O corpo sempre foi um espaço de disputa e, ao longo da história, ele foi modelado e remodelado a partir de uma série de discursos normatizantes e disciplinadores. A forma como nos portamos, nos vestimos, como enxergamos o corpo está relacionada aos discursos que construímos e desconstruímos ao longo da vida. A partir do século XIX a ciência teve um papel importante na construção da percepção do corpo como um marcador de diferenças. Tomando o homem branco ocidental como símbolo máximo e universal da humanidade e civilização, cientistas europeus dissecaram, mediram, patologizaram e classificaram os corpos considerados desviantes do padrão masculino e eurocêntrico. Esse discurso científico justificou uma série de práticas políticas racistas e sexistas – institucionais ou não – que permanecem até os dias de hoje. Foi nesse cenário que Sarah Baartman representou um papel trágico.
Sarah Baartman nasceu em 1789 na Africa do Sul. Era da etnia khoisan – que ficou conhecida pelo termo pejorativo “hotentote”, que significa gago na língua neerlandesa – e aos 10 anos começou a trabalhar como empregada doméstica em uma fazenda holandesa na Cidade do Cabo, quando foi batizada e passou a ser chamada de Saartjie (diminutivo de Sarah). Ela foi levada para Londres pelo irmão de seu patrão e exibida por toda a Europa em teatros e feiras como uma selvagem que teria sido capturada na Africa, juntamente com outras pessoas consideradas “anormais” na época – e nos dias atuais – como anões, indígenas, orientais, gigantes, etc. Nos palcos europeus, Sarah ficou conhecida como a “Vênus Hotentote”, alcunha que a acompanhou pelo resto de sua vida e ficou inscrita na história ocidental.
Essa curiosidade do público por pessoas “exóticas” – ou seja, que não eram europeus dentro dos padrões de normalidade determinados pelas teorias científicas da época – era fruto do pensamento hegemônico da época, que buscava reforçar em todas as esferas (inclusive no entretenimento e diversão) a supremacia branca, européia e masculina. A plateia deixava as apresentações ciente e segura de sua própria natureza em relação ao “outro”, em uma hierarquia que reforçava a superioridade de quem observa sobre quem era observado. Dentro dessa lógica, Saartjie foi representada como um contraponto à identidade masculina européia: de um lado a mulher negra, primitiva, sexualizada e selvagem, e do outro o homem branco, racional e civilizado. E foi a partir dessa percepção que ela chamou a atenção de cientistas naturais renomados como Cuvier e Saint-Hilaire.
Nas “reuniões científicas”, Sarah era exposta seminua, medida, observada e analisada como parte da fauna e flora africana, completamente destituída de humanidade. Frequentemente comparada com orangotangos, ela e toda sua etnia foram classificados como uma raça entre os seres humanos e as familias mais nobres de macacos. Seus órgãos genitais bem como suas nádegas eram tomadas como prova de sua natureza primitiva, animalesca e sexual. Sarah,assim como as mulheres negras de um modo geral, foi reduzida ao seu corpo, ou melhor, a uma parte de seu corpo, seus órgãos sexuais.
As narrativas formuladas a partir do estudo de Sarah contribuíram para a construção da representação das pessoas negras como indivíduos inferiores, irracionais, animalescos e hipersexualizados, características que ainda permanecem no imaginário ocidental. Mesmo depois de sua morte, o corpo de Sarah continuou sendo exposto em cursos e palestras,e não por acaso, sua genitália – que ela nunca deixou ser vista em vida – era disposta ao lado dos cérebros dos “grande homens franceses”, como Descartes, no Museu do Homem em Paris, numa clara demonstração do contraponto entre o racional (masculino e branco) e o sexual (feminino e negro).
Seu corpo fez parte do acervo público até 1974, quando foi retirado e guardado, apesar de ter sido exibido em mostras itinerantes. Quase sessenta anos depois do primeiro pedido, o governo francês devolveu os restos mortais de Sarah para Africa do Sul em 2002, porém o discurso utilitarista e desumanizador ainda era latente.
Obviamente Sarah não foi a unica pessoa a ser estudada pela ciência nessa época, mas foi uma das mais famosas. Sua trajetória mostra como a ciência racialista do século XIX classificou as populações não brancas como sub humanas e contribuiu para a construção do discurso racista e sexista que atingem as mulheres negras até hoje. Saartjie foi considerada pelos europeus como uma mulher africana tipica e as características usadas para descrevê-la foram incorporadas pelo imaginário social e são constantemente reutilizadas, ainda que sob outras formas, para representar as mulheres negras. Basta nos lembrarmos do slogan da cerveja preta da Devassa: “É pelo corpo que se reconhece a verdadeira negra”. Na figura popular da “Mulata tipo exportação” e as diversas formas que essa fala assume tanto na cultura popular quanto na representação midiática, literária, musical, etc.
Não é coincidência que a bunda e a sensualidade sejam, até hoje, as principais formas de representação das mulheres negras ao redor do mundo. A violência sexual contra as mulheres, praticada desde a escravidão, reforçada e justificada pela ciência no século XIX e que permanece naturalizada na sociedade brasileira, as priva do direito de afetividade e do desenvolvimento de uma sexualidade plena e autônoma, ou seja, do direito de existirem como indivíduos e não como objetos a serem controlados e utilizados para o prazer do outro. Apesar dessas teorias serem consideradas obsoletas pela ciência, ainda precisam ser desconstruídas para que a luta por um mundo igualitário possa avançar.