Tenho olhado ao redor e posso dizer com propriedade: Estamos doentes.
Me sinto adoecida e de fato estou e vejo que grande parte do meu ciclo de amizade feminina também está. E com o acréscimo de sermos negras, nós pretas sofremos em grau maior.
O que trago são constatações minhas a partir da minha vida de universitária. Sendo eu uma mulher preta de 26 anos, sem filhos, cursando ensino superior em uma universidade pública e que tem como fundo o fato de estar longe da família e em uma cidade extremamente violadora de direitos como é a cidade do Rio de Janeiro.
Pois bem, sigo.
Li em algum lugar sobre a timidez do negro, infelizmente não me recordo o artigo, mas falava sobre como existe uma maioria de negros tímidos que na verdade não são tímidos coisa nenhuma, “quando está entre negros ele se solta”. Quando li aquilo, pensei: – “Gente, sou eu?!”
Não é que sejamos tímidos, não, não é. Apenas não nos sentimos a vontade em todos os lugares e esses lugares normalmente são a escola e o núcleo familiar onde geralmente as piadas são agressivas, homofóbicas, racistas e etc. Riam muito do meu cabelo na escola, muito, muito, muito e isso me machucava muito, mas que eu fazia? Nada. Não tinha forças pra revidar, como eu ia revidar todo mundo?
Vai ver era por isso que eu fazia uso das químicas. Para ver se eles paravam de me usar de piada, mas não. Tudo isso pra dizer que eu não abria a boca em quase nenhum momento porque normalmente ninguém perguntava minha opinião. Ou então como eu não morava com meus pais, qualquer adulto se sentia no direito de me tutelar e falar por mim.
Hoje em dia ainda fazem piada racista com o meu cabelo e nem todas as vezes eu tento revidar. Eu fico muito triste porque as vezes são pessoas que eu gosto (cada vez menos) e eu me entristeço por elas não perceberem que me entristecem e me fazem mal.
O fato é que essa “falsa-timidez” gera sofrimento pois é difícil confiar em alguém e abrir-se e é necessário.
O racismo causa sofrimento e sofrimento não é dor de dente, é pior.
Cobram-nos demais, demais, demais e demais.
Por ser mulher, que ande bonita, que cuide da casa etc;
Por ser pobre, que não roube, não fale errado e que trabalhe de cabeça baixa;
Por ser preta, que cale-se e atenda a todas exigências.
E nos vigiam a todo momento.
Por sermos pretas carregamos um desafio intenso de ser mulher e de ser preta, sim, minha cabeça explode de tanta informação, tantos acontecimentos. Tantas coisas ruins e boas que nos envolvem. Uma série de maneiras de proceder que ninguém sabe qual seguir.
Estamos doentes e precisamos de ajuda. Não há espaços no sistema capitalista para que cuidemos umas das outras, para que nos cuidemos, para que não adoeçamos. Como dito anteriormente, a maioria ao meu redor se sente doente e não é brincadeira, não é manha, não é dor de dente. É sofrimento, é dor visceral, é vontade de morrer, é olhar para todos os cantos e não encontrar saída, é a vida não ser, uma dor profunda mesmo, vontade de morrer. Pouca coragem de se matar, mas muita vontade de morrer, sumir, desaparecer e isso é banalizado, é simplório diante dos problemas do mundo. O adoecimento da preta é algo sem importância, ninguém liga.
Pois bem, não sou mais uma criança e agora sou universitária, adulta, independente, pensa-se que agora as pessoas me olham e me enxergam e valorizam o meu saber, mas não.
A sociedade como um todo nunca esteve interessada no nosso Banzo, na dor das pessoas pretas. Não nos levam a sério quando queremos falar de racismo. Querem saber mais que nós que o vivemos em todos os horários do dia e em todos os dias da vida.
Diziam que não tínhamos conhecimento teórico, que não sabíamos o que falávamos. Hoje temos muitos escritores negros e muitas escritoras, intelectuais negras que estão dando contribuições significativas a nossa história, a nossa existência e essas pessoas pretas, estão sendo esmagadas pela grande mídia e infelizmente não chegam a todos os interessados. A única imagem que querem não é a de pessoas pretas ocupando lugares antes nunca alcançados pela nossa população. Contudo, nem essas pessoas estão livres de sofrer racismo.
Frantz Fanon no livro “Pele negra, máscaras brancas”, para exemplo do que falo:
“Era o professor negro, o médico negro; eu, que começava a fraquejar,
tremia ao menor alarme. Sabia, por exemplo, que se um médico negro
cometesse um erro, era o seu fim e o dos outros que o seguiriam. Na
verdade, o que é que se pode esperar de um médico preto? Desde que
tudo corresse bem, punham-no nas nuvens, mas atenção, nada de
bobagens, por preço nenhum!”
Por mais que a pessoa negra, principalmente a mulher, tenha conhecimento a cerca das estruturas sociais e queira transmitir isso, a sociedade não acredita nela e faz tortura psicológica a cerca do que ela propõe como importante de ser discutido. Acusar de racismo reverso ou então que a pessoa está vendo coisas onde não têm são alguns dos modos de dizer “não vamos falar disso, não nos importamos com você”. Fanon prossegue:
“O médico negro não saberá jamais a que
ponto sua posição está próxima do descrédito.
Repito, eu estava murado:
nem minhas atitudes polidas, nem meus conhecimentos literários, nem
meu domínio da teoria dos quanta obtinham indulto.
Esse trecho me remonta a memória o quanto nos sentimos cansadas por ter que falar por horas a fio sobre o que sentimos e no final das contas a pessoa branca que se acha no direito de dizer se está certo ou não. Porque fragmenta a luta; porque isso, porque aquilo. Não importando a nossa experiência vivida, nosso conhecimento teórico e prestígio profissional e acadêmico. Somos pretas e isso nos dá descredito diante de uma sociedade racista. Os brancos querem nos ensinar como lutar contra o racismo que eles mesmos provocam. Incontáveis foram as vezes que fiquei muda diante uma conversa, vendo as pessoas serem racistas comigo, e tamanho o meu aborrecimento que me fiz de estátua e atônita diante tamanha falta de respeito.
Contudo isso são vivencias doloridas e não haveria espaço nesse arquivo nem palavras o suficiente para expressar a dor que tem sido viver os últimos dias e como isso vem de uma forma à la montanha russa, atropelando meus compromissos e minha saúde física, espiritual e mental. A montanha russa do sofrimento me encontra, mesmo quando fecho os olhos, eu a vejo; mesmo quando fecho os ouvidos, eu a ouço.
Entender que não apenas eu me encontro nessa situação me põe a responsabilidade de não desistir e questionar sempre que possível. Não somos culpadas.
“Apesar de tudo, recuso com todas as minhas forças esta amputação.
Sinto-me uma alma tão vasta quanto o mundo, verdadeiramente uma
alma profunda como o mais profundo dos rios, meu peito tendo uma
potência de expansão infinita. Eu sou dádiva, mas me recomendam a
humildade dos enfermos… Ontem, abrindo os olhos ao mundo, vi o céu
se contorcer de lado a lado. Quis me levantar, mas um silêncio sem
vísceras atirou sobre mim suas asas paralisadas. Irresponsável, a cavalo
entre o Nada e o Infinito, comecei a chorar.” (FANON, Frantz)
Camila Zarite
Imagem – reprodução web