Na semana passada, um acontecimento chamou a atenção da maternância negra.
Noelle, uma mãe e professora da rede pública, observando as ações de mães brancas pontuou em uma publicação que, agora que elas asseguram que foram pegas pela crise, estão migrando para a rede pública de ensino e iniciaram um verdadeiro processo de “Salvação da Educação”, traduz-se, a garantias do nosso bom e velho privilégio branco.
Elas agora fazem parte de conselhos, reuniões escolares alegando que as professoras e o corpo docente trabalhem com “dignidade”, algumas chegam a alegar que a equipe escolar é preguiçosa e seguem organizando frentes de embate.
Ontem mesmo, li uma reportagem em uma rede grande de notícias que o título era que as Mães de Classe Média-Alta com seus filhos na rede pública poderiam ser a “salvação” da mesma.
Daqui, e eu falo como uma mãe negra que tem três crias no ensino público, que gelou na entrevista com medo da filha não ser aceita, já que meu padrão de vida era claramente diferente dos pais que se encontravam na recepção de uma das creches. Medo pela minha filha, medo por mim…
Depois do desabafo de Noelle, várias mães negras compartilharam o post, pois compartilham do mesmo sentimento de indignação. Só que a branquitude fica enlouquecida: perdeu o dinheiro, o lugar, o status, o trabalho e o poder de consumo…
Aí já viu!
Resultado: várias ameaças no inbox de Noelle, que logo solicitou a suspensão do post.
Redigimos este texto sob pesar e resistência, e já cientes de que, aos olhos privilegiados da branquitude, este será mais um texto de vitimização.
Este texto é uma resposta aos ataques sofridos pela Noelle, mulher, mãe e educadora, que expôs de forma sucinta seu pensamento sobre a inserção dos brancos de classe média na escola pública e sobre a luta da branquitude pela manutenção de caprichos individuais.
Essa mesma classe brada por uma escola pública de qualidade, mas sem, de fato, refletir sobre o que é uma educação qualitativa. Esta mesma classe média, tão “educada”, “politizada” e “consciente”, referiu-se a nós, os observadores de seu egoísmo, como miseráveis, mortos de fome, disseram que para nós a fome é pouco.
Sim, as máscaras caíram.
Quem é oriundo da educação pública, por necessidade real e pela absoluta falta de opção, e que precisa dela até hoje, sabe a luta insistente que travamos para um ensino de qualidade, que está diretamente ligada às questões socioeconômicas. E é justamente a questão socioeconômica que transforma a escola num ambiente inóspito, díspar, não-inclusivo e racista.
A luta é diária. Ocorre dentro das possibilidades de cada um e uma que dela se empodera. Cada um exerce sua parte na luta, sem pensar somente nos quesitos individuais, mas por um coletivo.
Reivindica que haja valorização profissional dos trabalhadores da educação.
Reivindica que haja cuidado e respeito às crianças e adolescentes.
Reivindica que haja recursos físicos e financeiros para um processo de ensino-aprendizagem significativo, não somente no ponto de vista intelectual, mas também das questões humanas.
Essa nova classe recém-chegada, com seu falso discurso de coletividade, tem se apropriado dos espaços, extrapolando direitos e papéis, julgando esferas erradas, agredindo professores e suas condutas e exigindo o que entendem, pretensiosamente, por “direito”.
De fato é direito de todo ser humano (e porque não a criança/adolescente?) receba respeito, boa alimentação, cuidados necessários na escola pública, mas não podemos esquecer que o convívio coletivo limita o atendimento às necessidades individuais.
Tais questões fogem à compreensão desta classe prepotente e salvadora, que se dispõe a ensinar o gestor, a gerir; a docência a ensinar; que se dispõe a lutar por uma educação de qualidade, mas não conseguem sequer admitir que são privilegiados, individualistas e racistas. Sim, não temos como falar de educação e silenciar sobre o racismo, principalmente no que concerne â escola pública, visto que, historicamente, foi ela que acabou relegada aos menos favorecidos, classe maciçamente composta pela população negra.
Em nenhum momento, os yurugus salvadores se interessaram pela profundidade da estrutura que mantém a escola pública cada vez mais sucateada. Em nenhum momento, houve interesse em compreender a macroestrutura, mas sim, em mapear as “melhores escolas” e inserir seus filhos nelas, ainda que isso prejudique outras pessoas.
O interesse desta classe é escolher a “escola pública da moda”, onde é possível espernear, encurralar e exigir. Onde é possível apontar o dedo na cara da professora e chamá-la de “preguiçosa”, “reclamona”, pouco ou nada “inovadora”…
Onde é possível dizer que “a folgada não quer ter trabalho”.
A qual trabalho se referem? O que é e o que não é trabalho? Aliás, a que preço e condições este trabalho se desenvolve?
Não interessa a eles! Não interessa: desde que os caprichos estejam todos em dia e o atendimento seja sempre preferencial.
Essas mesmas pessoas tão “conscientes”, em seu genuíno egoísmo, seguem contribuindo sistematicamente com uma educação racista, excludente, deteriorada. São pessoas articuladas, conhecedoras de leis, mas que ignoram problemas educacionais que, no futuro, contribuem com a crescente violência.
Enquanto a preocupação é querer tirar a hora da soneca da escola porque não quer ter trabalho de cuidar de filho em casa; enquanto a vontade de vocês é tirar o bolo dos aniversariantes do mês (sem saber que muitas crianças dali sequer terão uma festa de aniversário na vida!).
Enquanto vocês estão preocupadas em fazer “piquenique de orgânicos”, sem fazer ideia do que a fome realmente é. (sim, yurugus, muitas crianças só se alimentam do que é servido na escola, não têm comida em casa), nós. do lado de cá, lutamos para que nossos filhos sobrevivam.
Sobrevivam ao racismo enraizado de vocês.
Sobrevivam ao conteúdo atrasado da rede pública frente às escolas particulares.
Sobrevivam ao massacre da autoestima.
Sobrevivam à falta de recursos do Estado, por conta da corrupção endêmica.
Sobrevivam ao ensino sucateado.
Sobrevivam à falta de coletividade, de parceria, de importância.
Sobrevivam à ausência de alternativas.
Sobrevivam às mentiras contadas por vocês desde a colonização.
Agora, vamos falar de educação, educação pública, mas primeiramente, vamos falar de nós.
O Nana, este ano está realizando um mapeamento (inserir link) de Mães Negras, cujo objetivo é a formação de redes para o nosso fortalecimento, portanto, quanto mais Mães Pretas responderem é melhor.
Até agora, temos 200 respostas, e destas 200 mães negras, 68% delas precisam de uma rede de apoio para olhar seus filhos durante o período do trabalho e 33,3% deixam seus filhos com algum parente, 25,8% dependem da rede privada.
Só 18,8% contam com a ajuda da rede pública no período em que estão trabalhando.
Nós sabemos muito bem o porquê: sempre são os critérios para a inserção na rede pública eurocêntricos e racistas. A educação sempre foi uma preocupação das Mães Negras periféricas, já que nós precisamos da rede para assistir as nossas crias.
Assim, nós procuramos sempre estar em parceria com a rede escolar.
Nossa luta é diária, constante e incisiva, já que temos que combater todos os dias os estereótipos lançados em cima deles e de nós. È uniforme, material, higiene, tudo: nossa preocupação é total e nosso desdobramento também, bem como a forte participação em todo calendário escolar.
O “complexo de Deus” da branquitude não vai salvar a educação.
Nós já temos um caminho longo e seus privilégios não irão salvar a educação, muito menos as suas necessidades particulares.
Inclusive, é importante refletir: os crescente relatos de racismo que vitimizam crianças negras e que atropelam ferozmente a autoestima delas não tem relação com a ocupação de cada vez mais famílias brancas interessadas apenas na individualidade e manutenção dos seus próprios privilégios?
Falando de realidade, sabemos que a rede pública conta, de um lado, com milhares de crianças e suas respectivas famílias e, do outro, com um número amplo de funcionários – tanto no quadro de magistério, quanto no quadro de apoio às unidades.
São Paulo, por exemplo, é uma cidade enorme. Se, por um lado estamos lidando com escolas de 8 salas em áreas nobres e bem localizadas; no outro, estamos falando de escolas com 20 (ou mais) salas, nas periferias e com quantidade máxima de alunos.
Falamos do que vemos e vivemos.
Falamos da realidade de mães que atravessam a cidade inteira após deixar as crianças na escola.
Falamos de mães que são privadas, muitas vezes do mínimo, para garantir o máximo aos filhos.
Falamos de profissionais desvalorizados pelo funcionalismo público e mal vistos pela sociedade.
Falamos de uma luta travada há tempos, e agora, não adianta, nem choro, vela e muito muito menos ameaças in box, porque nossa consciência negra tá formada e combativa. Acabou.
Imagem de destaque – Brasil 247