O calendário anual das mulheres negras tem data marcada com um x que não é o daquela apresentadora branca. Em Julho, todas a atenção das mulheres negras se voltam para o maior Festival da América Latina e Caribenha, o Latinidades.
Não à toa, os dias que antecedem o Festival contém momentos de preparação não só intelectual, mas especial e principalmente, preparação espiritual: conhecendo o teor energético e a magnitude das mulheres que ali se encontrarão, eu mesma me preparei para receber, digerir, entender e experienciar todas as coisas de uma maneira tranquila e com sabedoria; com diálogo e silêncio.
Na saída de Recife para Brasília já senti o que significa ir para, ir ao encontro de. Caetano no som do táxi e uma saudade do que eu sentiria me roubou lágrimas ainda a caminho do aeroporto. Tava tudo preparado!
Recebida por Dani Monteiro com um carinho digno de preta retada, já senti o clima de Brasília me abraçar calorosamente apesar do frio. Me joguei nos braços da cidade do céu mais lindo e aproveitei pra carinhar as mulheres de quem eu já sentia saudade – isso também o Festival proporciona e não é brinquedo não – Marjore Chaves, Gabi Porfírio, Priscilla Brito.
No primeiro dia a abertura na rodoviária, os caminhos foram abertos por Exú, Nosso Comunicador ao som da Bateria Batuque Serrano e com os cantos do Ilê Odé Axé Opô Inle que entoaram saudações à representação mais pura de feminilidade dentro dos terreiros. À Oxum, pedimos e agradecemos amor e fertilidade para mais um ano de comemoração das mulheres pretas. A noite seguiu energizada e cheia de expectativa para o outro dia.
No entardecer do dia 26, o presente foi do projeto Terça Afro de SP, que nos proporcionou uma roda de conversas e afetos, onde aprendemos sobre a necessidade de falarmos entre nós, nos escutarmos e participarmos juntos desse processo que cura. A noite, a mesa de abertura contou com a presença das ilustres mulheres Juliana Cezar Nunes, Luciana Barreto e o Mestre TC, mediada por Filó. Sob o tema da Democratização da Comunicação, Luciana nos lembrou que “Não podemos permitir que a TV nos violente dentro da nossa própria casa”. Juliana Cezar Nunes apontou a necessidade de participarmos dos espaços de decisão, onde os rumos da comunicação estão correndo risco, frente a um projeto liberal, injusto e excludente capitaneado pelo governo atual. Mestre TC, fundador da Rede Mocambos, nos deixou a reflexão:
“A comunicação é um instrumento importante, vital, e é preciso que nos apropriemos dela para fazermos com que seja nossa. Podemos ter a nossa comunicação, o poder de se comunicar livremente”
Na quarta-feira do Casal da Justiça, o Latinidades juntou naquele cenário lindo e aconchegante quatro feras, numa mesa que tinha por tema Vozes da Perifa: Comunicação Insurgente. Thamyra Thâmara do GatoMÍDIA, a rapper e educadora Thabata Lorena, Maíra Azevedo nossa Tia Má e Priscila Rodrigues do Observatório das Favelas. Expressões como “hackear espaços”, “botar pra lenhar” e “não deixei a escola atrapalhar minha educação” encontraram abrigo no meu coração – cada uma dita por uma dessas mulheres espetaculares! Num momento emocionante, digno de uma filha de Oxum, Tia Má nos lembrou o quanto é difícil ser mãe de menino preto – tema que perpassou as falas todas durante o Festival inteiro – e agradeceu nominalmente a cada uma das mulheres que organizaram e deram sangue e suor ao Latinidades.
De tarde, entrei na sessão de cinema e vi pela terceira vez KBELA conseguindo completar a façanha de me emocionar, soluçando desesperadamente pela terceira vez. Quando achei que tinha acabado, me deparei com o documentário DANDARAS: A FORÇA DA MULHER QUILOMBOLA, que mostra na fala de Dona Tiana a vivência e memória das mulheres negras quilombolas deste país. Um documentário emocionante, de Ana Carolina Fernandes e Amaralina Fernandes. Depois de sair com o nariz lambicando de tanto chorar, fomos diretamente para a mesa Estética como estratégia política com a pesquisadora da UnB Denise Ferreira da Costa Cruz falando sobre o movimento estético e político das Crespas e Cacheadas, lembrando que não é só cabelo e que a discussão é global, o que a fez pesquisar tal movimento em Maputo e outras duas cidades africanas, descobrindo lá o Carapinhas do Índico, coletivo de mulheres que lutam contra outros tipos de preconceito capilar. Importante pontuar que Denise nos traz uma história que se repete por qui: em Maputo, segundo a pesquisadora, as mulheres também usam o sábado (dia de Oxum) para o dia da beleza; cortam e trançam seus cabelos, cozinham e bebem exatamente como fazem as mulheres e meninas de Salvador, de Recife e tantos outros lugares do país. A mesa mediada por Djamila Ribeiro também trouxe uma discussão quentíssima e pertinente: Aretha Sadick falou brilhantemente sobre identidade de gênero e como seus próprios processos tem trazido um outro entendimento de corpo e fluidez. Puxando a orelha do movimento feminista, Aretha reforçou a necessidade de acolhermos essas pessoas – trans e travestis, não binárias e queers que já são execradas pelo Estado e que tem ameaçado não só seus direitos, mas inclusive e sobretudo seus corpos e vidas.
Hendi Mpya da África do Sul trouxe sua experiência como produtor e ator na indústria do audiovisual, nos mostrando como é possível fazer com os recursos que se tem. Ele também narrou sua experiência no Brasil, onde foi parado pela polícia 5 vezes e sinalizou que “Aqui o racismo é pior que no meu país”.
Outras mulheres negras marcaram presença nesse dia e uma delas foi Jarid Arraes, que ministrou uma oficina sobre Terapia Escrita e deixou muita gente com água na boca.
Divamila Ribeiro terminou o dia nos aconselhando a deixar a geração tombamento tombar, a quem é de lacre lacrar e continuarmos juntas na busca de uma rede forte e unida de mulheres negras. Aliás, REDE foi uma das palavras que mais surgiu nas falas do Festival.
No dia do Homem da Caça, o dia se abriu com o nosso painel: Nós por Nós: Mídias Negras em Ação. Ana Flávia Magalhães, Sueli Carneiro, eu, Larissa Santiago, mediadas por ninguém menos que Angélica Basthi nos encontramos para darmos um panorama e, sobretudo, provocarmos as mulheres negras ali presentes. Ana Flávia expôs brilhantemente a necessidade de olharmos para a nossa história sob a “perspectiva da Liberdade, seja ela conquistada, vivida ou sonhada”. Sua belíssima apresentação trouxe imagens dos periódicos negros, bem como datas e marcos na história onde homens e mulheres fizeram mídia em seus espaços e lugares possíveis. Nós, Blogueiras Negras, através da minha pessoa trouxemos também uma singela linha do tempo, onde destacamos alguns marcos – como o surgimento d’O BAHIANO, da instituição GELEDÉS, do Jornal AFRO-BRASIL e da agência de notícias ALAIONLINE. Falamos também da necessidade de escrever, gravar e registrar narrativas, na tentativa de provocar as mulheres negras a construírem suas próprias mídias, seus caminhos.
Sueli Carneiro fechou, literalmente. Trazendo a história do Geledés e como o portal tem se consolidado como uma das referências em conteúdo negro na internet, ela nos trouxe a curiosa constatação de que o portal fazia parte da estratégia de comunicação da instituição, mas que não tinha a visibilidade dos conteúdos como objetivo primeiro. Sueli Carneiro também nos apontou os riscos que corremos mediante as investidas dos racistas e conservadores de plantão: nos lembrou que com o cenário político vivido haverá um recrudescimento no que diz respeito as liberdades e as nossas atuações. Angélica Basthi insistiu para que fiquemos atentas aos lugares onde nossos direitos são ameaçados, no que diz respeito a comunicação e reforçou a necessidade de registrarmos nossas histórias. Ouvi tão atentamente que me é impossível esquecer as palavras dessas três mulheres referências bibliográficas que estavam bem ali na minha frente. QUE DIA, senhoras!
Dia que haveria de acabar leve, cheio de aprendizado e ginga: Sentamos de tarde para ouvir as incríveis Renata Felinto, Eliane Dias, Jarid Arraes e Sueide Kintê no painel intitulado Arte e Protesto. Renata falou sobre sua atuação no mundo das artes e como esse espaço elitista e racista tem sido enfrentado por ela e seus colegas de profissão, citando sua pesquisa nas galerias paulistas e sua experiência com O Menelick 2º Ato. Eliane Dias trouxe sua experiência como produtora e empresária na Boogie Naipe e, num dos exemplos mais incríveis de sororidade ela contou como consegue fazer todo mundo trabalhar: “As mulheres lá tem tpm e quando eu chego que vejo uma chorar, digo – senta aí, para de chorar, vamo trabalhar. Isso é sororidade”. Sueide Kintê concordou e completou que existe sim uma Pedagogia Preta na qual ela também acredita e que nos faz “baixar o facho” e agir. Por fim e bem emocionantemente, Jarid contou sua trajetória de vida e como seu livro As Lendas de Dandara se esgotou tão rapidamente graças a rede de mulheres negras mobilizada em divulgar, falar, vender. No fim do dia, gingamos com Mestra Janja e Mestra Paulina, num roda de capoeira Angola feminina com o Grupo Nzinga.
A sexta amanheceu ensolarada e sorridente em Brasília. Na mesa da manhã sobre Educomunicação e combate ao racismo, mediada pela jovem jornalista Fernanda Luiza Duarte, tivemos a honra e o privilégio de ouvir as inspiradoras Sátira Pereira Machado e Denise Teófilo falar de suas vivências em pesquisa e arte e afrobetização respectivamente. Jean Yves Bassangna convidado especial do Camarões também nos trouxe bem sucedida experiência do game “Aurion: Legacy of Kori-Odan”, jogo baseado em mitoligia, moda e músicas – desenvolvido no Kiro’o Game Studio.
Seguindo pela tarde com Cine Afrolatinas, o documentário experimental Jornalista Preta de Gênero e cor, de Marina Alves Tavares arrancou aplausos. Doc que foi filmado a partir do seu próprio celular, permite entender tal realidade inclusive a partir da escolha da linguagem. A animação Orún Aiyê, de Cintia Maria e Jamile Coelho fez nossos olhos brilhares diante tamanha lindeza na contação daquela história de criação do mundo narrada por Vovô Birra. Camila Moraes também apareceu nas telas através do seu doc A Escrita do Seu Corpo nos apresentando poesia e arte.
A tarde de Oxalá viria cheia de sabedoria e felicidade pela exposição das empreendedoras convidadas a mesa Inventividades e Afroempreendedorismo: Kizzy Fernanda dos Reis, Silvana Bahia e Monique Evelle, mediada pela Adriana Feira Preta, como é conhecida Adriana Barbosa. Kizzy que apresentou seu app Kilombu, nos trouxe a necessidade de incentivar as meninas negras a caminhar pela trilha das exatas, fazendo-as estudar e estudar sempre. Silvana Bahia, Coordenadora de Comunicação do Olabi Makerspace abriu o jogo nos trazendo seu trabalho com o plano de comunicação do KBELA e como a estratégia de divulgação do filme foi essencial para o seu sucesso. Monique Evelle lacrou, juntando preto e dinheiro na mesma frase, contando sua experiência com o Desabafo Social e como tem sido seu esforço juntar jovens negros empreendedores de Salvador e outros lugares do país em torno de negócios sustentáveis e que proporcionem aquele “blackish” – reforçando sempre que se o dinheiro precisa circular, que ele circule entre nós.
A noite chegou e ansiosas estávamos pela mesa principal com nossa incrível Joyce Fernandes, a Preta Rara e outra referência bibliográfica, Jurema Werneck, mediada pela mestra Dalila Negreiros. Os corações aceleraram quando Preta Rara falou da sua criação – a página Eu empregada doméstica – e lembrou dos dias em que ela mesma era maltratada e explorada por suas patroas, episódios que deixaram de acontecer somente em 2009, quando Preta Rara deixou o emprego. Ela nos chamou atenção para a saúde das empregadas domésticas, contando inclusive como ela conseguiu superar e estar ali naquele lugar graças ao seus tratamento terapêutico encontrado através do projeto de Sueide Kintê, o Mais Amor Entre Nós. Jurema Werneck apresentou a premiada campanha Racismo Virtual, Consequências Reais e provocou a platéia. Expondo que havia aprendido muitas lições com tal campanha – um delas sendo inclusive que as pessoas brancas (homens entrevistados) conhecem e sabem o que significa racismo – Jurema nos questionou nos fazendo pensar o que queremos para uma sociedade melhor. Indagada sobre o abraço no racista, ela mesma falou sobre não gostar pesoalmente da cena, mas admitiu não haver plano algum daquilo acontecer e, como aconteceu, acharam por bem não retirar a espontaneidade do fato. Assim como todas as nossas feministas jovens a mais tempo, Jurema apontou o cenário político assustador e convocou todas a “cair pra dentro” primeiramente.
Pra gente poder se acabar nas lágrimas e claro, homenagear nossas ancestrais que nunca morrem, o Sarau Luiza Bairros de microfone aberto nos revelou talentos como Madu Costa, Rachel Barros além de nos presentear com as já conhecidas Vera Veronika, Tate Nascimento e Preta Rara.
Como não podia ser diferente, as mulheres negras fecharam a semana na Festa Latinidades, no clube Minas dançando e batendo muito cabelo com Tati Quebrabarraco, Mc Carol e as Djs Pretas Sonoras e lacrando com o concurso de Drag Rupaulas – sem contar a galera da Batekoo diretamente de terras soteropolitanas.
O fim de semana seguiu, mas infelizmente não pude aproveitar tudo o quanto gostaria: depois de dar um pulinho na Feira Latinidades (onde comprei um óculos baphônico incentivada por Elke [beijo pretaaa]), fui tietar Mc Soffia e Elis Mc! Tirei foto com as pretinhas e quase chorei quando ouvi um sonoro não de Elis quando pedi pra morder ela (risos). Obrigada Renata por incentivar essa pretinha tão maravilhosa que já nos enche de orgulho.
Como parti no sábado a noite, não consegui ver a mesa do Espaço Kids com Gustavo Gomes e Pedro Henrique Cortês que tenho certeza que arrebentaram; nem muito menos vi Oficina de Turbantes nem os shows do DREAM TEAM DO PASSINHO, Mc Soffia, Donas da Rima, Okwei y Odili, Rico Dalasam, Hope Clayburn e da homenageada (sua benção) BETH DE OXUM. Meu coração ficou pequeno, mas a vontade de voltar é maior do que a saudade que aqui está.
A REDE está formada! O maior Festival de Mulheres Negras da América Latina – não é assim, Maria Paula? – tornou concreta a rede, renovou nossas energias, reconectou as mulheres negras brasileiras e se fixou no calendário feminista negro. Tem jeito não, quando a gente coloca na cabeça que vai ser A MELHOR ninguém nem nada consegue nos deter.
Seguindo os passos e palavras de Luiza Bairros, estamos pensando e agindo como mulheres negras incríveis, fortes. Não mais coitadas, vítimas. Sempre estivemos e estamos fazendo, hackeando, criando, sendo makers. Obrigada Latinidades. Obrigada Ionara Silva, Bruna Ferreira, Chaia Dechen, Eli Moura, Carol Borges, Michelle Cano, Silvia Letícia, Marcela Martins , Ana Paula Arrais, Mariana Vass, Isabelle Luz, Gabriela Franze, Joanna Alves, Thaís Holanda, Tatiana Elizabeth, Patricia Malzone, Alexandra Capone, Natália Helena , Luana Ferreira, Danielly Monteiro (Daniiiiiii), Carina Loiola, Ruth Adewonuola, Cecy Wenceslau, Tatiana Reis, Ludmylla Chaga, Clara Medeiros e Jaluzza (lindaaa), Regina Rocha , Thaynnar Caroline, Rquel Brito, Palloma Gama, Andreia Resende, Clerreane Santana, Maria Paula de Andrade (diiivaaa).
Até o #Latinidades10Anos <3
Imagem – Latinidades Ninja