No dia 11 de junho de 2020 recolocamos o “Des-embranquecendo a cidade” no mundo em outro formato: a conversa online no nosso canal no Youtube. Essa mudança se deu muito devido a condição do atual contexto que estamos vivendo. No lançamento desse projeto, tivemos a honra de ter como convidada a escritora mineira Cidinha da Silva. .
Cidinha é escritora e editora na Kuanza Produções. Publicou 17 livros distribuídos pelos gêneros crônica, conto, ensaio, dramaturgia e infantil/juvenil. Seu livro ‘Um Exu em Nova York’ recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional na categoria contos no ano de 2019. ‘Explosão Feminista’, um ensaio do qual é co-autora, foi finalista do Jabuti (2019), e recebeu o Prêmio Rio Literatura 4ª edição (2019). Tem publicações em alemão, catalão, espanhol, francês, inglês e italiano. Seus livros estão disponíveis no site da Kuanza Produções: www.kuanzaproducoes.com.br.
Para quem não assistiu ou para quem assistiu e não quer perder todas as riquezas que Cidinha nos apresentou, destacamos aqui alguns trechos principais dessa conversa que está disponível na íntegra no canal do youtube.
Gostaríamos de iniciar essa conversa com um poema do livro Canções de Amor e de Dengo (2016. Edições Me Parió Revolução)
Manifesto
“Podem me catalogar como quiserem. Apenas não esperem que eu vista as roupas que me dão. Ou entre em caixinhas por vontade própria”
Inspiradas por esse poema gostaríamos de pedir que a Cidinha se apresente e já emendando com uma primeira pergunta: Um dos pontos que temos como fundamentais da nossa proposta de Coletiva é a multilocalidade. E não diferente, você também nos apresenta trânsitos entre cidades, Belo Horizonte, Salvador, São Paulo… Transita por muitas cidades também participando de eventos, formações, além dos lançamentos. Como você acredita que isso te constituiu? Isso se reflete nas suas produções?
Por muito tempo eu escolhi viver em São Paulo. Cheguei a São Paulo para participar de um encontro da SBPC. Participei das atividades que resultaram na fundação do Instituto Geledés. Isso foi em julho de 1988 e naquela época existia uma rodoviária que era conhecida como a rodoviária dos mineiros, que tinha ônibus que saía para as cidades de Minas Gerais de uma em uma hora. Essa rodoviária está há alguns anos desativada, agora é o Terminal Tietê que faz as viagens interestaduais. Eu cheguei aqui [em São Paulo] em julho e era o auge do inverno, um tempo nublado, naquele tempo ainda existia garoa. Hoje é raro ter garoa em São Paulo. Quando eu cheguei e olhei aquele lugar cinza, aquela coisa fechada eu disse: “eu quero viver aqui”. Eu tava na metade da minha graduação, me formei em meados de 1991 e em setembro de 1991 eu vim viver em São Paulo. Tenho uma relação com a cidade que já foi de muito encanto, eu não diria que é isso hoje, mas continua sendo uma relação de amor. Os paulistanos não gostam que eu diga isso, mas eu não acho que São Paulo acolha as pessoas, embora caiba todo mundo. Acho que principalmente cabem os sonhos grandes das pessoas. Isso talvez seja o que mais me encante em São Paulo.
A obra “Exu em Nova York”, ganhadora do prêmio Biblioteca Nacional 2019, que tem a cidade como um eixo organizador e aciona uma série de imaginários, desde o título, passando por uma capa incrível e um livro de contos muito cuidadoso e muito envolvente.Existe um lugar da cidade na sua obra? Qual seria esse lugar?
Eu passei a entender esse lugar da cidade e o papel da cidade na minha produção eu acho a partir de 2013, quando eu comecei a trabalhar com o Muquifu, que é o Museu de Quilombos e Favelas Urbanos de Belo Horizonte. A partir daí a discussão mais organizada sobre direito à cidade passou a povoar muito os meus universos. Já era alguma coisa que eu tinha interesse mas não tinha sistematicidade e com o Muquifu isso passou a ter com as discussões que passei a acompanhar com a curadoria do Padre Mauro, que se tornou um amigo muito querido. Como eu sou cronista, meus primeiros livros são de crônica e essa veia de cronista é muito forte em mim. Então era um certo incomodo que eu tinha o fato de não ter a minha cidade natal tão presente, no sentido de ser mencionada na minha obra e eu percebi que isso acontecia muito com outros cronistas que eu li. Eu identificava Minas Gerais muito presente na minha escrita, mas eu não identificava Belo Horizonte. Então durante algum tempo eu criei essa interpretação para mim mesma: “eu sou uma figura de Minas e não uma figura de BH”.
Em 2011 no livro Oh, Margem! Reinventa os Rios!, um livro de crônicas cuja segunda edição vai sair daqui a pouquinho por uma editora do Rio chamada Oficina Raquel, São Paulo tá muito presente. De lá pra cá eu fiz alguns trânsitos, nessa época eu vivia no Rio de Janeiro. Vivi 3 anos lá, depois eu vivi um período de 1 ano em Brasília, depois passei mais 3 anos e meio em Salvador. Em junho do ano passado voltei para São Paulo.
No livro Kuami, que é um romance infanto- juvenil, tem referências muito fortes do Rio. Mais do que do Rio, do samba. O samba que sempre povoou a minha vida desde a infância. Quando eu morei no rio eu passei a viver o samba. eu ia para a quadra da escola de samba da minha Mangueira, para a feijoada da Mangueira, para o funk da Mangueira. Ia para o Cacique de Ramos, para o Samba do Trabalhador e ia em algumas rodas….Eu morava em Santa Teresa e lá nos sábados e domingos é só samba, roda de samba, chorinho, na rua, nas praças, na frente dos bares. Eu frequentava o Beco do Rato, a Lapa também. Tem algumas crônicas no Sobre-Viventes que são muito ambientadas no Rio, no trânsito, o motorista de taxi, no Sambódromo. Eu morava do lado do Sambódromo, na Rua Paula Matos. Atravessando essa rua, era o Sambódromo, então eu acompanhava os ensaios abertos das escolas de samba da minha casa. De fato mesmo e não como figura de linguagem. Salvador que tem uma vivência de rua muito forte, de ocupação negra das ruas e isso foi de maneira muito forte para os meus textos. Eu morava perto de um dos circuitos do carnaval que é o circuito Campo Grande. O prédio em que eu vivia ficava de frente para um serviço da prefeitura e eu via muitas coisas ali, eram as ruas onde as pessoas montavam as barraquinhas para vender coisas, comida, cerveja, comer o feijão antes de ir pro serviço. E eu tinha uma vivência de carnaval desses preparativos e depois de viver o pós carnaval que é uma coisa muito violenta. Eu me lembro que um dia eu saí do prédio onde eu morava, na semana seguinte ao carnaval e vi uma fila imensa de pessoas muito simples. Aí eu perguntei para o porteiro do prédio o que era aquilo e ei ele me disse que aquela fila era dos cordeiros, pessoal que faz a segurança nas cordas dos blocos. eles estavam ali para receber. Eu respondi: “mas o carnaval já acabou tem uma semana, então essas pessoas trabalharam e não receberam?” E eu me lembro que ele me disse: “não, mas é melhor porque assim eles não gastam dinheiro”. Eu olhei pra ele sem muita vontade de discutir. É um tipo de raciocínio de exploração que encontra base também nas pessoas exploradas ou também ou potencialmente exploradas. Por fim o que me encanta muito nas cidades, e eu trago para o que eu escrevo, são as possibilidades de trânsito, de movimento.
Você já disse algumas vezes que “escreve sobre a vida que pulsa, sobre o movimento e as reflexões a partir dele”, e trazendo a discussão a partir do livro “Parem de Nos Matar” como você vê essas recentes manifestações e atos contra o racismo e ampliando mais o debate poderia comentar sobre os acúmulos das construções e reivindicações feitas pelo movimento negro e na sua trajetória no Geledés que antecedem essa eclosão que presenciamos agora?
Eu acho bastante complexo e denso esse momento, não tem resposta simples. Há uma coisa antiga do Brasil, os tempos de curta, média e longa duração. O tempo do racismo é de longa duração. Ele se manifesta em camadas diversas ao longo do tempo. Ele permanece, ele se transforma, transmuta, se adequa a tempos novos, sujeitos novos . Tem um aspecto estruturante que assegura sua sobrevivência ao longo dos séculos essa capacidade ao que parece infinita de mutação. Eu não sei se consigo caracterizar bem esse momento que a gente tá vivendo. Algumas coisas inclusive que eu faço questão de me manter alheia, porque eu sempre tive muita resistência a acompanhar uma agenda imposta de fora. Eu sempre defini a minha agenda e quando eu atuava em coletivo político, a gente definia a nossa agenda e seguia. Eu acho que a gente tá vivendo um momento em que o racismo está sendo pautado pelos fatos violento que a gente tem vivido e a sua resistência. Então a gente pode pegar três casos muito recentes de violência com crianças e adolescentes, a menina Agatha Felix, o menino João Pedro e o menino Miguel que foram crimes que causaram uma comoção muito grande no país. O outro fato o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos. Então esses são fatos que pautam a mídia ,que pauta a discussão. Por outro lado tem uma briga de protagonismo — para usar uma expressão contemporânea — de grupos não negros que dizem que são aliados e estão se envolvendo no debate. Nesse sentido eu faço questão de me manter um pouco alheia, porque essa discussão toma muita energia e não é a minha agenda. Eu sempre estive preocupada e estou preocupada com os meus e com as minhas e sempre dediquei minha vida a fortalecer as pessoas negras sobretudo as jovens. Estou muito mais ligada nessa agenda do que nessas questões que têm sido pautadas por gente que tá descobrindo agora que o racismo existe, que o racismo mata. Eu não tenho me envolvido com isso não.
Trazendo outro livro para a discussão, #Parem de nos matar, que traz a crônica do cotidiano a partir da perspectiva das pessoas negras desses episódios do racismo que não é novidade. Fico pensando nesse lugar de uma escritora que não lida só com esse tema, e a gente fez questão de iniciar essa conversa com um poema do Canções de Amor e de Dengo, que é um texto que traz um afago, o que é o mesmo lado da vida, pensando nos atravessamentos de vida e de morte para as pessoas negras. Pensando na sua produção como é esse trânsito entre a literatura afago e esse texto que faz a crônica do cotidiano que muitas vezes é marcado pela morte, que se presta a denúncia e ao registro da vida para que elas não sumam?
Eu escrevi recentemente a convite do Instituto Moreira Salles duas crônicas sobre esse momento que a gente ta vivendo e um deles se chama Necropolíticas versus tecnologias ancestrais de produção de infinito. São as tecnologias ancestrais de produção de infinito que nos permitiram chegar até aqui. A reinvenção que os nossos ancestrais e as nossas ancestrais fizeram da vida que tiveram nesse solo em que não escolheram estar, aqui e em toda a diáspora. E a gente é depositária e repositório dessas tecnologias. O infinito é o sonho, a alegria, o encanto que possibilitam que a gente contraponha a morte. O contrário da morte é o encanto. Então é imperativo, a despeito da morte que nos impõe. Faz parte da luta contra a morte alimentar a alegria, manter acesa a chama do encanto, a chama do sonho, a chama da crença de que existe uma coisa que justifica a existência da humanidade, que nos justifica como seres humanos. Na quarentena, eu preciso me manter informada para escrever, para não ser leviana, para não ficar preocupada com a presença ou não de fermento biológico nas prateleiras do supermercado enquanto tem gente morrendo de fome. Então eu preciso me manter informada para não sucumbir a esses aspectos levianos de quem está com uma vida mais confortável do ponto de vista pessoal. Mas para manter a sanidade mental eu me permito me desligar completamente do noticiário porque o noticiário alimenta o sentimento mais forte que eu tenho tido durante a quarentena que é de medo. medo de adoecer, medo de morrer sem ar, medo de que isso ocorra com pessoas próximas e eu sei o quanto isso vai me desestruturar se ocorrer ou quando ocorrer. Medo das irresponsabilidades dos governos estaduais que estão cedendo a pressão do comércio e dos empresários. E não só cedendo a pressão porque eles são também empresários. Cuba começa a flexibilizar o comércio depois de 15 dias sem uma notificação de casos sequer. Então essa situação me deixa tensa e com medo, mas eu me reservo o direito de em alguns momentos me permitir um certo apagão em relação a isso para manter a sanidade mental.
Fonte: Terra Preta Cidade, coletiva multiterritorial e interseccicional que visa educar, pensar, criar, ampliar as narrativas e práticas para des-embranquecer a cidade.