texto escrito coletivamente com contribuições de Charô Nunes, Larissa Santiago, Natália Neris, Viviane Rodrigues Gomes
Essa foi a 9ª edição do Fórum da Internet no Brasil e Pré IGF – Internet Global Forum (Fórum Global de Internet), ambos espaços de importantes de decisões sobre o presente e o futuro da internet – como por exemplo, a criação de uma lei de proteção de dados, como a aprovada no Brasil, as discussões sobre a tarifa zero (zap e facebook de graça), entre outros assuntos que impactam diretamente nossa vida com o uso da internet.
No nosso segundo ano de convite – em 2017 fomos convidadas como participante, no Rio de Janeiro – percebemos a agudeza e urgência de ampliarmos o debate sobre internet para as nossas comunidades. Assim como em 2017, onde houve apenas uma mesa de mulheres negras, onde inclusive Marielle Franco se fez presente, em 2018 e 2019 havia um total de ZERO mesas de mulheres negras, com exceção da conversa sobre “soluções para o discurso de ódio”, onde havia uma maioria de mulheres jovens negras, mas ainda muitas brancas ao redor.
Parece bobagem apontar esse déficit, mas para o que queremos conversar aqui, essa análise nada superficial faz toda a diferença: apenas 67% dos domicílios brasileiros possuem acesso a internet, sendo 46,5 milhões de brasileiros, pesquisa lançada esse ano, realizada pelo Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação) órgão vinculado ao CGI (Comitê Gestor da Internet). Parece hilário, mas a mesma pesquisa não aponta quantos desses domicílios/pessoas são negras, mas há uma separação de classe: 99% são da classe A e apenas 40% são domicílios pertencentes a classe D-E. Se falarmos em zona urbana e rural então, a diferença cresce ainda mais.
Isto posto, percebemos estar – grande maioria da população – fora não só das discussões mas principalmente fora do acesso e da construção da internet brasileira. Aliás, se considerarmos a internet como algo bem mais amplo que “feice e zap”, diminuimos ainda mais o número de famílias, domicílios e brasileiros conectados. E não precisamos aqui desenhar porque acesso é tão importante né? Vamos mesmo ao que nos interessa….
Fórum da Internet no Brasil e Seus Criadores
É preciso recuperar um pouco da história do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) para que possamos destacar a importância desse instrumento e porque ele é um campo de disputa para as mulheres negras.
O comitê nasce junto com a aprovação da portaria ministerial 147 de 31 de maio de 1995. Veio na esteira da necessidade de se construir um órgão que pudesse organizar os serviços de conexão à internet no Brasil. Desde então, o CGI.br tem trabalhado para ampliar os debates em torno de tudo que se refere à internet, como por exemplo: infraestrutura de telecomunicações, neutralidade na rede, nomes de domínio, endereço IP, segurança, legislação, etc. O CGI.br também se tornou um importante centro de desenvolvimento de pesquisas sobre uso das tecnologias de informação e comunicação, além de ter conseguido se constituir num órgão que se tornou referência de governança da internet para todo o mundo.
Hoje, praticamente, não há nenhuma esfera da vida que não dialogue com a Internet e justamente por isso é que os debates realizados e impulsionados pelo CGI.br merecem destaque. É por essa importância estratégica que queremos nos aproximar das discussões do comitê, ainda mais se considerarmos que somos um país de ampla população negra.
O Comitê é gerido de maneira MULTISETORIAL, o que significa dizer que há uma variedade de atores que contribuem com discussões, ações e sugestões de boas práticas para a internet brasileira. Esses atores precisam compor as esferas científico-acadêmica, empresarial, governamental e de organizações da sociedade civil. Porém para estar aí e disputar ( sim essa é a palavra) uma cadeira no conselho gestor é preciso cumprir certos requisitos.
É bem verdade que sua composição e maneira de gestão multissetorial na maioria das vezes afasta organizações da sociedade civil de incidir mais efetivamente no CGI.br: a maioria de nós desconhece dos assuntos ali tratados, estamos geograficamente distantes do centro (o CGI.br tem sede em São Paulo) ou ainda não temos suporte financeiro para participar dos cursos e eventos promovidos pelo órgão. Além disso, a necessidade de institucionalidade repele as organizações, grupos e coletivos de tecnologia do processo de eleição do Comitê que assim não reconhece como legítimo, por exemplo, grupos não institucionalizados que implantam redes mesh em comunidades ribeirinhas e quilombolas.
Por entender a importância da participação da sociedade civil, compreendendo que somos uma grande parte que está completamente afastada do acesso e inclusive dos temas quentes da internet no Brasil, como mulheres negras, queremos alertar a importância desse debate dentro das nossas organizações, coletivos e grupos e abrir a pauta para que mais de nós incida positiva e criticamente sobre essas instâncias tomadoras de decisão.
Pesquisa #QUEMCODABR e o baque
Igualmente impactante, mas nada surpreendente é a pesquisa lançada recentemente pelo Preta Lab em parceria com a ThoughtWorks que confirma a nossa suspeita: apenas 36,9% dos profissionais de tecnologia e inovação são pessoas negras. Veja, quando falamos de mulheres, sem racializar o número cai pra 30%!
Nesse sentido, importante dizer que a pesquisa aponta a nossa ausência na produção de tecnologia, quer dizer, se nós não temos sequer acesso a internet assim como ela é, imagina então estar no lugar de pensar jeitos, pautas, governança e construção de tecnologias para a rede? Destacar esse nosso não-lugar é, inclusive, compreender o porquê dos nossos movimentos, grupos, coletivos e organizações não discutirem internamente questões de tecnologia da informação e comunicação.
Essa pesquisa excepcional aponta os caminhos que devem ser tomados não só por empresas de tecnologia ou mesmo universidades e cursos de formação nas áreas de TI: os números demonstram a real necessidade de pensar na área de tecnologias como parte ESTRATÉGICA dentro das organizações que, em geral, delega sempre a uma empresa de TI ou a algum homem branco o cuidado com suas máquinas, dados e ferramentas digitais.
Para além de pensar na inserção das meninas e mulheres negras nos espaços das exatas nas universidades, precisamos construir consciências de processos para dentro dos movimentos, onde o desejo não seja só sair da universidade e ocupar cargos importantes em empresas e start ups. É preciso repensar profundamente o lugar e o papel das mulheres negras na tecnologia, propondo sempre novos jeitos de fazer e pensar as tecnologias de informação e comunicação.
Nossos corpos no mundo da tecnologia
Fundada em 2017, a Deep Learning Indaba é uma resposta direta às conferências acadêmicas ocidentais, que geralmente são difíceis de acessar para pesquisadores de partes distantes do mundo. Tomemos, por exemplo, a Conferência sobre Sistemas de Processamento de Informação Neural, a reunião mais conhecida dedicada às redes neurais artificiais. O NeurIPS – originalmente chamado de NIPS, até que a comunidade solicitasse predominantemente um acrônimo menos orientado para os mamilos (niples, em inglês) – já havia sido realizado em resorts distantes e caros. É um tipo de férias para pesquisadores que podem pagar. Em 2006 e 2007, foi no Westin Resort and Spa e no Hilton Resort and Spa em Whistler, Columbia Britânica, no Canadá, para permitir “discussões informais, esqui e outros esportes de inverno”.
Para pesquisadores da África, o NeurIPS geralmente está fora de alcance. Em 2016, nenhum documento de países africanos foi aceito na conferência. Em 2018, mais de 100 pesquisadores tiveram o visto negado para entrar no Canadá para o NeurIPS. Segundo o texto África está construindo uma indústria que não se parece com o Vale do Silício, o Deep Learning Indaba tem se tornado um espaço de conexão e desenvolvimento de capacidades para a comunidade de inteligência artificial da África: “Precisamos encontrar uma maneira de construir o aprendizado de máquina africano à nossa imagem”.
Nesta edição do Fórum da Internet no Brasil, nos perguntamos: quantos artigos e atividades de mulheres negras o CGI.br aceitou? E qual foi o número nas edições anteriores? Quantos trabalhos de mulheres negras são privilegiados em estudos patrocinados pelo CGI.br? Além da multisetorialidade, quais são os outros critérios de seleção para propostas de atividades dentro do fórum?
Por frequentarmos apenas recentemente os espaços do CGI.br, não temos como dar estas respostas: presentes apenas nos Fórum de 2017 e 2019, nós, as Blogueiras Negras estamos acompanhando um retrocesso que deve ser mais visível ainda para quem tem andado os quatro cantos do país e percebido a pluralidade racial nos espaços de decisão de governança na internet. Compreendemos que nesses 9 anos deve haver um esforço real dentre os conselheiros e associados do CGI.br para trazer mulheres, negras, cis e trans ao centro do debate – e por isso destacamos aqui figuras brancas como Prof Marcos Dantas e Prof Sérgio Amadeu – mas ainda engatinhamos no que diz respeito a prática real da pluriracialidade nos espaços de poder do CGI.br [não encontramos, por exemplo, nenhuma negra conselheira ou mesmo nenhuma organização de mulheres negras na disputa das eleições para conselheira].
O lugar das negras é na tecnologia
Pensar desenvolvimento tecnológico, ferramentas e tecnologias da informação e comunicação é pensar futuros possíveis, e por isso queremos e estaremos nesse lugar. O Deep Learning Indaba tornou-se tecido conjuntivo para a IA [Inteligência Artificial] da África – não apenas o espaço para a comunidade se reunir, mas uma parte da própria comunidade. A conferência estabelece relações entre os pesquisadores do continente com uma agenda clara: construir uma comunidade tecnológica pan-africana vibrante – não através da reinvenção das tecnologias existentes, mas criando soluções adaptadas aos desafios da região: tráfego alastrado, pagamentos de indenizações de seguros, e padrões de seca. Mulheres negras de todo o mundo, pesquisadoras das áreas das tecnologias, têm apontado a necessidade da construção de uma matriz interdisciplinar e socialmente diversa que possa lançar percepções não hegemônicas na produção tecnológica. Grandes conferências, como o IGF [Internet Global Forum, em português, Fórum Global da Internet] , possuem o potencial de ser o grande aglutinador de um hibridismo tão necessário à inovação tecnológica. Mas concretizar isso depende, mais de coragem do que de vontade. Se houver coragem para reconhecer as mulheres negras como produtoras de tecnologia com viés verdadeiramente inovador e como pessoas capazes de ampliar o debate de raça e gênero na tecnologia, poderemos ter uma verdadeira revolução no que diz respeito a desenvolvimento da humanidade. Considerar que, para nós, a ressaca da internet e dos campos da tecnologia ainda não chegaram é perceber o potencial criativo e transformador das mulheres negras sob uma perspectiva que vá além do pensamento tecnicista.
Nossa reivindicação é o reconhecimento de uma epistemologia feminista e negra que perpassa todos os campos das ciências humanas e exatas, e que tem nos dado capacidade de transversalizar conceitos e práticas que vão além do pensamento comum-medíocre branco. Quer vê? em um debate promovido pelo próprio CGI.br beirando as eleições de 2018, estivemos conversando sobre fake news, desinformação, aprendizado de máquina, bots e afins. Num dado momento, alguém [nem precisa destacar a cor/raça] iniciou a proposição da possibilidade de criminalização de bots e perfis fakes. Logo, nós mulheres feministas negras presentes questionamos tal indicação, já que entendemos o princípio da anonimidade e da possibilidade de múltiplas identidades como alternativa a mulheres trans e cis, observando também o sucesso de bots e aprendizado de máquina para tratar de assuntos como justiça reprodutiva e denúncias.
Ora, perceber que o nosso olhar vai além do que está sendo pensado e constatado como padrão para o desenvolvimento de tecnologias da informação e comunicação é parte da coragem de que falamos. É não só tutelar ou intencionalmente racializar os debates em torno da tecnologia, mas admitir que temos capacidade de construir novos conceitos e práticas a partir da nossa experiência nos debates sobre comunicação e tecnologia.