Pinceladas bem marcadas desnudam três mulheres negras, ou melhor, três esculturais corpos negros femininos repousam sobre a areia clara do que parece ser uma praia. Sobre eles, a frieza opressiva de um céu azul/lilás que também cumpre a função de dar perspectiva a paisagem.
A pintura é da artista gaúcha Maria Lídia Maglini (1946-2012), primeira mulher negra a se formar no Instituto de Artes da UFRGS, no ano de 1966. Além desta técnica, a artista transitou pelo desenho, gravura, cenografia, realizou ilustrações para jornais de Porto Alegre e criou capas de livros e cartazes.
Também aventurou-se pelo teatro, como atriz. Integrou o elenco de peças como La Celestina, de Rojas, As criadas, de Jean Genet, e no papel de O Negrinho do Pastoreio, de Delmar Mancuso. Em 1980 muda-se para São Paulo, Passou por Minas Gerais e, em 1997, se transfere para o Rio de Janeiro onde morre, completamente sozinha, em 2012.
A arte para Magliani era um projeto de vida. Na obstinada persistência em busca de seus propósitos, a artista acabou trilhando uma trajetória tão dramática e intensa quanto sua expressividade artística. Nem mesmo com sua potência gestual, seja na fluidez do desenho, no embate com a madeira ou na dança frenética dos pincéis, Magliani foi capaz de seduzir por completo as estruturas dominantes do mundo arte. Nos espaços de disputas pelo poder simbólico SER não basta, é preciso TER.
Magliani se posicionou como uma propositora de questionamentos. Não via sentido em explicar suas imagens, pois não tinha tais respostas, apenas perguntas. Conforme a artista mesmo declarou, seu trabalho pretendia expressar sua própria condição humana, mostrar a si como um todo, o que também implica em tornar visível a subjetividade de uma mulher negra e com grandes dificuldades financeiras, tornar visível o universo pessoal de uma artista que viveu e produziu em um contexto de cerceamento dos direitos civis, mas que também vivenciou a progressiva abertura política no país, assim como presenciou a revolução que transformou o fazer artístico.
A deformação da imagem visual, a temática da solidão e da miséria humana, característicos da linguagem expressionista, são em Magliani uma alegoria do seu tempo, metáforas sobre a miséria da realidade cotidiana, de sua própria realidade. Sobre esse aspecto de sua produção Sergius Gonzaga diz o seguinte:
A arte de Magliani tem a densidade de um pesadelo opressivo […]Penso que esses trabalhos devem ser vistos de outro ângulo: que descubramos neles a alegoria de nosso tempo, uma espécie de metáfora de uma época de deformação e aviltamente do ser humano. A um universo histórico de autoritarismo, violência, corrupção e impunidade corresponderá uma arte aberta para o caricatural, o feio, o sórdido. Uma arte reveladora – apesar de sua linguagem simbólica –, o grau de coisificação a que fomos submetidos […] os seres de Magliani nos remetem obrigatoriamente para a realidade que os tornou possível. A isso chamamos arte social (GONZAGA, 1979).
Já no período de sua formação a pelotense imprimia em seus trabalhos a marca que conferiu coerência ao conjunto de sua produção consolidando-a como artista: dar voz, por meio da imagem, a solidão do corpo. Um corpo que na maioria das vezes é feminino (normalmente representado ao longo da história da arte pela mediação do olhar masculino), mas que também é negro e, sendo um corpo negro, carrega especificidades que, segundo a teoria da interseccionalidade, exigem um olhar diferenciado na problematização sobre as questões de gênero.
Teorizado por Kimberlé Crenshaw em 1989, o conceito de interseccionalidade consiste na não hierarquização das lutas sociais de gênero, classe ou raça, sobrepondo-as umas as outras. Segundo esta visão, no que diz respeito à questões de gênero, a noção de feminismo é diferente para a mulher negra, porque sua realidade é distinta da realidade das mulheres brancas, por isso é necessário que se identifique a categoria de mulher de que se está falando.
Visando contrapor a universalização do gênero feminino e a essencialização da noção de mulher segundo os padrões branco, classe média e heterossexual, o feminismo interseccional ganha força a partir da década de 1990 fomentando a formação de uma terceira onda do feminismo, também chamada de pós- feminismo. Intelectuais negras como a já mencionada Kimberlé Crenshaw, Bell
hooks, Audre Lorde e Lélia Gonzalez, no Brasil, passam a considerar em seus estudos a intersecção entre raça, classe social, gênero e sexualidade, conceito que já vinha sendo discutido nos anos de 1970, no interior dos movimentos pelos direitos civis por feministas negras, entre elas Ângela Davis, inclusive no livro Mulheres, Raça e classe, de 1981, considerado um clássico da interseccionalidade.
Desde o período escravista, a mulher negra foi silenciada pela opressão do racismo, da pobreza e pelo machismo, sofrendo, portanto, tripla opressão. Conscientes disso estas intelectuais romperam com os silêncios impostos à mulher negra por vozes que até então operavam unilateralmente os discursos a cerca da diversidade e do sexismo. Vozes originadas na sociedade escravocrata, mas que tiveram eco no pós abolição, inclusive, no seio do movimento feminista tradicional, perpetuando no tempo e no espaço discursos que colocam a mulher negra num lugar de subalternidade, de exotização e de sexualiadade exacerbada.
A impossibilidade de pensar uma categoria universal de mulher fica evidente quando se pensa no mito da fragilidade feminina, argumento central na lógica da desigualdade entre os sexos que regulamentou a hierarquização dos papéis sociais, uma vez que a construção da feminilidade negra durante o período escravista é a de uma mulher com força física similar à do homem e, por isso, capaz de trabalhar de forma equiparada nas plantações de algodão, cana-de-
açúcar ou de café. Além deste estereótipo negativo, segundo bell hooks, a mulher negra é muito vista pela dimensão da emoção e da sexualidade e não pela produção de conhecimento. É neste ponto que a pintura de Maria Lidia Magliani encontra o pensamento interseccional do feminismo negro.
Os três corpos negros sobre as areias brancas parecem remeter ao imaginário social forjado pelo mito da hipersexualidade feminina negra. É preciso pontuar que a arte para Magliani não era uma plataforma para a militância, ela não fazia parte de nenhum movimento ideológico específico, mas dizia que seu trabalho era um espelho de si, de todas as ideias que a formaram ao logo de sua vida, incluindo as questões feministas, da negritude e da ecologia. Podemos então pensar seu trabalho como um espelho refletindo em plasticidade os silenciamentos e a solidão impostos ao seu corpo negro de mulher. Nessa tomada de posição, a artista se coloca como um sujeito político que a partir de seus questionamentos pessoais abre diálogos sobre o imaginário social em torno do feminino negro. É como se suas mulheres desprovidas de cabeça ou suas gordas pretendessem romper com o solitário mutismo de séculos de opressão à feminilidade negra.
Ao operar tais discussões a artista assume um lugar de fala na representação da negritude, isto é, um indivíduo negro, enquanto artista visual, lançando um olhar sobre si mesmo, sobre o universo sociocultural afro-brasileiro e sua relação com o conjunto da sociedade. Até a primeira metade do século XX, a figura do negro foi, predominantemente, representada na história da arte brasileira pelo olhar do outro, do artista branco, e fica, portanto, a mercê dos conceitos e preconceitos deste olhar, salvo por algumas exceções como Wilson Tibério e Heitor dos Prazeres.
A representação do negro a partir de um olhar próprio tomou corpo num modernismo tardio com artistas como Rubem Valentim 91922-1991), Abdias do Nascimento (1914-2011), Mestre Didi 91917-2013) e Emanuel Araújo (1940) retratando a cultura afro-brasileira com destaque para a religiosidade de matriz africana.
Para Tadeu Chiarelli esse eixo temático ganha novos contornos na arte contemporânea a partir da obra “A parede da memória (1994), de Rosana Paulino. A artista representa para ele um “marco da presença de uma nova postura dos artistas afrodescendentes em relação à arte e à cultura brasileira, na reflexão sobre a presença negra na história do Brasil Rosana Paulino é, sem dúvida, referência nessa tomada de posiçãode artistas negros, tendo, inclusive, aberto caminho para muitos outros artistas que atuam na cena contemporânea com trabalhos de altíssima qualidade.
Entretanto, sob meu ponto de vista, é preciso considerar que Maria Lidia Magliani a precede no que pode ser denominado um Nós por nós no âmbito da produção de cunho contemporâneo, isto é, na proposição de diálogos, por artistas negros, em torno do imaginário social sobre a população negra, uma vez que, conforme refere Círio Simon, sua arte se situa entre o formalismo modernista e o conceitualismo pós-moderno.
Ao fazer da arte seu propósito de vida Magliani ocupa, nem sempre de forma amistosa é verdade, um espaço de poder simbólico consagrado como privilégio de homens (brancos) e, por isso, um lugar de dupla resistência para ela. Um verdadeiro milagre, segundo Linda Nochlin, “dadas as esmagadoras chances contra as mulheres ou negros de alcançar excelência em territórios de prerrogativa masculina e branca como a ciência, a política e as artes”.
Por meio de sua pintura, Magliani dá voz àquelas que não encontram meios para falar e, com isso, abre a possibilidade de (re)significação da imagem de hipersexualizada da mulher negra, de um corpo desprovido de mente, logo desprovido de subjetividade, e incapaz de produzir conhecimento. Segundo o pensamento da filósofa e feminista Djamila Ribeiro, romper com o silêncio é romper com as violências naturalizadas e cotidianas. Dar voz ao subalternizado é devolver-lhe a humanidade. Assim, é possível dizer que os silêncios rompidos pela artista gaúcha em suas obras autorreferentes fazem dela uma precursora na materialização poética das pautas de gênero por um viés interseccional.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHIARELLI, Tadeu. Arte Internacional Brasileira. SP: Lemos Editorial & Gráficos Ltda, 2002.
CUNHA, Diane Kolker Carneiro. Mulheres na arte e na vida: representação e representatividade. Artigo para o PPGCA-UFF.
hooks, bell. Aint i a womem: black womam in feminism. Tradução livre para a Plataforma Gueto 2014.
GONZAGA, Sérgius. Magliani: A solidão do corpo. Catalogo de exposição Pinacoteca Aldo Locatelli, 2013.
NOCHILIN, Linda. Porque não houve grandes mulheres artistas? SP: Edições Aurora, 2016.
MATTAR, Denise. Magliani: A solidão do corpo. Catalogo de exposição
Pinacoteca Aldo Locatelli, 2013.
ROSA, Renato. Magliani: A solidão do corpo. Catalogo de exposição Pinacoteca
Aldo Locatelli, 2013.
SIMOM, Círio. Iconografia sul-rio- grandense, 2016. In:
http://profciriosimon.blogspot.com.br