Dando continuidade à mandala de afetos em suas sete voltas constitutivas de textos a serem
publicados por aqui, tecerei fios das duas atividades realizadas em um dos múltiplos espaços
elencados pelas Giras da Zó: o ISERJ, Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro. As
atividades se tornaram possíveis graças à parceria com o Coletivo NEP_Raízes (Núcleo de
Estudos e Pesquisas Raízes), institucionalizado pelo Conselho Diretor do ISERJ para promover
ações multiplicadoras de implementação das leis 10639/2003 e 11645/2008 nos planos gestores da instituição secular.
Nessa articulação de setembro, buscamos, com a socióloga Carolina Rocha Silva, com o
sociólogo Lucas de Deus do Coletivo Nuvem Negra da PUC-RJ e com a diretora Ana Pacheco
do filme Respeito, trazer à tona os valores civilizatórios afro-brasileiros, idealizados por Zó na
construção de sua pedagogia Brasilis, interligando-os à necessária e urgente luta contra o
Racismo Religioso.
Já em outubro, as Giras da Zó estiveram atreladas aos dados e ao que podemos fazer com eles na produção de políticas de enfrentamento às desigualdades estruturais deste país. Com a chamada Nas Giras da Zó: Bate-papo com a Jornalista Flávia Oliveira e o Economista Marcelo Paixão, mediado pela Psicóloga Luciene Lacerda – Tema: Os números da desigualdade. O que a economia pode nos ensinar?, ampliamos o escopo de atuação para extramuros iserjianos: formamos com o Colégio Prado Junior e seu noturno o que precisávamos para encher a sala 300, tendo como ousadia a articulação já firmada com o Coletivo Nuvem Negra, levando para o ISERJ as câmaras fotográficas da querida amiga Paula do Abaeté e os holofotes do Baluarte Filó e seu CULTNE.
Como houve inúmeras oportunidades do ISERJ ter sido o espaço de afetos de Azoilda em seus
múltiplos territórios do saber, a saber: creche, educação infantil, anos iniciais, anos finais, ensino médio, EJA, pós-médio, pedagogia e especialização lato-sensu, os fios soltos que tecerei neste segundo dos sete textos a publicar e serem publicados no Blogueiras Negras se pretende um mosaico de meu outubro rosa, iniciado em setembro e entrelaçado à centralidade do Projeto
“Sempre às Quartas”, idealizado e liderado por mim há três anos, circunscrito às articulações que promovo em meu caminhar como professora da EJA, afetada por multiplicidades de saberes e quereres cujo objetivo maior seja a construção do pensar grande na promoção de vidas que façam pulsar a alegria, o respeito e a construção de coletividades, tecidas por existências plurais.
Pretendo, também, homenagear mulheres e homens que com suas existências e textos deram
sentidos ao meu caminhar, fazendo com que minha saúde mental ficasse em primeiro plano e os significados de “O autocuidado de mulheres negras é revolucionário.” fossem pautados em
novos termos.
Dos lugares da Primavera das Giras
E a música diz “quando entrar setembro e a boa nova é andar nos campos…”. Para mim a boa nova foi frequentar abrigos que com sua multiplicidade de crianças me calaram fundo e me ensinaram outros lugares de afeto. Levei às reuniões das Giras um desejo de parte dos livros infanto-juvenis do Legado de Zó serem doados para dois desses lugares, um de meninas adolescentes no Catete, Zona Sul Carioca outro em Mendes, região Centro-Sul fluminense, onde meninas e meninos, vítimas das desigualdades todas desta nossa mãe (“Pátria”) nada gentil, nada acolhedora, nada sensível às dores do mundo, sobrevivem e insistem em ainda crer na vida. A acolhida com que as meninas do Catete me receberam contando histórias que seriam por elas manipuladas para que as recontassem da forma e maneira que bem quisessem foi magistral.
Fizemos tarjetas juntas, implicamos umas com as outras, elas testaram minhas opiniões acerca da “sisteragem”, termo correlato ao “broderagem” que apreendi como formas de sociabilidades
afetivas e sexuais vivenciadas pelas juventudes na atualidade. Redescobri-me nas lágrimas que
caíram sobre meu rosto após a leitura do “Equilibrista” e do “Coração de Corali”, textos clássicos da literatura infanto-juvenil e de escritoras brancas. Como contraponto, apresentei
Carolina Maria de Jesus, Elisa Lucinda, Conceição Evaristo e Azoilda Loretto da Trindade, ancestral, doadora dos livros que como Corali tinha um buraco no coração, preenchido por uma
longa doença que nos deixou em luto por sua ausência física. Até aquele momento, não havia
percebido o tamanho do buraco em meu coração. As lágrimas compartilhadas com aquelas
meninas adolescentes deram sentidos outros ao porquê de insistir nas giras e no coletivo de
aprendizagens afetivas. Nossos buracos podem ser acolhidos por abraços, por ideias de vida, por celebrações de amor contidas nos livros, nas histórias, nas memórias de cada uma. Saí de lá com uma relação de leitoras e escritoras de si e com a intenção de insistir no que aprendi com Loretto em seu amor pelo “Livro dos Abraços” de Eduardo Galeano e em seu “A Função da Arte/1”, ensinar a ver o mar, o mar de fogueirinhas que somos todos e todas nós, umas de fogo brando, outras de fogaréu que de tanta intensidade, alumiam, queimam, Às vezes até ardem e quem chega perto pode sair chamuscado como na “Função da Arte/2” já citado. Memórias de uma parceria de quase 30 anos que dois anos de luto e saudades das pequenas e grandes implicâncias nas horas de angústias aumentam meu buraco de Corali/Janete.
No outro abrigo, a história era outra. A visita foi encomendada pela querida malunga Marta
Muniz Bento, professora de História daquele município e parceira nas giras. Ela quem me solicitou a pedido do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e
de defesa das crianças e adolescentes que eu interferisse junto a uma menina que teve seu cabelo, sua identidade negadas pelo descaso com que o silêncio do racismo, interpretado como bullying é tratado nas escolas. O não saber lidar com nossas características fenotípicas e a maldade com que o Racismo Estético desqualifica e hierarquiza nossas belezas, fazendo com que meninas de oito anos não queiram estar na escola e sejam responsabilizadas por não quererem crescer. Como crescer intelectualmente se as opressões curriculares nos tiram o chão, fazendo com que nos sintamos “desequilibristas”, tais como o sujeito do livro lido no outro abrigo? Nossas histórias de meninas negras se interligam. Para aquela menina e as demais crianças desse abrigo misto, contei a história do “Cabelo de Cora” emprestado pela também malunga das giras, Angela Ramos, e pedi que anotassem palavras chaves para que depois a história fosse recontada e ilustrada por quem me ouvia. Saí de lá querendo retornar com livros de Zó que ficassem para que o encanto de sonhar com as histórias lidas pudessem ser ampliados pelo de ler e recontar a partir de si mesmas. Cumpri a promessa neste outubro rosa. Retornei e contei outras histórias, desta vez em parceria com a jovem malunga Amanda Sanches e seu lindo cabelo que encantou e despertou o espelho com que outra adolescente abrigada quis ser refletida. Tal como foi no Catete, as histórias narradas ficaram no espaço do abrigo ao alcance das mãos, olhos, ouvidos e imaginação das crianças e jovens asilados. Haverá uma Gira-texto específica para o que tem sido Mendes, um dos lugares afetados por Azoilda.
Com tanta emoção pulsante, o dia 27 de setembro no ISERJ foi de celebrar com as crianças da
tela do filme “Respeito” e as/os adolescentes, adulta(o)s e suas/seus professoras/es a lindeza da
homenagem à Zó, coincidida com o histórico dia do Caruru de 2015 – evento que inclusive apresentou a jornalista Flávia Oliveira à importância dessa maga. Foi ela quem cutucou o Prefeito a homenagear nossa mestra como patrona e não por acaso, de uma EDI e no Complexo
da Maré. Com a singeleza a trouxemos nas vozes autorizadas de Rosa Helena Mendonça, Ana
Cristina Pereira e Selma Maria da Silva, parceiras de trabalho e de sonhos. Foi o ponto alto da Gira.
Rosa Helena, no programa “Salto para o Futuro” da TVE Brasil, onde Zó atuou como consultora
em diversas séries, reunidas em uma publicação intitulada Africanidades Brasileiras que pode
ser acessada aqui.
Ana e Selma, nas diversidades de territórios do ISERJ, desde seus setores de trabalho, anos iniciais e ensino superior, respectivamente, até o Coletivo NEP-Raízes: Azoilda esteve conosco
na homenagem que fizemos à Lélia Gonzales, professora do ISERJ na década de 60 do século passado e no espetáculo “Nascimentos”, texto de Conceição Evaristo, dedicado a Abdias do Nascimento por ocasião de sua passagem, atividades constantes do Seminário Visões da Liberdade, ocorrido entre abril e maio de 2015.
Outubro de tantas descobertas
Meu outubro é marcado há três anos pela imersão integral no “Projeto Jequitinhonha aí vamos
nós!”, um trabalho de campo, idealizado por Warley Pires, natural da cidade de Jequitinhonha,
atualmente morando e trabalhando no RJ, com colegas e malungas de profissão que se responsabilizam junto aos responsáveis e ao colégio por jovens de ensino médio do Colégio
Brigadeiro Newton Braga antes, durante e após a imersão. Saímos do Rio de Janeiro no dia 04,
retornamos no dia 15. Mas não será sobre o Jequi, nome carinhoso, que falarei e sim da construção do “Sempre às Quartas” de outubro. Só citei o Jequitinhonha porque no nosso trajeto teve Belo Horizonte e lá em um encontro magistral no Centro de Referências da Juventude-CJR, onde ouvi Vanessa Beco falar da importância de Loretto da Trindade para a belezura do que as minas dessa cidade operam. Azoilda é celebrada nacionalmente, quiçá internacionalmente!
Voltando às tessituras do “Sempre às Quartas”, o convite a Flávia Oliveira foi decidido em uma
conversa rápida no escurinho do cine Odeon, durante a programação do 10° Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul. Ela me disse “reserve uma data em outubro para que eu feche minha agenda com você”. Finalmente, as juventudes com as quais trabalho interagiram com a belezura dos números a nosso favor e nos termos daquela cujos artigos sobre a Reforma da Previdência enriqueceram outras quartas.
Para as Giras da Zó, enviei e-mails a toda a lista de presenças confirmadas no Caruru e mais
alguns amigos com os quais tinha conhecimento do trabalho com ela. Uma dessas pessoas foi
Marcelo Paixão cuja importância intelectual no trato com os números da desigualdade e na
urgência de levá-los às salas de aula e em todas as disciplinas é mais do que notória. Marcelo
está, atualmente, lecionando na Universidade do Texas. O pedido foi para que ele produzisse
uma reflexão a partir de seu encontro com Zó e da necessidade de interpretar os números, com os quais o Poder opera em sua máquina de moer gente, a nosso favor e nos nossos termos. Marcelo não só aceitou meu desafio como no dia 04 de outubro, horas antes de minha viagem às Minas Gerais me ligou, falando da urgência e importância das Giras da Zó, pois que o enfrentamento ao discurso do ódio não possa ser com mais ódio, mas com amor, daí a relevância do pensamento de Azoilda Loretto da Trindade chegar a múltiplos lugares. Nessa conversa à distância, Marcelo me disse que poderia estar presente no ISERJ em sua passagem por estas terras na última quarta do mês, portanto, poder prestar sua homenagem à Zó in loco.
Viajei surtada!
O que deveria ser a pausa necessária ao meu autocuidado, fortemente recomendada por Alice
Walker e seu ensaio número 4 “Toda Glória à Pausa: O Momento Universal da Reflexão”, publicado no livro We are the ones we have been waiting for: inner light in a time of darkness,
de 2006, lindamente traduzido por Katia Costa Santos e apresentado pela mesma, na Casa das
Pretas, lugar de existências de mulheres negras no Rio de Janeiro não rolou. A leitura de Alice,
junto à do “Transformando o Silêncio em Linguagem e Ação”, de Audre Lorde, também traduzido por Katia Costa Santos serviram de inspiração ao texto-reação e conselho da amiga
Angela Ramos a mim:
_ Janete, você precisa pausar, recuar, se autocuidar, desacelerar.
Como conselho bom deve ser aceito de corpo inteiro e generosamente, levei para mim e de bom
grado, pois que ao recebê-lo, pensei na possibilidade de meu fogaréu me incendiar e queimar inteira, armadilha a que muitas de nós, mulheres negras estamos fadadas nesta estrada de ascensão social. Saber o que se quer e se for a construção coletiva preta, requer que saibamos
esperar pelo fogo da outra para que, de fato, o fogaréu alumie a todas e não a quem o tem mais
forte. Acalmei meu coração e na pausa do Jequi, enviei algumas mensagens para que o Sempre
às Quartas de outubro com o trio de potências negras(Flávia Oliveira, Luciene Lacerda e Marcelo Paixão) fosse inesquecível e sincero!
E de fato foi, nas falas de cada um(a), após as cheganças realizadas por mim e minha parceira de projetos iserjianos Sonia Sarmento e do trecho que vai das 1:06:46 à 1:14:09 onde Azoilda conclama estudantes da EJA, acompanhados por mim, presentes ao encontro do LAESER de 2011, no SINPRO-RJ, a prestarem atenção porque Marcelo Paixão ao apresentar os indicadores sociais, fala da vida delas e deles, de seus sonhos, do compromisso com as mudanças do quadro caótico apresentado e do como usar os dados da educação pública a nosso favor. Ela conclama as/os profissionais da Educação, também. Para a tarefa de invenção de uma pedagogia dos indicadores sociais que dialogue com os sonhos de todas e todos nós. Eis ainda o nosso desafio!
Falas incendiárias ao que venho tecendo, pois que, na transmissão ao vivo pelo Coletivo Nuvem
Negra, na entrevista dada ao Mestre Filó e seu CULTNE, na presença efetiva de 75 assinantes da lista de presença, em uma quarta-feira de greve pelo que nos é devido pelo Estado do RJ que em sua sanha neoliberal nos destroça, nos aparta, pagando a uns e não a todas e todos, fazendo com que nossas experiências coletivas de mobilização e luta sejam fragmentadas, atravessadas por desconfianças mútuas e, de minha parte, repensadas e ampliadas por novas formas de Ocupação, sendo o Sempre às Quartas do dia 25 de outubro uma delas. Além de uma gira em homenagem a Zó, uma gira de greve, de rebeldia preta dentro de uma escola que tem tratado a EJA como quarto de despejo da educação básica. O Sempre às Quartas é nossa resposta. Somos visíveis, sonhamos, escrevemos nossos sonhos, articulamos possibilidades outras e ampliamos os territórios de escutas sensíveis para além dos muros escolares.
O antes do Sempre às Quartas foi construído nas turmas da EJA em parceria com a professora
Asyha Gomes de Empregabilidade e Administração, estagiários de História da UFRJ: Ana
Cláudia da Silva Pinto, Gabriela Montoni, Juliana Nascimento da Silva, Roberto Tavares Gomes
e Luís Rogério Pereira, cuja professora de Prática de Ensino, Giovana Xavier, tem há três anos
ampliado seu campo de estágio nos territórios de minhas salas de aula.
Destaco a nova parceria com a equipe de profissionais das quartas-feiras do Colégio Prado Junior, vizinho do ISERJ na presença do professor de sociologia Lúcio Dias Braga.
Além da riqueza humana, os textos de Flávia Oliveira, publicados em suas colunas semanais e o
texto “ANTROPOFAGIA E RACISMO: uma crítica ao modelo brasileiro de relações raciais” de
Marcelo Paixão acompanharam-me nas noites de lágrimas, angústias do errar a mão, incertezas do meu “ser centralizadora” e não entender os NÃO e os silêncios de quem eu esperava os SIM
como respostas válidas ao desejo de um outubro rosa das Giras. Ouvir Marcelo homenagear Azoilda e, por conseguinte, nossos sonhos de vida desde a década de 80 no IPCN foi o aceite que precisei para saber que Zó está viva nas tessituras de todas e todos nós e cada um(a) saberá como interagir com essa força que nunca seca.
Rodopiei para meus lugares de fala e aprendi a acolher os das que comigo constroem esta e todas as outras homenagens a que Azoilda faz jus nas brechas dos teares que se constituem ao nosso caminhar. Neste outubro, os convites feitos à Luciene Lacerda para a mediação do bate-papo do dia 25 e a arte do Coletivo Nuvem Negra, inspirada na Logo do Projeto, feita pelo Designer André Ribeiro contribuíram para que, de fato, estejamos pessoas múltiplas e diversas juntas, misturadas e construindo saberes horizontais.
Este tem sido meu legado quando penso e festejo meus quase trinta com Zó. Se com minhas pausas necessárias, meu fogaréu intenso e as brigas das Oxuns Opara e Abaté, mediadas pela
força de Xangô em meu ori, deixarão, não sei. Até aqui, deixaram e me fazem crer que é possível
a construção de coletivos pretos sem pressupostos da antropofagia branca, a que subalterniza
parcerias e hierarquiza saberes, trazendo como consequência um adoecimento que mata. Em
minhas articulações busco estar em antropofagias negras, entendidas como giras acolhedoras de todos os tipos de vida humana, tal qual visto pelo homem da aldeia de Neguá, litoral da Colômbia.
Giremos e celebremos, pois o Sobrado de Mamãe ainda está debaixo d’água esperando que o
emerjamos a nosso favor! Se quiser cirandar conosco as suas giras da Zó, nos escrevam [email protected], estaremos aqui e lá para somar!