“a descolonização é sempre um fenômeno violento“
Condenados da Terra, Franz Fanon.
O mundo está em colapso há muito tempo. Nós, as mulheres negras, sempre soubemos. Mas não é para engrossar o caldo do “eu já sabia” que escrevemos, pois. Nossa força e intenção em registrar a história vem da lembrança e preza pela memória dos que não puderam ler nem escrever antes de nós. Abença, vovó!
Em meio a pandemia, assistimos juntas – seja pela tv, seja pelo celular – a mistureba da crise econômica e crise polítca no Brasil. As três juntas, criam o cenário de horror que há muito estamos acostumadas, mas nunca inabaladas. Mas hoje não falaremos sobre a conjuntura, nem o que cada parte dessa complexa engrenagem provoca de consequência nas nossas negras vidas. A palavra de hoje é violência; mas não aquela que você se acostumou – ou não – a ver. Queremos trazer à tona também a violência simbólica, da imagem e do discurso. E como ela é uma chave central pra gente entender sobre o que fazer, como e porque. A velha e boa discussão sobre ação y reação!
“O colonialismo não é uma máquina pensante. Nem um corpo dotado de aptidões racionais. É a violência em seu estado natual. E só sumbirá quando for confrontada com uma violência maior” . Fanon, Condenados da Terra.
Essa frase de Fanon é uma dentre tantas frases e pensamentos do filósofo que pensou violências do ponto de vista da psicanálise, da psicologia e dos complexos traçados e exarcebados pelo colonialismo e pela dominação. Importante também dizer que Fanon analisa as consequências da violência olhando pros dois lados, digamos assim: do oprimido e do opressor. Aqui, nos interessa esse efeito em nós, as condendadas da terra. E aí, a gente concorda com Fanon, mas endossa: a colonização também é um processo racional. Também é uma máquina pensante! E a violência também tem bases nas estratégias mais sórdidas que o pensamento humano pode criar.
É sabido, e estamos a falar sempre, que a polícia é o braço armado do Estado. Ora, nós sentimmos nas nossas peles e almas todas as vezes que mais uma menina ou menino negro é assassinado. E também seguimos atentas, ouvindo as famílias, as mães e os que nos trazem no discurso elementos a complexificar esse pensamento: o pai de João Pedro nos disse: “vocês não mataram só um menino, vocês mataram uma família!”
O que isso nos diz? O que isso quer dizer? Como a violência sai do campo material e entra no âmbito do discurso?
Se a polícia é o braço armado do Estado, quem é o braço desarmado? Quem, além dela mesma, consegue assassinar uma família inteira com a morte de suas crianças? A violência simbólica, psicossocial bem racional e pensante, imprime suas garras no nosso imaginário, através dos braços desarmados y alegóricos da mídia e de seus discursos que não apelam para a justiça. A mídia que como intermediadora, manipula, mexe e remexe com as imagens, com os tons. Ela é também o meio onde se coloca e se retira os significados da violência sobre a negritude que clama por justiça: todas as vezes em que aparecer uma outra criança assassinada, a família de João Pedro (e tantas outras) morrerá mais uma vez! E escrevemos porque cansamos de estar a mercê de sua impiedosa observação e falsa reprodução. De sua nojenta engrenagem simbólica disfarçada de condolescência, em cima dos nossos sofrimentos e mortes todas.
Pois bem. Ontem algumas de nós, sentadas de nossas casas, assistíamos aos protestos contra e a favor da democracia(sic). E um dos mais de 50 grupos de comunicação do país fez questão de transmitir ao vivo o que aconteceria ali, no centro político e econômico sudestino. Naquela transmissão, a violência discursiva, simbólica também estava presente, e explicamos aqui a partir de momentos não cronologicamente dispostos:
– em um dado momento, a jornalista insiste em dizer que não é possível afirmar, mas um grupo começou o conflito e agora a polícia abre fogo sobre os manifestantes (como se merecessem)
– num outro, eles tentam conversar com um dos líderes da manifestação pró democracia, mas não tem sucesso
– em algum outro momento, eles entram em contato e começam a entrevistar o coronel da Polícia Militar do Estado de São Paulo
– num outro, as imagens de objetos queimados, pessoas correndo e zoada de tiros se intensificam
– em determinado momento, a tela se divide entre pessoas gritando protegidas pela polícia e pessoas correndo por trás de fumaça e fogo
– em outro momento, o Coronel da PM enfatiza dizendo “a polícia não tem um lado. estamos do lado da democracia. estamos do lado do cidadão de bem”.
– e em um outro momento o jornalista diz “não dá pra dizer que a bandeira é neonazista já que o manifestante estava ao lado da bandeira de Israel”
O encadeamento das situações acima descritas, que obviamente tem racionalidade e uma lógica típica de um complexo sistema de comunicação explicitamente racista e opressor, seguem um esquema de máquina pensante. Propositalmente as frases, as imagens, os discursos e os atores dos discursos estão colocados ali para criar uma narrativa (palavra tão esgarçada) que vai legitimar as violências, mas não só: ela É a própria violência. A violência simbólica, que foi e é capaz de nos colocar no nosso lugar, como eles dizem. Que é capaz de imprimir em parte da população brasileira a desconciência racial e apatia diante de um conjunto de aparatos institucionais que a oprimem, vulgo ESTADO; Anos dessa sistemática violência simbólica construindo imaginários de nós, condenadas e condenados da terra, podem justificar a nossa reação, seja com violência, seja com “pacifismo”.
E aí, parceiras, a máxima “O brasilreio é muito conformado” vem por terra. Por esta terra arrasada de sangue, que bem o diga. Como nos lembra o Prof Silvio Almeida, a ideologia racista e seus mecanismos materiais imprimem em nós a violência – de fato e simbólica – e nos provoca a reagir de maneiras tantas y outras. Obviamente, endossamos Fanon e sabemos que, de fato, a violência do opressor só sucumbirá com o confronto de uma violência ainda maior, porém, como nós, as condenadas desta terra temos reagido a anos de violência colonial? Seria este Estado, o brasieleiro, o mais competente de todos em nos matar (em todos os âmbitos)?
Nem precisamos dizer que essa pergunta tem algumas respostas, mas que ela não se encerra nesta lauda. O nosso maior exemplo de reação foi experienciado por nossos mais velhos e sua prova de eficiência é que ainda estamos aqui: o Quilombismo. Beatriz Nascimento, Abdias dentre outros, teorizaram o que Zumbi e Dandara recriaram e hoje Elionices, Antônios e Josés Izídios continuam (onde estiverem) mantendo. E tudo o que é derivado da união, do pensamento coletivo, e do mais puro desejo de viver dignamente é enfrentamento e reação a violência do Estado.
As mulheres negras em 2015, em marcha, disseram qual era nosso projeto de futuro, como reação contra a violência sistemática e infidável do Estado Brasileiro. 5 anos depois, somos nós as que continuamos dizendo. Seja na luta de pescadoras e marisqueiras pela soberania alimentar, seja nas ações de redução de danos da Covid19 nas periferias das diferentes cidades ou nos terreiros de candomblé. Não é possível mais falar que somos apáticos e não reagimos. Se antes esse discurso servia pra reverberar ações de grupos de movimentos negros em outros países baixo a nossa síndrome de comparação, hoje podemos jogar esse discurso na privada e dar descarga.
A nossa “violência maior” – pra citar Fanon -, que bate de frente contra o braço armado até os dentes do Estado foi, precisa ser e sempre será inventiva. Precisa ser reativa e inventida! Seja queimando delegacias, seja derrubando fascistas no murro e no governo. Seja na rua ou escrevendo: denunciando y imprimindo no teclado o peso do ódio de anos de opressão sistêmica; Falando sobre racismo como espetáculo jornalístico, não é Débora Britto? As notas de repúdio e nossos vídeos de cobertura das manifestações são ou não são meios de combater a violência simbólica y discursiva? Se não, apaguem este site!
Nós também reagimos por aqui, afinal, acreditamos que a história também se constrói. E porque sabemos o que significa matar e morrer, quando se mata um dos nossos. Quando se mata nossa consciência racial antes mesmo dela nascer: a fantasia da democracia racial! Nós continuaremos reagindo, enquanto conglomerados de tv e jornal escolherem um lado. Enquanto nós formos os “eles” deles. Nós, as mulheres negras, continuaremos agindo e pensando, enquanto a polícia, o Estado e seus diferentes mecanismos insistirem em nos matar física e simbolicamente. Seremos Quilombo dentro e fora das nossas mentes.