“Quando nos definimos, quando eu me autodefino, o lugar em que sou como você e aquele em que não sou como você, não estou excluindo você do grupo: eu estou aumentando o grupo” (Audre Lorde, 1984, tradução livre). (1)
Como falar da solidão sem soar pessoal? Como falar de solidão sem ser pessoal? Me parece que para falar de solidão de um jeito verdadeiro é preciso falar da própria. A solidão é uma dessas coisas de que se precisa enunciar a sua para parecer verossímil, para ser real. Nada do que está escrito aqui é novo para as mulheres negras que lerem esse texto. Nada do que está escrito aqui é novo para quem tem ouvidos para ouvir e olhos para ver. Para ver a outra. Para sentir. Mas o que está relatado aqui é único: essa é a minha solidão e como tenho vivido com ela. A solidão que me acompanha e que me faz questionar o meu estar só em muitos momentos. Porque ela sempre está. A solidão que multiplica (e multiplicou desde sempre) meus momentos comigo mesma e me tornou a minha principal companhia. Que me tornou a grande e última interlocutora das minhas experiências. Que me tornou inflexível ao mesmo tempo em que me ofereceu empatia com o que vivem as outras pessoas. Vamos a ela.
Muito se tem falado da solidão das mulheres negras. Certamente não tanto quanto se tem sentido, mas ela já é um fato científico. E, como sabemos, para muitos, fatos científicos são mais que o sentir. O melhor do debate deste fato científico é que ele também foi forjado no sentir. No sentir de mulheres negras. Sabemos cientificamente que elas não conseguem companheiros ou companheiras para dividir os bons e maus momentos de suas caminhadas. Elas estão sós nas suas dores e nas suas glórias. Enfrentam salas de parto, hospitais, prisões e cemitérios sozinhas. Estão sozinhas porque estudaram demais. Estão sozinhas porque foram sexualizadas demais. Estão sozinhas porque são fortes demais. Estão sozinhas porque são bonitas e feias demais. Essa não é a minha solidão. Tenho companheiro, amigas e amigos que me ajudam nesse caminhar. Que estão comigo nos planos, nas múltiplas derrotas e nas significativas vitórias.
A minha solidão é a mesma que a Mc Soffia canta. Ela é fruto do mesmo racismo que cria as outras experiências de solidão. Mas é outra. E, como a Mc Soffia mostrou, ela é sentida desde que somos crianças. Antes mesmo de rompermos os limites da sala da casa da nossa família, desde que olhamos para o mundo que vai além de mães, pais, irmãs e irmãos. É a solidão de ser diferente – por conta da invisibilização criada por séculos de branqueamento. A solidão de ser vista como exótica, para além de todos os problemas em ser negra: vista como potencialmente(?) bandida, bagunceira, barraqueira. Inicialmente, a exoticidade era apenas numérica. Ao longo da caminhada, feita em escolas públicas modelo da minha cidade (portanto de bairros nobres, de famílias de classe média, pelas quais minha mãe batalhava com muita garra por uma vaga para mim) e em que eu sempre fazia parte do grupo das diferentes: das que eram feias, estranhas, CDFs, únicas demais para fazerem parte de outros grupos. Eu ainda mais exótica: a única negra e que vivia fora do bairro. Depois, à exoticidade numérica soma-se uma ladainha de perguntas e situações que se tornam parte das interações no cotidiano: “Você fala português muito bem! De que país você é?”; “Bonita demais para uma negra”; “Negra?! Morena, não?”; “Sua patroa vai achar ruim”; dos seguranças perseguindo você em lojas; do prazer em fazê-los andar mais e mais atrás de você; da necessidade de impor tratamento cortês nos lugares onde você é cliente; “Você trabalha aqui?”; “Você trabalha aqui!!!?”; das não-ofertas de degustação nos supermercados; do lugar desocupado no ônibus, sempre do seu lado, até que não sobre nenhuma outra cadeira.
A minha solidão é a de quem precisa todos os dias lutar para continuar sendo dona da própria vida. Da própria identidade. Da nacionalidade e da minha língua-materna. Para mostrar que a divergente não sou eu. Que eu não sou exótica. Que o problema não é a minha presença, mas a ausência imposta por uma tentativa de invisibilização de mulheres e de pessoas como eu, em todos os lugares. Sistematicamente.
Apesar de sentir essa solidão, tão presente e tão forte, há momentos em que me sinto acolhida e comum na minha diferença. Quando estou dançando com a minha família, quando como a comida das minhas tradições ancestrais. Quando compartilho minhas dores e minhas alegrias com outras mulheres negras. Com outras pessoas que me escutam com empatia. Mas esse já é tema para um próximo texto. Vivemos diferentes solidões, mas não só é delas que vivemos. Há muita beleza na vida das mulheres negras.
“When we define ourselves, when I define myself, the place in which I am like you and the place in which I am not like you, I’m not excluding you from the joining – I’m broadening the joining” (Audre Lorde, Sister Outsider, 1984)
Imagem de destaque – Arquivo pessoal