Diante das resoluções de ano novo e do medo instaurado pelo “novo” cenário nacional, senti pousar em meus ombros, assim como nos de outras tantas mulheres negras do meu convívio, uma sensação de intranquilidade e desesperança. Os dias vindouros pareciam mais nublados do que nunca e o futuro se fazia cheio de reservas e imagens de assombro.
Entretanto, não só de intempéries vivem as vidas negras e certos afagos nos dão, em dias tempestuosos, a liberdade que o nosso coração necessita. Assim, finalizando o ano de 2018 com tantas incertezas, não era de se esperar que, aos quarenta e cinco do segundo tempo, algum tipo de frescor surgisse e me colocasse para pensar. Mas aconteceu.
Semanas atrás, dei uma palestra, em uma escola estadual no meu bairro, para alunos do primeiro ano do ensino médio, sobre o tema “vozes literárias de mulheres negras”. No evento, organizado pela professora de história e por um grupo de estudantes do último ano do curso técnico da unidade, abordei questões referentes à minha pesquisa acadêmica: a escrita literária de mulheres negras, autorrepresentação e identidades de mulheres negras na literatura. Uma palestra na qual a potência da mulher preta era o centro e sua a poética a centrípeta que transmutava as nossas realidades.
O evento fazia parte de uma sequência de atividades voltadas para o corpo docente e estava incluída no projeto de TCC (trabalho de conclusão de curso) das estudantes do último ano. Um projeto totalmente pensado e desenvolvido por alunas da instituição e que salientava a menção das culturas e identidades negras, na escola, apenas durante o dia da consciência negra, além de alertar para a folclorização dessas mesmas identidades. Portanto, um projeto idealizado por estudantes, desenvolvido por e para estudantes e que buscava conscientizar outros estudantes daquela unidade sobre a questão racial.
Após finalizar minha apresentação, enquanto guardava o meu material, ainda na sala, fui abordada pelo grupo responsável pela organização do evento, as últimas estudantes matriculadas no já extinto curso de ensino médio-técnico. O que se seguiu foi, para mim, um momento especial, talvez um dos mais preciosos dessa minha curta trajetória e que centraliza minhas indagações neste texto.
O grupo que foi ao meu encontro consistia em quatro meninas negras, três de pele retinta, com idades aproximadas entre dezessete e dezenove anos, estudantes da instituição e formandas do último ano do curso de ensino médio técnico. Aqueles rostos, já conhecidos por minhas incursões anteriores naquele colégio, foram positivamente impactados por minhas palavras corridas (quase atropeladas, de alguém que anseia demais por contar verdades recém-descobertas) de jovem acadêmica.
As estudantes, após os agradecimentos, sinalizaram como era bom “não estarmos falando sozinhas”. Elas, que estavam construindo um trabalho de conclusão de curso sobre aquele tema, às vezes, temiam falar para o vazio: “o que você falou tem tudo a ver com o que a gente tá pesquisando. É bom saber que não estamos falando sozinha”.
As palavras soaram como um reavivamento. As alunas estavam extasiadas não apenas por uma fala cheia de paixão por literatura, mas por uma voz que ecoava de outro lugar, daquele lugar distante demais para garotas negras da periferia da cidade sonharem: a Universidade Federal da Bahia. Sim, elas estavam extasiadas por perceberem que as suas inquietações e percepções sobre como a identidade negra é tratada nos discursos escolares tinha ressonância em outras vozes, em outros espaços de poder. O que elas queriam dizer não era loucura e tinha mais gente falando sobre isso.
Ali, parada, por uma fração eterna de segundo, eu não era mestranda e nem professora, mas alguém que endossava que aqueles questionamentos eram pertinentes, tinham relevância. A minha fala vibrava uma ponte que unia escola e universidade, dizia sobre estar no ambiente elitizado da academia, e falar sobre nós, para nós. A minha existência confirmava que, apesar do foi dito sobre/para nós, sim, era possível!
Sentir a minha voz navegar na mansidão daquelas vozes fez minha fé renascer. Elas soavam como um respiro franco e insurgente num mundo abafado e caótico. Eram a chave das minhas promessas, anteriormente ensaiadas no palco da pós-graduação, e que pareciam se dissolver a cada passo doloroso de 2018. Elas eram, naquele momento, o que eu esperava de mim, ao final da adolescência, mas nunca pude encontrar. Eram a minha alma, minha voz, meus ancestrais, eram o meu futuro. E eu representava, para aquele quarteto, uma esperança.
A arte cíclica da vida (ou a imagem da roda) mescla início, meio e fim num mesmo movimento de (des)construção. Assim, senti que apesar de ser espelho (e representatividade) para quatro adolescentes negras saindo do ensino escolar, eu também me reenergizava a partir da potência daquele encontro. A reflexão foi, então, imediata.
Pensei em todas as mulheres negras que vieram antes de mim e como suas existências corporeificavam a minha esperança quando, em momentos difíceis, eu me questionava sobre fazer o meu trabalho, sobre a minha pesquisa acadêmica, sobre as minhas escolhas. Diversas mulheres negras que me “acompanharam” na descoberta de mim, mulheres que me deram força nas suas palavras e que me fizeram entender que eu não estava sozinha.
Talvez, aquelas quatro garotas negras, cansadas de tantas perguntas impetuosas e com medo do porvir, encontraram na minha presença um sentido de continuidade. Elas estavam certas e eu era a prova. Ver uma mulher negra, jovem, de black power, estudante do curso de mestrado, ocupando um lugar que foi historicamente negado à população negra era uma vitória sim.
O episódio, apesar de breve, logo após tantos discursos perturbadores e agressivos à vida de mulheres negras, tornou-se simbólico pra mim, também, porque me fez retornar, num ato instantâneo, a um trecho do poema Vozes-Mulheres, de Conceição Evaristo:
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
(Vozes-Mulheres, 2017, p. 25)
Assim como para aquelas meninas eu era um sol poente, elas se tornaram um nascedouro. E apesar de todas as máculas, 2018, ainda que no finalzinho, trouxe uma lufada de esperança.
E quando tudo parecer dissolvido, lembrem-se, meninas, não estamos sós.
Referências:
EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e Outros Movimentos. 2017.
Imagem destacada: Brookings.