Rede de Ciberativistas Negras promove ações digitais em março
Já é lugar comum, mesmo no início de 2019, dizer que o Brasil está imerso numa atmosfera política e social ultraconservadora que representa, de forma geral, o desvalor aos direitos humanos. É dentro dessa perspectiva que se faz necessária a criação de espaços de resistência que apresentem outras narrativas, em especial, na Internet. Assim, a Rede de Ciberativistas Negras lançou uma ação para destacar o 8 de Março e integrar a campanha dos #21DiasdeAtivismo Contra o Racismo. No mês de março, a rede de ciberativistas negras elegeu o tema da intolerancia religiosa para materializar a lutra contra o racismo. A reportagem será publicada na plataforma alyne e logo depois nas redes de pessoas, organizações, grupos e coletivos que compõem a rede ou dela são parceiras.
Intolerância religiosa: todo mundo tem responsabilidade nesse processo
No dia 28 de março de 2019, o Supremo Tribunal Federal vai julgar uma ação que poderá alterar de forma significativa a prática das religiões de matriz africana no Brasil. Nesse dia, os ministros vão decidir pela constitucionalidade (ou não) de uma lei do Rio Grande do Sul que autoriza as religiões de matriz africana a realizarem o abate de animais para fins litúrgicos. Tudo começou em 2003, com a aprovação do Código Estadual de Proteção aos Animais (Lei 11.915), que deixou de mencionar o abate de animais para fins religiosos. Para corrigir o problema, depois de grande mobilização, foi criado, em 2004, o parágrafo único, do Art. 2º, autorizando o abate de animais nas práticas das religiões de matriz africana. Ao mencionar somente as religiões de matriz africana, a constitucionalidade da lei foi questionada pelo Ministério Público. Agora, cabe ao Supremo Tribunal Federal decidir sobre “o fenômeno que esta Corte já denominou como racismo religioso”, nas palavras do advogado de defesa das religiões de matriz africana Hédio Silva Jr. extraídas da sua sustentação no STF.
Babá Diba de Iyemonja, presidente do Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul e Coordenador Nacional da Renafro, juntamente com Mãe Nilce Naira (RJ), esteve envolvido nessa articulação desde o início. A primeira vez que ouviu sobre o projeto de lei foi durante um seminário da semana da consciência negra em 2002. “A professora Leonor Bahia, já falecida, mulher negra e militante participava, pediu a fala e nos alertou sobre um projeto de lei na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul que tinha como pano de fundo o Código Estadual de Proteção dos Animais mas, que na verdade, atingiria direto nossa liberdade de expressão em nossa liturgia. A lei foi proposta pelo deputado evangélico Manoel Maria do PTB-RS”, relembra. Babá Diba disse que o grupo foi averiguar e viu que a lei acertava em cheio o abate de animais e que, inicialmente, se referia a proibição da utilização de animais em “feitiços e macumbas” – depois, os termos foram mudados. “Não houve resposta nem empenho da autoria da Lei para nós responder. Ao contrário, argumentavam que as Religiões de Matriz Africana precisam ‘evoluir’ abandonando as práticas ‘primitivas'”, desabafa.
A partir daí, começou uma saga para convocar, sem redes sociais, só com telefone e e-mail, as lideranças religiosas para comparecerem na Assembleia Legislativa sem agenda prévia. O plenarinho foi montado, porém somente dois deputados foram ouvi-los: Edson Portilho (PT-RS), único deputado negro, e Jussara Cony (PCdoB-RS). Ali, souberam por Edson Portilho, que a lei tinha passado por unanimidade na AL. A saída era lotar o auditório Dante Baroni. Foi assim, com o auditório lotado que foi realizada a audiência pública para a construção de um adendo à lei, excetuando as religiões de matriz africana das vedações. Para isso, o grupo contou com a orientação do Procurador do Estado do Governo, Germano Rigotto, e da Assessoria Jurídica da AL. De acordo com Babá Diba, nesse meio tempo, pessoas que perseguem terreiros já estavam chamando a polícia em data de cultos com a cartilha contendo a Lei na mão pedindo o cumprimento da mesma. O grupo também foi alertado de que poderia sofrer uma ADIN por ferirem o princípio da isonomia já que defendiam só os interesses das religiões de matriz africana. “Entendemos que deveríamos manter expresso por demarcação política porque os praticantes das religiões de matriz africana são quem, de fato, sofrem perseguições e racismo religioso. Assim fizemos”, declara.
Em janeiro de 2003, Ìyá Sandrali Bueno tinha acabado de abrir seu terreiro em Pelotas (RS) quando soube da notícia da criação do Estatuto de Proteção dos Animais e, no primeiro momento, centralizou sua luta para dentro do terreiro sensibilizando sua comunidade com a total certeza de que o povo de terreiro resistiria.
Para a liderança, essa ação causou uma revolução porque o povo de terreiro se movimentou e foi para as ruas lutar contra as políticas de exclusão. A ialorixá explica que, quando leis de proteção dos animais, do meio ambiente ou de costumes são criadas, muitas vezes, apresentam intolerâncias diante dos costumes das religiões de matriz africana. Ela pontua que essa intolerância se apresenta de forma tão sutil que só será percebida por quem está envolvido com as referências das religiões de matriz africana. “A maioria dos códigos de conduta dos municípios tem um cunho racista e intolerante definido pelo que é a sociedade brasileira. A sociedade brasileira não se preocupa com o sino da igreja as seis horas da manhã ou com as cantorias eletrônicas das igrejas evangélicas. Agora, com a sineta e o barulho do tambor, certamente, ela se preocupa”, exemplifica.
Além de sofrerem com ações judiciais que tentam impedir suas práticas, as religiões de matriz africana lidam com a intolerância cotidiana – mais contundente a cada dia. Em dezembro de 2018, a Pedra de Xangô, monumento que compõe o corredor cultural de religiões de matriz africana, tombado pelo Patrimônio Histórico de Salvador (BA), foi coberto com 100 kg de sal. O uso do sal no monumento foi visto como um ato de intolerância religiosa porque o sal é historicamente consagrado à purificação. A Pedra de Xangô foi limpa e no dia 10 de janeiro de 2019, aconteceu uma caminhada em protesto.
Dois dias depois, 12, o Ilê Axé Ojisé Olodumare, localizado em Camaçari, região metropolitana de Salvador, foi invadido e assaltado durante uma cerimônia religiosa. O Babalorixá, Rychelmy Imbiriba, tentou conversar com o grupo de seis homens sobre a cerimônia que acontecia, mas foi fisicamente agredido e, então, percebeu que não se tratava apenas de um assalto e sim de ódio religioso.”Já sabíamos de um grupo promovendo assaltos na comunidade e a polícia também. O que nos causou surpresa foi a coragem deles de entrar na cerimônia, que tinha muita gente. E, depois, a agressividade com que eles praticaram o roubo, principalmente, com aqueles que estavam incorporados”, conta. Pai Rychelmy também diz que os assaltantes falavam o todo momento frases como: “macumbeiro tem que morrer”, “não é para vocês estarem aqui”, “vou acabar com essa desgraça de macumba” e “religião do diabo”.
As investigações estão sendo conduzidas pela Polícia Civil, já prendeu um suspeito, mas, no início, relutou em registrar as agressões como intolerância religiosa. Foi preciso que um advogado do Observatório Nelson Mandela contra o Racismo acompanhasse as vítimas até a delegacia para que a polícia registrasse o ataque à religião. Pai Rychelmy, que é mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia e professor do ensino fundamental, recebeu apoio da comunidade de terreiro e de sua própria comunidade e não se diz desanimado. Ele tem a certeza de que há uma ancestralidade e uma força que os impulsiona a seguir em frente com a religião dos orixás.
Mãe Conceição de Lissá, liderança do Czo Kweceja Gbe, entende bem o significado de perseverar na religião, seguindo em frente e lutando. As ameaças ao seu terreiro, que fica em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio Janeiro, começaram há cerca de 14 anos. Foram oito atentados contra o terreiro (entre destruições e incêndios) e uma tentativa de homicídio. Bacharel em Direito, Mãe Conceição é categórica sobre o registro da ocorrência policial como intolerância religiosa. “Toda vez que eu fui registrar uma agressão, eu sabia exatamente o que eu queria que constasse do boletim de ocorrência. Os ataques ao terreiro foram registrados como intolerância religiosa e os tiros, como tentativa de homicídio, mesmo”, declara.
Delegacia especializada
No Rio de Janeiro, a pressão dos movimentos sociais em articulação com setores da política relacionados aos direitos humanos impulsionaram a criação da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância inaugurada no dia 12 de dezembro de 2018. A delegacia é composta por um delegado e 12 policiais que atendem especificamente crimes de intolerância, entre elas, a religiosa. A investigadora Claudia Otília conta que essa estrutura foi criada com muito cuidado. “O delegado teve muito cuidado para escolher as dependências e o local onde a delegacia está funcionando [Centro do Rio de Janeiro] para que fosse acessível para quem trabalha e para as vítimas”, conta. Claudia diz que o trabalho está sendo estruturado para mapear, compreender as temáticas e as pessoas que precisam dessa delegacia a fim de que seja criado uma nova capacidade investigativa. Os policiais que trabalham na estrutura estão passando por capacitação na Academia de Polícia sobre todos os temas abrangidos pelo combate aos crimes de intolerância. O delegado organizou um calendário de cursos compostos por palestras e seminários com especialistas. “Uma delas foi com Ernani Alexandre, da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, que falou sobre direitos humanos e dinâmicas de atendimento e acolhimento da população LGBTI. Inclusive, aqui, trabalha um funcionário cedido por essa secretaria para fazer o primeiro atendimento às vítimas”, explica.
Claudia conta que a mesma sensibilidade está sendo tomada com crimes de intolerância religiosa para entendimento dos ritos, fundamentos, comportamentos que envolvem as religiões de matriz africana. A policial diz que próxima capacitação será justamente sobre esse tema e que vai precisar do apoio dos órgãos e conselhos de direitos humanos para estabelecer um diálogo melhor para aprimorar as técnicas de investigação e atendimento policial a fim de levar a história que está sendo contada para dentro da norma penal. “Tem pessoas que não conseguem, de fato, superar a cultura em que foram criadas. Mas a todo momento, a gente vê policiais ruins sendo presos. Estamos agindo. Queremos que toda essa experiência que estamos documentando esteja, em breve, à disposição de policiais de outras delegacias para que possamos instrumentalizá-los. Fora isso, a Polícia Civil é uma instituição de 200 anos, mas estamos trabalhando para nos adequarmos às demandas da sociedade atual. Eu vejo a criação dessa delegacia, feita por um projeto de lei de Átila Nunes [deputado estadual], como uma grande oportunidade de materializar a preocupação da polícia civil em estabelecer um diálogo melhor com a sociedade”, explica.
Intolerância religiosa não é assunto novo. Desde Brasil colonial, os escravizados perderam o direito à preservação de sua cultura e práticas religiosas. E mesmo com o passar do tempo e a aquisição de direitos, a questão do racismo é evidente quando se trata da perseguição às religiões de matriz africana.
Origens da intolerância religiosa
A escritora e pesquisadora Carolina Rocha explica que as religiões de matriz africana são o principal alvo da violência e que a intolerância religiosa é parte constitutiva do processo de formação do Brasil. Isso porque uma das justificativas da colonização e da escravização de negros e indígenas era a necessidade de levar a palavra de Deus para todo o mundo. “Hoje o neopetencostalismo é identificado como grande algoz das religiões de afro-brasileiras. Realmente, alguns segmentos do neopetencostalismo têm levado os discursos de ódio até às últimas consequências. Eu friso que são alguns segmentos para não generalizar, mas a verdade é que esse terreno foi construído pelo Cristianismo e a Igreja Católica tem total responsabilidade sobre isso e tem que assumir essa responsabilidade porque ela não foi assumida”, aponta Carolina.
Graduada e mestra em História pela Universidade Federal Fluminense e finalizando o doutorado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Carolina diz que o cristianismo é uma religião proselitista, expansionista e, por isso, ela precisa converter o outro. “As religiões de matriz africana, os candomblés (falando no plural porque existe uma variedade grande), são religiões iniciáticas; não são religiões de conversão”, diz. Carolina também explica que o início do Cristianismo é bélico e quando percebemos essas características conseguimos entender como uma pessoa cristã pode matar ou como pode existir traficante evangélico e também como se formam os exércitos de Cristo. “A gente acha que isso é uma contradição, mas não é. O cristianismo é bélico, expansionista e violento desde o seu cerne.”, afirma. Basta lembrar das Cruzadas para compreender o que Carolina está falando.
Medidas protetivas
A pesquisadora acredita que o arcabouço legal e as medidas protetivas existentes hoje são insuficientes para garantir a segurança dos terreiros. “A gente vive em constante violência, ameaça e ataque. Existem alguns conjuntos de ações para nos auxiliar paliativamente, mas dizer que um terreiro, hoje, no Brasil, está seguro é mentira. Eu sinto muito dizer isso, mas seguros, nós, não estamos”, declara Carolina.
Lúcia Xavier, coordenadora da organização não-governamental Criola, sediada no Rio de Janeiro, fala que há tempo as lideranças reportam a proibição de tocar atabaques, realizar oferendas, andar com os paramentos da religião, deixar a porta da casa aberta em dias de festa, soltar fogos de artifício. “Há casas que já experimentam mudanças nos horários das cerimônias. Há muito silêncio e o ritmo é marcado por palmas. Por fora, [no aspecto físico] as casas continuam com as características que as fazem ser reconhecidas como espaços de religião de matriz africana, mas as lideranças estão mais atentas. Não há mais a ideia de que, talvez, poderíamos voltar a um cenário de repressão como antigamente. Elas já estão sendo ameaçadas agora mesmo. Basta uma denúncia e está tudo acabado”, revela Lúcia Xavier.
A coordenadora diz que em 2003 e 2004, Criola trabalhou ativamente com o Governo do Estado para ativação de um serviço de atendimento às vítimas de intolerância religiosa. Tratava-se de um centro de atendimento, que foi desaparelhado pelo governo de Sérgio Cabral e finalizado na gestão de Luiz Fernando Pezão, e oferecia atendimento psicológico, apoio jurídico além de suporte para as organizações agirem. Lúcia lembra que também houve ações do governo federal para articular e fortalecer as religiões de matriz africana através da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial e a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, através do Núcleo contra a Desigualdade Racial (NUCORA) que acompanhava os processos de intolerância religiosa.
Mobilização
Em 2016 e 2017 aconteceram, no Rio de Janeiro, uma série de ataques frontais às religiões de matriz africana. Somente em Nova Iguaçu, município da Baixada Fluminense, foram invadidos e destruídos nove terreiros. Lúcia Xavier conta que dois desses terreiros eram próximos à casa de Mãe Beata (liderança religiosa do Ilé Asé Omiojuaro, falecida em 2017). “Dois desses terreiros eram bem próximos à casa da presidente de Criola, Mãe Beata de Yemojá. A gente viu situações de barbárie. Os babalorixás e ialorixás foram obrigados a quebrar objetos, assentamentos de orixás e a arrebentar e engolir fios de contas. Foram obrigados a fechar o local e foram expulsos sem poder carregar nada. Foram ameaçados com cassetetes, paus, pedras e armas, o que tivesse perto. Sofreram muita humilhação, ofensas e xingamentos. Algumas dessas pessoas não conseguiram reaver suas casas. Por sua vez, a polícia ficava sempre tentando ver se o filho de santo da casa estava envolvido em algo ilícito que provocasse aquela reação violenta; se era briga de marido e mulher, ou seja, se havia outra motivação”, desabafa.
A reação veio quando os grupos atacados se reuniram para serem ouvidos com uma ação coletiva contundente. Passeatas e reuniões foram realizadas a fim de cobrar respostas, mas, como conta Lúcias Xavier, até hoje ninguém sabe como estão essas investigações. “Quando a gente vai buscar essas respostas, ouvimos que as investigações estão sempre em andamento e a gente não sabe o que isso significa realmente”, revela. Criola e o Ilé Asé Omiojuaro produziram um manifesto denunciando os ataques e a falta de medidas institucionais para proteger e salvaguardar os espaços e frequentadores. A redação expõe a inércia do poder público diante da violência sistemática e estrutural que aflige adeptos de religiões afro-brasileiras.
Ascensão e queda das políticas públicas
As políticas públicas são o meio através do qual um país vai assegurar direitos aos seus cidadãos. Por exemplo: o SUS é uma política pública destinada a assegurar acesso universal, gratuito e de qualidade à saúde. É possível que ainda não tenha atingido a meta, mas seus programas, ações e decisões serão elaborados com vista ao cumprimento dessa missão. No caso da cultura afrobrasileira, em 2003, foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a SEPPIR, com objetivo de promover a igualdade e a proteção de grupos raciais e étnicos afetados por discriminação e demais formas de intolerância. Um órgão público da administração federal que acompanhava as ações de combate à intolerância religiosa. O desmonte dessa secretaria e/ou sua reorganização sinaliza que as políticas públicas de promoção da igualdade racial não são importantes para o atual governo federal e, consequentemente, a luta contra intolerância religiosa também não é.
Diálogo para garantir direitos
O Babalawó, Ivanir dos Santos, acredita que seja necessário construir instrumentos legais que possam, de fato, dialogar com as demandas e garantir os direitos das vítimas da intolerância religiosa. Assim como Ivanir, a coordenadora de Criola diz que é preciso construir protocolos de atenção para esse grupo, no que se refere ao primeiro atendimento e à investigação, abrir espaços na atenção pública e fazer com que o Estado faça a mediação dos terreiros atingidos com essas forças do tráfico, milícia e também dos soldados de Cristo. “Hoje, a liderança religiosa é que fica com a responsabilidade de mediar a relação com esses grupos, mas não era para ser assim”, reflete. Além disso, existe a força de sistemas de comunicação pentecostais, com rádios e emissoras de TV demonizando e subvalorizando as religiões de matriz africana. Adiciona-se, a representação negativa trazidas pelas novelas que tratam do tema de forma demoníaca, caricata ou pitoresca.
Essa ideia fantasiosa e racista que se tem das religiões faz com que seu potencial e possibilidades não seja visto. Dessa forma, nem o Estado nem a sociedade reconhecem o seu valor. Tem-se, então, um estado que não nega a existência da agressão, mas também não apoia a reparação. “É o pior dos mundos. Pra visualizar, é o seguinte: o cara chega todo quebrado na delegacia e o investigador pergunta o que ele fez pra ficar todo quebrado”, exemplifica Lúcia.
A sociedade de axé se movendo
Desde 2005, Criola já denunciava a intolerância religiosa, dando ênfase à vulnerabilidade das mulheres negras e de homossexuais. O projeto Ìyá Agbá, por exemplo, envolvia o trabalho com as lideranças religiosas por meio de debates, encontros, atividades e ampliação das ações comunitárias que elas realizavam em suas casas. Até hoje, a organização realiza atividades e campanhas e está sempre envolvida nos fóruns de discussão que estimulem o desenvolvimento de ações em contra a intolerância.
O Babalawó Ivanir dos Santos faz parte da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, uma organização civil e inter-religiosa, criada em 2008, após várias ameaças a lideranças religiosas de matrizes africanas no Morro do Dendê, no Rio de Janeiro. Além de matérias jornalísticas para informar o público em geral, a comissão solidifica e fortalece a luta contra a intolerância com a produção do Guia de Luta de Combate ao Racismo e Intolerância Religiosa e promoção de cursos de capacitação, como o Multiplicadores no Combate à Intolerância. Mas para o Babalawó, um dos resultados mais visíveis desse trabalho é a Caminhada Contra a Intolerância Religiosa, realizada anualmente, no terceiro domingo de setembro, na orla da praia de Copacabana. “A Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa é o nosso maior símbolo de resistência. Primeiro lugar, porque existe um movimento orgânico que nos move em prol da tolerância, das diversidades e pluralidade religiosas. E em segundo lugar, a caminhada representa uma grande união da sociedade civil que clama por mais reconhecimento, direitos e visibilidade contra os processos de marginalização social”, declara.
Estratégias: intolerância religiosa ou racismo religioso
Carolina destaca que o que acontece no Brasil é, de fato, racismo religioso. Contudo, ela explica que a intolerância religiosa é o termo internacional reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA) e que consta de seus tratados e documentos. Esse arcabouço legal internacional fala do direito à fé e da liberdade de culto para qualquer religião. Assim, quando se fala em intolerância religiosa aqui tem-se um termo reconhecido internacionalmente e isso pode nos ajudar quando buscamos ajuda dessas instituições. Lúcia Xavier revela que a Comissão de Direitos Humanos da OEA recebeu um levantamento jornalístico com mais de 70 casos sobre os ataques ocorridos na Baixada Fluminense, em 2016 e 2017, e também ouviram algumas lideranças. Ela destaca que ao mesmo tempo que é preciso dar visibilidade ao problema também é necessário dar visibilidade à capacidade dessas organizações de darem respostas a essas demandas.
Sensibilização pela Internet
A urgência pela interrupção dos episódios de intolerância provoca uma diversidade de ações de divulgação dos acontecimentos e campanhas de sensibilização, principalmente na Internet. A Plataforma Alyne, por exemplo, iniciativa que se configura num espaço de denúncia às violações de direitos humanos sofridas pelas mulheres negras, deflagrou em 2017 uma campanha contra intolerância religiosa. Para Lúcia Xavier a intolerância religiosa se registra no campo do racismo, que historicamente, não mobiliza a sociedade para acabar com esse problema. Ela lembra que as pessoas estão comentando bastante sobre os casos de intolerância religiosa ocorridos no Big Brother e que ninguém fez nada. “Houve, numa edição anterior, uma participante que dizia ‘chuta que é macumba’. Isso ficou e nada aconteceu. São tantos ataques que não dá nem tempo de responder à altura nas redes. Um dia é o ‘ifood’ com a sobremesa afrocentrada, com problemas psicológicos. Nega Maluca é o nome do doce. No outro dia, é o supermercado que associou vassouras a mulher negra. Você não dá conta de responder a esse cotidiano de racismo – nem mesmo quem faça somente isso. E, nesse sentido, a Rede de Ciberativistas Negras pode nos ajudar no campo nas narrativas positivas contra esse tipo de ação porque uma rede como essa está no centro da disputa das novas narrativas da representação social sobre a população negra”, comenta.
Encerro essa reportagem inspirada por Ìyá Sandrali dizendo que a luta está dada e que nos resta seguirmos em frente em busca do entendimento de todo esse processo, defendendo a soberania do povo negro e acreditando na força ativa que nos move e na nossa ancestralidade que poderá fazer a história repensar-se.
Referências:
Recurso Extraordinário
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2419108
Sustentação do Dr. Hédio Silva Jr. no plenário do STF
https://www.youtube.com/watch?v=XZQegsiIDgY
Análise dos casos de intolerância religiosa no Estado do Rio de Janeiro no período de 2010-2014
Diagnóstico da situação da intolerância religiosa
http://criola.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Diagnostico-da-situacao-da-intolerancia-religiosa.pdf