Aviso de gatilho – dor emocional
.
.
.
Há tempos não sentia o chamado da escrita, é estranho mas esse chamado acaba vindo muitas vezes pela dor, não sei se tem alguma referência quanto a esse dado em relação a escrita de mulheres negras, se procurar com vontade certamente encontrarei, mas esse texto não é sobre dados é sobre a dor.
Tendo esse tempo extra na pandemia tenho tido muito tempo para prestar atenção em minhas dores assim como para senti-las de formas mais intensas. São dores diferentes e por razões específicas que também doem de formas distintas.
Uma amiga me relatou por esses dias a possibilidade de um câncer na família, eu queria mesmo conseguir dar apoio e falar sobre com ela, mas me veio a dor de ter perdido meu pai a menos de dois anos por essa doença, a dor da perda pra mim é como a dor de uma facada, apesar de nunca ter levado uma, é uma dor fina que desce do diafragma para o estomago, bambeia as pernas, paralisa o pensamento, é física e psicológica ao mesmo tempo, insuportável a ponto de não se conseguir falar, não é permanente, esse é o tipo de dor que se sente quando o telefone toca de madrugada, a dor irremediável, a dor da morte, que tem prazo pra começo e fim.
Essa dor pode não ser igual para todos, penso em como aprendi a me haver com essa dor para torna lá suportável e não sucumbir, penso em como meus antepassados viviam a dor de serem separados de suas famílias sendo arrastados acorrentados para navios, para em um regime de escravidão e humilhação viver com a dor da perda de seus filhos vendidos, de suas mulheres vendidas e violadas, de seus maridos açoitados, aprender a conviver com a dor da morte e deixar que ela passe em minutos se tornou uma questão de sobrevivência para a população negra, pois por muito tempo não tivemos sequer o direito de viver o tempo do luto.
A dor do amor, pergunte pro seu orixá amor só é bom se não doer, me arrisco a começar a falar dessa dor desconstruindo Vinicius de Moraes.
O se acostumar com o calor de um corpo, o moldar o seu sexo ao de um outro alguém, o se permitir se sentir livre na companhia de outrem, a passar o que há de mais importante na vida na companhia de outra pessoa que é o tempo, que não volta mais. É difícil compreender quantas vezes é preciso se permitir errar ou quantas vezes é preciso permitir que errem com a gente. Se torna mais difícil enquanto mulher negra pois não é fácil lhe dar com a estima que é estruturalmente baixa, com o preterimento que aprendemos a conviver desde de tão cedo.
Em um curto espaço de tempo, digo no ultimo ano fui confrontada por mais de uma vez com um tipo de amor ao qual eu não sabia se poderia corresponder, dizem das novas formas de amor, amor livre, não monogâmico, poliamor, da primeira vez eu corri, e mesmo sentindo muito me afastei o mais breve possível, da segunda vez com uma pessoa diferente mesmo querendo me afastei de novo, da terceira vez com essa mesma pessoa o amor me venceu e a luta comigo mesma é inevitável. Ate que ponto vale a pena estar sem estar na vida de alguém? Ate que ponto vale ser o segredo de alguém? Ate que ponto vale ouvir verdades que não libertam, mas sim machucam? Ate que ponto as mulheres que vivem essa forma de amor com outras mulheres se diferenciam ou se igualam a atitudes machistas?
Não defendo aqui a monogamia e nem desmereço as outras formas de amor, pois mesmo enquanto África haviam e ainda há povos que vivem das duas maneiras. O que trago enquanto herança escravocrata brasileira é a impossibilidade da vivencia de construção de uma vida com a pessoa amada, e sem romantizar os relacionamentos falo das impossibilidades infinitas e concretas mínimas como andar de mãos dadas, trocar olhares, dormir na mesma casa, impossibilidades estas que não permitiram que amassemos nem a nós mesmas, o que faz com que fique difícil identificar quando nos entregamos as vezes por menos que o mínimo. É preciso antes de tudo aprendermos a amar a nós mesmas para não aceitarmos seja em uma relação monogâmica ou não, menos que o mínimo, ou seja, reciprocidade.
E possível definir o amor em uma única palavra que não seja amor? Para muitos é segurança, ou cuidado, para outros companheirismo ou cumplicidade, para uns fidelidade, é importante entender que o significante amor não tem o mesmo significado para todos. E como diria Nina Simone ‘‘Aprender a se levantar quando o amor não está mais sendo servido.’’
A dor de se perder um amor é a dor que tira o sono, que se arrasta por dias, por meses, que dói no corpo inteiro, que tira o apetite, que traz o banzo como melancolia e saudade, o pior é quando temos que lhe dar com esses sentimentos para com nossos pares, de onde se espera que conhecendo as mesmas dores teriam o cuidado não de nos poupar de tais mazelas, não de nos dizer verdades duras, por que isso não isenta ninguém de nada, mas sim o cuidado de nem se aproximar quando se sabe que não irá corresponder o que a outra sente, se sabendo machucada/o que não machuque outras/os.
Tendo a orientação sexual chegado como fator determinante a mim antes da raça, sendo uma mulher negra lésbica, por muitas vezes não me atentei que a solidão das mulheres negras heterossexuais não diferem em nada da solidão das mulheres negras LBTs, e eu aprendi em minhas leituras feministas negras dentre elas Patrícia Hill Collins, que tenho duas opções para lhe dar com ela. A primeira é sofrer, a segunda não exclui a primeira, mas me permite subverter e transformar esse sofrimento em conhecimento, ou seja, a escrita que parece individual, mas que é coletiva, pois por mais solitário que seja o ato de escrever sinto muitas vozes ecoando comigo.
Referências
COLLINS, Patrícia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Estado e Sociedade. Volume 31
Número 1 janeiro/abril 2016. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/se/v31n1/0102-6992-se-31-01- 00099.pdf. 6. LUGONES