Em todo dia internacional da mulher [sic] nos lembramos de Sojourner Truth (1797-1883) e seu famoso discurso sobre a liberdade da perspectiva das mulheres negras:
“Ninguém nunca me ajuda em carruagens, ou em poças de lama, ou me dá o melhor lugar! E eu não sou uma mulher? Olhe para mim! Olhe para o meu braço! Eu arado e plantei, e juntei em celeiros, e ninguém poderia me liderar! E eu não sou uma mulher? (…) Então eles falam sobre isso na cabeça; como é que eles chamam? [membro da platéia sussurra, “intelecto”] É isso, querida. O que isso tem a ver com os direitos das mulheres ou dos negros? Se minha xícara não aguenta mais que um litro e a sua um litro, você não seria mau em não me deixar ter minha pequena meia medida cheia?”
Seja no contexto da Guerra Civil estadunidense, seja na luta pelo sufrágio universal, as mulheres negras continuam a perguntar se nós não somos mulheres. Tudo como dantes no quartel de abrantes, diria o ditado da Bahia.
As greves gerais, os protestos e manifestações pelo Sufrágio Universal no século 19 se espalharam por toda europa, américa do norte e apesar de, no caso estadunidense, a luta vir atrelada a insurgência pelo fim da escravidão, as pessoas negras daquele país só puderam votar de fato depois da aprovação da Lei dos Direitos Civis em 1964 e Lei do Direito ao Voto de 1965 {sendo que as mulheres adquiriram direito ao voto em 1920}.
Cruzando os mares do norte até Abya Yala, o Equador foi o primeiro país da região a permitir que suas ‘cidadãs’ votassem lá em 1929. O Brasil o faria em 1932 por decreto, que se consolidaria em 1934 na nossa Constituição. Apesar de relacionada às lutas por liberdade dos escravizados – a exemplo de Maria Tomásia Figueira de Melo do Ceará que presidia a sociedade abolicionista feminina Cearenses Libertadoras – as reivindicações pelo direito ao voto ficaram na mão das mulheres brancas brasileiras, que letradas e com apoio dos homens da época, conseguiram incidir de maneira que o voto se tornaria obrigatório.
Mesmo com nordestinas pioneiras, sendo as primeiras eleitoras e elegendo prefeitas já em 1927, a presença das mulheres negras era quase invisível, representada, à época, pela catarinense Antonieta de Barros. Professora, jornalista e escritora, Antonieta criou e dirigiu o jornal A Semana, em Florianópolis, mantido até 1927, fundou e dirigiu também o periódico Vida Ilhoa, na mesma cidade em 1930, além do jornal A Semana, entre os anos de 1922 e 1927.
A história conta que ela trocou cartas com Bertha Luz – feminista ativista pelos direitos do voto feminino na mesma época – e que depois de escrever para diferentes jornais de Santa Catarina, ela concorreu em 1934 a candidatura de deputada estadual na Assembléia e como Leônidas Coelho de Souza não tomou posse, Antonieta foi convocada a assumir o mandato da 1ª Legislatura (1935-1937). Ela foi Constituinte em 1935 e Relatora dos capítulos de Educação e Cultura e Funcionalismo. Em 19 de julho de 1937 presidiu a Sessão da Assembleia Legislativa, sendo a primeira mulher a assumir no Brasil a Presidência de uma Casa do Povo.
De lá pra cá, percorremos muitos acontecimentos e a história dos direitos das mulheres e a luta pela libertação integral do povo negro brasileiro se confundiu, se sobrepôs ou se diluiu em meio aos interesses mais ou menos escusos das e dos que escrevem a ferro e fogo a história deste país. Num cenário político não tão distante não podemos deixar de mencionar Benedita da Silva, Lélia Gonzáles, Creuza Maria Oliveira, Leci Brandão, Verônica Lima como alguns dos nomes que enfrentaram ou tem enfrentado a constante peleja que é o fazer política usando interseccionalidade na prática: trazendo do movimento feminista para o movimento negro e levando do movimento negro para o feminista.
E a dita história não tem sido grata com as mulheres negras nos espaços decisórios de poder: pleitos suados, prévias boicotadas, projetos engavetados, negação de candidaturas e outros truques envolvem a maioria das tentativas de ingressarmos nas câmaras e assembléias e palácios do executivo, tudo em nome da manutenção do status de uma política branquelóide.
Mais uma vez a beira de novos oitos de marços, nos colocamos novamente no debate: o que partidos e suas correntes têm feito pelo exercício pleno da democracia? Quem tem garantido a ampla participação das mulheres negras na política brasileira? Quantas legendas não se renderam ao truque das candidaturas laranjas? Parece que nem mais a esquerda essas perguntas podem ser respondidas.
Estamos assistindo com pipoca na mão os bastidores das internas e prévias, dos conchavos e acordos pré-eleitorais que manejam candidaturas, convocam suplências e boicotam as participações por dentro. Queremos entender o que faz um partido de esquerda ter uma pré-candidata mulher negra, ativista, aclamada pelo povo escolher uma outra que simboliza a militarização da política?
Salvador, a cidade mais negra fora da África é também uma das capitais que mais sofre com a desigualdade racial e social. Depois de anos sem um prefeito ou político negro a frente do Palácio Thomé de Souza, Salvador almeja uma liderança que a represente. E foi por causa da proporção internacional que tomou a pré-candidatura de Vilma Reis (PT-BA) que resolvemos perguntar às mulheres negras brasileiras porque é importante Salvador ter uma prefeita negra?
“Salvador é uma cidade com forte influência negra não só na sua cultura, é considerada também o berço de parte da diáspora africana no Brasil, já que mais de 80% da população se identifica como negra. Mesmo com uma porcentagem tão alta, registrada pelo IBGE, vemos com muita dificuldade essa mesma população ocupando os espaços não marginalizados da cidade.” Xuana.
A Roma Negra nem tão Roma assim, ainda não divide proporcionalmente seus cargos e posições de poder na política e isso deixa mais que explícito o peso do racismo, apesar da maioria esmagadora de pessoas negras.
“Acho que tem outro aspecto importante que é qual é o impacto de você ter a representação e a imagem de uma mulher negra prefeita da maior cidade negra fora de África… É você quebrar imaginário, é você fazer com que outras pessoas, outras mulheres negras e a população negra de maneira geral ver que é possível acessar esses espaços, eu acho que isso mexe … como que uma cidade que é tão negra como Salvador nunca teve uma prefeita negra? Né? Eu acho que isso mexe com outras possibilidades da noção de representação, de representatividade, e da quebra do imaginário.” Naiara Leite.
E sobre representatividade e representação a gente entende! E o papo não é sobre quantidade, mas sobre ter coerência e despertar a imaginação de uma população que não se imagina nos lugares em que se é possível estar: nas ouvidorias, juizados, tribunais, e outros milhões de cargos públicos em que o exercício da atividade confere algum poder. É sobre a manutenção da possibilidade pelo exemplo, por entender que se há alguém como nós, eu também posso.
“Além disso, não podemos esquecer que a cidade e o estado da Bahia, vem sido governado sob os interesses da família Magalhães e companhia, a qual ignora as necessidades da cidade e do povo que nela vive. Ter uma prefeita negra, ativista, alinhada com sua história, território e ancestralidade, não é apenas uma questão estatística ou histórica, já que Salvador nunca teve um representante negro, muito mais do que isso, é um rompimento com a politicagem branca que sempre valorizou seus interesses enquanto burguesia.” Xuana.
E Naiara, assertivamente completa:
“Acho que tem algumas coisas, uma delas é que a renda de Salvador, do município pra administração é de 8 bilhões de reais e eu acho que a presença de uma mulher negra na experiência de ser prefeita de Salvador, pra você fazer uma distribuição de renda dentro da cidade, você pensa em todas as pessoas, que é inclusive a maioria da população que nunca é pensada nesses 8 bilhões. Então eu acho que a presença de uma mulher negra é você repensar a distribuição desse recurso que não é pouco para pensar políticas e ações que contemplem a maioria da população.”
Numa cidade que é retrato fiel da precariedade no trabalho – é só olhar ao redor e perceber a quantidade de trabalhadores informais e sua cor – me parece que mexer no dinheiro é muito arriscado, para os velhos brancos da política. Ter uma mulher negra numa das prefeituras que mais arrecada no Nordeste é uma ameaça aos planos da branquitude colonial soteropolitana. Imagina se ela corta os investimentos do capital imobiliário e passa a querer fazer valer o direito a moradia de toda pessoa humana… Acabou o pelô!
E por fim, para dizer que a gente não avisou, as mulheres negras sabem porque estar nesses espaços é revolucionário. Ao que diz, Xuana:
“É trazer novos olhares, novas pautas,lógicas e narrativas, para o centro da mesa. É pensar o quanto que a periferia move essa cidade, e permitir que a mesma faça parte do que constrói. Agora é a vez dela, porque Salvador precisa de alguém que entenda a baianidade além dos festejos e lavagens. Agora é a vez dela, porque quando a mulher negra se movimenta, toda a sociedade se move junto à ela, como já dizia Angela Davis.”
E como a Bahia é régua e compasso para o Brasil e para o mundo, consideramos sim que a candidatura de Vilma Reis é impulsionadora de diversos processos pelo país e fora dele. Sabemos que esse projeto tem sido construído ao longo dos anos, com o apoio da sociedade civil e da militância, suportada pelas mulheres negras todas e que qualquer tentativa de boicote é, no mínimo, desonesta.
“Outra coisa que eu acho também que ter uma prefeita negra pode mudar, e aí que eu acho que é de Salvador para o mundo, porque a Bahia é, ela tem essa potência de um lugar anunciador das transformações do Brasil é você pensar que pode ser a primeira vez que a perspectiva de pensar a reforma partidária, cotas, representação, todo esse discurso que mexe com a política brasileira, eleger uma prefeita negra pra Salvador vai mexer com isso, porque vai ser possível, cê não vai mexer só no parlamento, mas você vai mexer naquilo que define o recurso, que define a lógica da política, que é o executivo. Então eu acho que essa vai ser uma experiência que a Bahia pode inaugurar, ter uma candidatura de mulher negra que pode mexer e mudar com a ordem dos outros Estados do Brasil…
Fecha Naiara Leite, com chave de ouro.
Assim como Naiara, sabemos o quanto as mulheres negras são a potência e a transformação do Brasil. Não à toa, as feministas brancas aproveitam o #8M pra esquecer do racismo e sacam do fundo de suas mais racistas entranhas os argumentos e colocações tão absurdos que podem ser desmascarados em 2 tuítes.
Apropriações do legado político de outras de nós, cegueira crônica disfarçada sob a frase “mas não existem mulheres negras em…” ou mesmo a falta de noção quando a presunção de que quem tem mesmo o conhecimento de tudo são as mulheres brancas. Tudo isso misturado num grande caldeirão de elitismo dá oportunidade de surgimento de “““correntes””” como o feminismo liberal.
Aproveitaremos essa deixa apenas para dizer que o nosso lugar nos espaços de poder, sejam eles quais forem, não serão mais mediados pelas companheiras, ou pelas que se dizem assim. Vilma Reis é a imagem, símbolo concreto do limite da nossa paciência. Não dá mais pra esperar a condolência ou a consciência racial de vocês, brancas. Não vamos mais aguardar pacientemente enquanto vocês jogam nossos projetos políticos aos leões do capital financeiro, das negociatas partidárias em prol só de vocês mesmos e dos sobrenomes de vocês.
Salvador e todo o Brasil precisam de mais mulheres negras na política, porque só a gente é capaz de redistribuir a renda, de gritar na cara de racista, de sacudir o tapete da corrupção e da impunidade e ainda deixar para as próximas gerações o modus de fazer.
Todo #8M lembramos das nossas. Nesse não seria diferente! Enquanto estamos nas ruas também pedindo o impeachment do inominável, outras estamos construindo nossas frentes de disputa, por um projeto político de sociedade das Mulheres Negras.
Referências:
Discurso de Sojourner Truth – https://feminist.com/resources/artspeech/genwom/sojour.htm
A conquista do Direito ao Voto Feminino – https://www.politize.com.br/conquista-do-direito-ao-voto-feminino/