Que ela pague, que ela vá pra cadeia, atrás das grades, porque se fosse ao contrário, eu já estaria atrás das grades.
Mirtes Souza, mãe de Miguel
Hoje faz um mês da morte do menino Miguel Otávio, filho de Mirtes Souza, morador da Zona Norte do Recife e que sonhava em ser jogador de futebol.
Passado esse tempo, relativamente curto, mas bem maior justamente pela sensação que traz a pandemia de Covid19, nós não podemos e nem vamos nos esquecer.
Hoje a missa de Miguel rememora sua presença-criança e nos lembra que é delas o reino dos céus. Que a misericordia divina conforte o menino e todas as mulheres negras que sofreram junto com a perda de mais uma vida de sonhos interrompida.
Antes de tudo, gostaríamos, como sempre, de dedicar nossas simples palavras à família de Miguel: uma casa de mulheres negras, que sustentou e continua sustentando sua própria sobreviência e alimentava os sonhos de Miguel. Assim é a maior parte das famílias brasileiras: compostas por mulheres que foram ou são trabalhadoras domésticas e que lutam dia após dia para manter a dignidade de seus filhos e todos os outros familiares.
Sobre aquele dia, aquele sistema
Mirtes e sua família são vítimas de um sistema. Que é personificado e materializado em Sari Cortes Real, que carrega em seu nome a marca indelével da colonialidade, e é por isso e só por isso que escrevemos. Em nome de todas as mães negras, da periferia e do centro desse país que perdem seus filhos, sobrinhos, primos e vizinhos .
Assim sendo, queremos, pouco a pouco e de forma sistemática, remontar aquele dia, de maneira a trazer aqui expressões e argumento usados pela grande mídia, mas que servem muito mais para desviar nossa atenção ou apenas não nos fazer entender e nos afastar deste que não é só um caso, mas o retrato da negligência sobre corpos negros.
Quando Sari decide, antes mesmo do ato, manter os serviços domésticos de Mirtes, ela consegue nos dar um recado: apesar da Pandemia, existem pessoas que precisam servir à outras. E não importa a qual tipo de atividade. Naquele dia, Sari decidiria que precisava de Mirtes para manter sua estética tal qual estabelecem os brancos padrões. Ela manteria sua trabalhadora doméstica – que junto consigo levaria seu filho – para cuidar de suas coisas enquanto fazia suas unhas. O retrato mais servil e colonial possível, pintado com o carmin mais encarnado de sangue.
Ao traçarmos o fio de estruturas, privilégios e escolhas que culminaram com a morte de Miguel não podemos deixar de pensar nas imagens concretas e simbólicas tão queridas e perpetuadas por alguns. A “patroa” se senta à mesa, entretida com seus pequenos afazeres, enquanto uma mulher negra serve aos seus interesses. A presença de uma criança preta atrapalharia seus afazeres, é preciso que não ela esteja ali.
Mas deixou ele ir
O relatório do inquérito policial realizado pelo delegado Ramon Teixeira, apresenta numa das partes bastante importantes, o depoimento da manicure Eliane Lopres: “(…) a proprietária retornou à unidade aopós deixar Miguel seguir sozinho no elevador, tendo afirmado que havia tentando, mas deixou ele ir, tendo ela apertado um botão e ele alguns botões”
Ao constatar que aquela criança negra clamava por sua mãe, enquanto ela – a mãe Mirtes Souza – passeava com seu cachorro, Sari, segundo a perícia “sem margem de dúvida que a criança não havia fugido e ingressado no elevador sem que a Sra Sari a alcançasse, mas ao contrário, teria sido a própria moradora quem permitiu o fechamento da porta do acensor”, trecho escrito na página 4 do Relatório Conclusivo apresentado o resultado das investigações feitas pela polícia civil de Pernambuco.
Aqui é importante rememorar: Sari coloca Miguel dentro do “acensor” de serviço, o que pra nós quer dizer muita coisa. Ela não o acompanha, nem mesmo cogita a possibilidade de manter o olhar fixo ao painel. Sari o abandona.
Miguel poderia ter descido no 2º andar, também apertado aleatoriamente pela própria criança, mas o fato é que, segundo a própria investigação, existe uma “prova da previsibilidade” de que Miguel corria risco ao se deslocar sozinho pelo elevador. Segundo o delegado, “dos 38 andares do prédio, em 23 os moradores haviam colocado redes de proteção nas lajes técnicas, o que não acontecia no 9o andar, onde Miguel escalou a janela e alcançou a área dos condensadores do ar-condicionado“, como afirma a reportagem da Marco Zero Conteíúo.
Apesar de podermos com isso pensar numa coresponsabilização da administradora do condomínio Maurício de Nassau, pecebemos que há de fato uma previsibilidade da morte do garoto Miguel. Por mais que Sari Cortes Real venha a público dizer que vai provar sua inocência, sabemos muito bem o que significa abandonar a própria sorte uma criança negra de 5 anos: essa ação esboça a desumanização, a pouca importância e valorização da vida de um criança que não é a sua filha.
Segundo o póprio relatório do inquérito: “(…) a Sra Sari podia e deveria ter agido para evitar o resultado, mas não o fez, mesmo tendo criado o risco da ocorrência desse resultado (…)”
A estrutura que conduz o fio
Ao mesmo tempo em que retomamos essas imagens, precisamos entender quais molduras delimitam a cena. Os lugares em que estão situadas cada uma das pessoas, num país em que nós, as pessoas negras são tratadas como cidadãs de última classe. E os senhores, como há muito, têm ao seu favor sua cor, sua origem e sua classe.
Há também o fato de que “a patroa”, como ainda é chamada Sari nos jornais como se jamais pudesse ser tirada deste lugar de privilégio, teve a oportunidade de “perdir desculpas” através grande mídia. Pode escolher quando e em que condições sua imagem seria “estampada” pela imprensa nos telejornais, numa tentativa de conquistar a opinião pública. Uma possibilidade que não foi trivial ou impensada.
Aqui cabe lembramos também que Sari pagou uma fiança de 20 mil reais para responder em liberdade.
Outro detalhe na defesa de Sari é a contratação de um especialista que elaborou um parecerjurídico sobre o que aconteceu. Isso já diz muita coisa sobre a defesa que tem recursos para contratar esse tipo de produto que é extremamente caro, que a coloca em posição de privilégio mais uma vez em relação à Mirtes. Um parecer jurídico de um advogado como o do Professor Cláudio Brandão da Faculdade de Direito da UFPE é, além de um acréscimo a defesa, também uma tetativa de construção de uma narrativa favorável a primeira dama de Tamandaré. Como indiciada, ela faz uma jogada técnica muito comum entre pessoas com poder financeiro: em casos sem repercussão, pareceres como esse chegam a custar em torno de 6 a 7 mil reais.
Nesse documento, o perito contratado por Sari afirma que a morte de Miguel não se trata de homicídio doloso (quando há a intenção e a vontade de matar) ou homocídio culposo (quando não há a intenção e a vontade de matar). Muito menos abandono de capaz, que segundo o código penal brasileiro acontece quando alguém abandona uma “pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade” e que “por qualquer motivo” é“incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”.
Se Sari tivesse escolhido diferente
Seu argumento é que não podemos tirar qualquer conclusão sobre as ações e pensamento de sua cliente, exatamente o contrário do que foi concluído nas investigações. Esse documento vai ainda mais longe por descartar qualquer responsabilidade de Sari Cortes Real sobre o que aconteceu. A pergunta que fazemos é a seguinte – se Sari tivesse escolhido cuidar de Miguel, não colocá-lo no elevador e apertar o botão do elevador, como afirma a investigação feita pela polícia militar, ele estaria morto?
Mais uma vez reiteramos: Sari era a responsável por Miguel naqueles momentos e ao que o relatório diz: “me pareceu óbvio que a Sr Sari se encontrava na condição de agente garantidora detendo – naquelas circunstâncias, em que a genitora havia descido, momentos antes, com o cachorro da moradora para passear – o dever de agir para evitar o resultado. Ela detinha, naquelas circunstâncias temporárias, a responsabilidade de impedir o resultado sucedido”.
E finalmente, precisamos entender porque Sari teve seu depoimento ouvido às 6 horas da manhã, fazendo com que a delegacia fosse aberta fora do horário de funcionamento, apenas para ela, seu marido, o prefeito de Tamandaré e a manicure. Ontem, pessoas prrotestavam na porta da delegacia de Santo Amaro, quando foram também agredidas por policiais civis que, segundo consta, tentavam impedir violência e aglomeração. O fato é, que mais uma vez, vemos poder político, prático e simbólico refletido em ações como essas.
O resultado relatório junto com a perícia nos esperança, mas sabemos muito bem quais forças estão por trás de um caso como esse. O Ministério Público do Estado de Pernambuco na pessoa do Procurador Geral Francisco Dirceu Barros precisa acolher o indiciamento como abandono de incapaz, formalizando assim a ação penal. A justiça precisa ouvir o que pedem os familiares de Miguel Otávio, e assim como a justiça, nós, as mulheres negras, ouvimos Mirtes Souza. Abaixo, um trecho de suas palavras, nesta quinta-feira, dia em que a morte do seu filho completa 1 mês:
BN: Porque que você acha importante que a gente não esqueça da morte de Miguel? Porque que é importante pra você não esquecer?
Mirtes Souza: Acho importante não escquecer da morte de Miguel, principalmente pelo fato da questão do direito. Pressionar os juízes, as autoridades para que eles realmente dêem atenção ao caso do Miguel, que realmente façam justiça, que a condenem, que ela seja presa. Porque a partir do momento que você provoca a morte, você errou que realmente façam justiça, que a condenem, que ela seja presa, que a partir do momento que você erra, quer queira, quer não você provoca morte, você errou, você precisa pagar.
Ela precisa pagar e também que o caso Miguel não seja esquecido pelas pessoas para terem um pouco mais de atenção com as crianças. Independente de serem seus filhos ou não, tendo um pouquinho mais de atenção com as crianças e não deixar elas só, não abandonar, dar mais amor, mais carinho, aproveitar cada minutinho que você puder com seu filho, com sua filha. qualquer criança porque infelizmente a gente não sabe o dia de amanhã.
Os poucos anos que eu passei com meu filho eu tentei aproveitar o máximo, realmente sem saber o dia de amanhã e por isso que eu não quero que o seu caso seja esquecido. Não só a parte jurídica mas também como a parte normal para a populaçâo também realmente se tocar um pouco com relação dos cuidados e dos deveres que a gente tem de ter com as crianças.
BN: Conte pra gente como é que você gostaria que fosse a justiça, o que é que é a justiça pra você? A justiça no caso do seu filho…
Mirtes Souza: É que ela realmente seja condenada pelo que ela fez com meu filho, que ela (inaudível) juiz, que eles analisem realmente o caso, vejam realmente que ela errou, que ela seja condendada, que ela pague, que ela vá pra cadeia, atrás das grades, porque se fosse ao contrário, eu já estaria atrás das grades, desde o primeiro dia do que aconteceu, eu estaria atrás das grades, então ela também tem que ir. Porque se tem lei nesse país tem que ser igual pra todos!
A gente que é população de quatro em quatro anos, a gente vai as urnas votar pra colocar representantes pra gente lá e esses representantes eles fazem as leis, então eles fazem as leis pra todos, então se tem lei, tem que ser igual pra todos. Não é só porque ela tem status social, tem status financeiro, não! Tem que ser pra todos independente disso aí, de cor, raça, financeiro o que for. Tem que ser igual pra todos. Então eu quero isso, que ela seja condenada, que ela vá pra atrás das grades, que ela pegue pena máxima.
O delegado enquadrou ela em abandono de incapaz com (naudível) de morte. A pena é de 4 a 12 anos, que ela pegue os 12 anos! Em regime fechado, em regime fechado! e nesse período que ela tiver ali presa, ela reflita sobre o amor ao próximo, o cuidado, a questão de esponsabilidade que, não só ela – ela vai tá la pagando e tudo mais – mas também para as pessoas refletirem tambémsobre responsabilidade. Que o povo também se torne mais responsável, mais atentos em relação as crianças