líder da chamada “revolta dos malês”,
momento histórico e político entendido pelo movimento negro como o marco real da Independência do Brasil; e
“Teresa”, para relembrar Teresa de Benguela, uma rainha quilombola que organizou diversas mobilizações
políticas no centro-oeste brasileiro, como escrevo em Julho (mês em que se celebra o dia da Mulher Negra
Latino-Americana e tem como figura principal Teresa), nada mais justo que referenciar sua memória.
3 NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo. Oficina Palimpseustus, 1980. Disponível em:
<https://www.oficinapalimpsestus.com.br/quilombismo/>. Acesso em: 01 de julho de 2022.
4 FERREIRA, Denise. “O evento racial ou aquilo que acontece sem o tempo” (2016). In: PEDROSA, Adriano et. al.
(orgs.) Histórias afro-atlânticas. São Paulo: MASP, 2018.
5 WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra
o sexismo e o racismo. Revista da ABPN, vol. 1, nº 1, p. 8-17, 2010.
Franciele Falcão | Minibiografia
Franciele Falcão é amefricana e itaquaquecetubense. Atualmente, estuda Relações Internacionais na USP e pesquisa democracia, gênero, raça e território a partir de uma análise política e internacional. Também é articuladora regional do sudeste pelo movimento Mulheres Negras Decidem.