“Ícaro às avessas:
minhas asas
incandescem o Sol
Asas
que por meu corpo esperam:
o que sou
se cumpre num voo.
[…]”
(Mia Couto, in: Águia, 2011)
Se a palavra se fez verbo nem todas as conjugações estão para quem vive fora do
padrão. Viver não foi a palavra para os povos pretos na diáspora. Sobreviver se tornou seu
verbo.
Mergulhar nas memórias amorfas de um tempo sem escrituras sobre os modos de vida
das populações negras em condições de escravização é perceber tragicamente que o não
registro foi por si só uma prova de morte. Não se escreve o que não tem vida.
Testemunhos contrários dessa condição mórbida de viver desaparecido de sua história
são tecnologias ancestrais de desobediência da morte. Recuperar essas técnicas nos oferece
maneiras de recriação tática de vida.
Me empenho em viver apesar dos riscos, do alvo, da ameaça. Luto pela longevidade na
mesma medida em que torno o viver o agora a oferenda do tempo futuro.
Como é desafiador lutar pela vida quando a morte é acessível.
Os caminhos mais fáceis são os que nos levam à perda de si, ao anulamento da
existência, ao desencontro do sentido de viver.
Há uma frondosa habilidade social para que as pessoas negras aceitem o lugar do medo,
do auto ódio, do sofrimento e da desesperança como sendo constitutivos de si. O não gozar os
prazeres afetivos, sociais e simbólicos são propositais para que a gente continue a reconhecer
os lugares da violência como nosso.
Nessa ideologia, tornamo-nos suscetíveis ao pouco, ao escasso, ao raso. Aceitamos
relações afetivas e sexuais que corroem nosso estado de vida. Aniquilamos qualquer
possibilidade de plenitude de si em detrimento da entrega de vida ao outro. Nos perdemos
para caber em realidades que se assemelham à embarcação da dor.
Afinal, como posso saber o que é felicidade se ninguém nunca me ensinou que isso me
pertence? A familiaridade é muito mais as ameaças, o vai dar errado, a insegurança.
Parte das nossas referências não desfrutaram do bem viver. Ora, como posso, então,
saber viver se a vida não nos é um direito?
Há em cada esquina um cruzamento de vida e de morte. As setas sociais dizem que o
caminho de morrer tem pele negra.
Desviar desse lado só é possível quando você toma a sua vida como munição diária
para desobedecer à morte. É insurgente reinventar a vida!