A vida tem me ensinado, não sem dor, a ter calma comigo, com as limitações da minha alma e do meu entendimento. Venho caminhando estradas internas há algum tempo. Algumas densas, outras mais etéreas, todas com significados ímpares.
Agosto mês da visibilidade lésbica trouxe-nos, para além das questões cotidianas que nos expõem a inúmeras violências, o início de uma conversa franca sobre o patriarcado e a heteronormtividade e como eles se reproduzem nas relações entre mulheres lésbicas, na verdade em quase a totalidade das relações.
Um dos aprendizados desses caminhos é de que gente é, o que consegue ser e faz, o que dá conta. A urgência cotidiana, essa pressa interna que nos consome, abala profundamente nossa saúde mental. Queremos chegar sem apreciar os detalhes da trajetória e o processo de superar as dificuldades da caminhada, ou seja, perdemos a beleza da paisagem quando ignoramos o poder das transformações.
Estamos, independente das letrinhas que caracterizam a população LGBTQI+, fechados na caixa da heteronormatividade e essa perspectiva representa reproduzir o olhar masculino de se relacionar. O que transforma as manifestações afetivas, amorosas e sociais em relações de poder.
A forma cisgênero de enxergar o mundo e as relações estabeleceram um padrão de amor, o amor romântico. Um comportamento afetivo e – por que não dizer? – uma forma de amar. Perfeita para os contos de fada, mas que na realidade ignora as individualidades, os desejos e nos aprisiona na violência que reproduz o controle dos corpos femininos.
Somos criadas na mesma sociedade que teve como referências a Xuxa e as novelas da Globo como parâmetros de personalidade e relação. Orientação/identidade que vá na contramão da ”família margarina” não nos garante que estejamos fora desse quadro.
Mudar a moldura da pintura exige uma batalha interna de reconhecer em si os traços heteronormativos e a disposição de combatê-los, ou pelo menos de criarmos espaços que nos permitam levantar essas questões e falar sobre os símbolos e seus significados. Problematizar as representações e a ausência de representatividade são uma forma de desconstruir as imagens e as ideias construídas a partir delas, para que possamos reconstruir as relações para além delas, resgatar e construir referências que atendam a nossa existência.
Sair da caixa heteronormativa em que fomos colocadas é um exercício diário de autoconhecimento e disposição para abandonar comportamentos que nos colocam a salvo das dificuldades de romper com as estruturas que fazem parte do consciente e do inconsciente coletivo, que coloca as mulheres em lugares pré-determinados, independente da sua orientação sexual.
A necessidade de refletir, elaborar e me organizar internamente sobre esse assunto chegou quando me dei conta que essa era uma questão ligada ao mundo íntimo das relações. As ciladas do quanto vida privada pode mascarar as opressões, porque ao mesmo tempo ela pode nos protege, ela pode ser um instrumento questionador da liberdade de sermos quem somos.
Então, peraí!
Há uma pressão externa de influências que exercem tal força sobre nossos corpos que causam um descompasso entre o que se passa dentro da intimidade e os questionamentos sobre experiência, vivência, aprendizado e prazer.
Ser uma mulher lésbica é muito maior do que simplesmente sair do armário. Significa muitas vezes não performar feminilidade, nem aceitar a maternidade como sinônimo de plenitude, muito menos o casamento, não esse modelo posto, como o sim para ser feliz. Significa sair em busca de si de modo livre e autônomo, sem olhar para trás.
Ser uma mulher lésbica é se reconhecer e reconhecer em outro corpo feminino a possibilidade de construir pontes entre as muitas possibilidades de se relacionar. É ir na contramão do patriarcado, que impõe relações hierárquicas construindo formas lineares de viver e amar. É dizer não à repetição dos padrões, quebrar as correntes da heteronormatividade que aprisionam nossos corpos em narrativas de violência e silenciamento.
Acredito que a gente é o que é, e existe um caminho a ser percorrido para tomar consciência do nosso andar no mundo e, na minha singela opinião, quanto mais consciente estivermos dos nossos passos, mais perene será nosso encontro conosco.
Ser arrastada pelos vendavais da busca pelo pertencimento me trouxe até aqui e exigirá de mim os mesmos recursos de desprendimento e reconstrução que me tornaram a mulher negra que sou hoje.
Ouvi que é preciso falar sobre o óbvio para que ele se torne como o ar que respiramos.