Era 29 de outubro de 2025, 8h30 da manhã, e a televisão mostra o repórter do principal jornal matutino no hospital onde estão os 4 policiais mortos da “Operação Contenção” no Complexo da Penha, Rio de Janeiro. Até ali, eram 64 pessoas mortas. O Governador do Estado do Rio, Cláudio Castro (PL), comemora o “sucesso” da Operação, afirmando que lamenta as 4 vítimas. 4. VÍTIMAS.
Versus
Nas redes sociais, o vídeo do comunicador popular e fundador do Instituto Papo Reto, Raul Santiago, mostra os 57 corpos negros, e ele mesmo afirma que ainda existem mais pessoas mortas, além das 64 divulgadas até aquele momento – número que atualmente passa dos 120 mortos. Os vídeos de Raul são reproduzidos pelo portal Notícia Preta, em que o comunicador traz fatos que não são repetidos nos veículos da mídia hegemônica: execuções sumárias, decapitações, tiros pelas costas.
Semiótica
É preciso inscrever e registrar, como repetiu a jornalista do Intercept, Cecília Oliveira, que uma operação em que não se prende o principal suspeito e não se recupera território não é uma operação de sucesso. Aliás, isso sequer é uma operação. E é nesse local que nos posicionamos neste Editorial.
Acompanhamos atentamente as imagens e textos durante esses três dias, e está posto, em alto e bom som: a chacina que o Brasil e o mundo presenciaram faz parte de uma engrenagem complexa sobre o modus operandi da política naquele Estado, gerido por partido de extrema-direita, com valores deturpados sobre direitos humanos e com a premissa de aniquilação e extermínio. Aliás, cabe dizer que o nosso país é signatário de diferentes Acordos, Tratados e Convenções, como a Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Resolução n.º 39/46 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1991).
Ou seja, os indivíduos são protegidos pelos seus direitos de presunção de inocência, de um julgamento justo e de ampla defesa, e, mesmo que seja óbvio, é preciso enfatizar que no Brasil não existe, em nenhum Estado, nenhuma lei municipal ou nacional que normalize e permita execução enquanto pena de morte. E, mesmo que o objetivo de qualquer incursão policial nas favelas e periferias brasileiras seja o desmantelamento de facções criminosas, NÃO É USANDO A MORTE COMO INSTRUMENTO que se COMBATE O CRIME.
A morte. Ela tem sido a companheira ingrata da nossa população há séculos, anos. E, como nos oferecem Achille Mbembe e Carla Akotirene em suas reflexões sobre “Fragante Fojado”, o expediente do Estado é a política de morte, nas suas diferentes faces, inclusive no impedimento da rotina, na proibição da identificação dos corpos, como aconteceu com o pai de Yago Ravel (19 anos), que denuncia ter assinado o atestado de óbito de seu filho tendo sido impedido de reconhecê-lo; morte inscrita quando da negligência e da barbárie de largar os corpos para os moradores carregarem da mata até a comunidade.
Fazer e deixar morrer é a política do estado de exceção apresentada no Fantástico (assistam e vejam com seus próprios olhos), que insiste em corroborar com a narrativa de que são todos bandidos, de que mereceram e de que é necessário invadir casa de gente honesta e prendê-la – como foi o caso da Mãe Gabriela, que recusou à polícia abrigar-se na sua casa e foi presa por desacato, para que o panfleto de propaganda eleitoral seja besuntado de sangue negro.
As histórias não contadas jamais aparecerão no jornal antes da novela. Elas não têm valor para o editor-chefe, que também acredita que nós merecemos morrer. Que nossas mães merecem definhar de depressão e tristeza. Já eles parecem dormir em paz, enquanto fazem reuniões e apertam as mãos de mais e mais milicianos, que lhes parabenizam em nome de algum deus-putrefato.
Escárnio. Barbárie. Genocídio.
Após a chacina, a morte continua, já que a investigação sobre as mortes não está acontecendo com a presença de um controle externo para perícia e apuração: foi o que denunciaram os parlamentares cariocas e os comunicadores populares. Apenas o Ministério Público foi “autorizado”, por decisão judicial, a acompanhar a perícia, que, pasmem, SERÁ FEITA PELO PRÓPRIO MINISTÉRIO PÚBLICO que propôs uma ação para que as necropsias e perícias fossem feitas de maneira independente.
São tantas as camadas de violação de direitos humanos, são tantas as negligências na perpetuação do deixar morrer, que não há palavras para descrever tamanha indignação e dor. Só imagens e gestos são capazes de dizer o indizível. O jornalista da BBC NEWS, Bruno Itan, as traduziu em suas lentes. GATILHO.
São Mães, Esposas, quase todas negras, todas pobres. Homens armados até os dentes, paredes com tiros, tanques de guerra. E não, por favor, não comparemos com Gaza – a única coisa igual é a desproporcionalidade da narrativa de combate ao crime e ao terrorismo e o tratamento desproporcional das humanidades, onde as peles de tez clara merecem velórios e imagens dignas, já os de pele escura, escárnio e crueldade – NOS DOIS CASOS. A morte dentro da morte!
ACONTECE LÁ COMO CÁ
A realidade que ganhou destaque no noticiário mundial não é privilégio do Rio. Ceará, Bahia, Amazonas, Pernambuco e tantos outros estados têm cotidianamente acompanhado casos e mais casos de “bala achada”, operações policiais, crianças mortas e mães protestando nas ruas e favelas. O Atlas da Violência de 2024 demonstra as 5 cidades mais violentas, e todas elas estão na Região Nordeste: Jequié, Santo Antônio de Jesus, Simões Filho, Camaçari e Cabo de Santo Agostinho.
O que o Nordeste tem em comum com o Rio de Janeiro não são apenas os números alarmantes, mas a metodologia do terror empregada no combate à criminalidade. Sejam nas periferias cariocas, marcadas por essa brutal chacina, ou nas periferias e zonas rurais nordestinas, a lógica de atuação estatal, muitas vezes, segue um padrão desolador: a barbárie como tática de segurança. A tônica é a entrada violenta em territórios periféricos, transformando becos e vielas em zonas de guerra. Infelizmente, o método de operação que se consolidou nessas incursões é o de atirar primeiro, sob a premissa do enfrentamento, e só depois, ou nunca, identificar as vítimas e a real ameaça. Isso resulta em um número significativo de mortes, os “efeitos colaterais” de uma guerra travada sem inteligência e sem respeito à vida. A repetição contínua dessas ações, com a constante violação de direitos humanos e o uso desproporcional da força, envia uma mensagem cruel de que a vida de quem reside nessas comunidades, majoritariamente negra e pobre, parece ter um valor infinitamente menor para o Estado, transformando o luto e a destruição de futuros na paisagem permanente dessas regiões. Seja no Rio de Janeiro, em Pernambuco ou na Bahia, a raiz do problema é um modelo falho de segurança pública que terceiriza a violência para as comunidades, combatendo o crime com mais crime, e que precisa ser urgentemente debatido para que a barbárie não seja a única resposta de um Estado que se propõe a ser democrático.
No Brasil, os homens e meninos negros, jovens e periféricos representam a maior parte das vítimas de homicídio. O risco de morte violenta para a população preta e parda é dramaticamente maior do que para a população não negra. Essa estatística, que beira o “juvenicídio”, expõe a falha do Estado que, por um lado, nega a esses jovens o acesso a direitos básicos, como educação de qualidade e oportunidades econômicas, e os empurra à vulnerabilidade e, por vezes, à órbita do crime. Por outro lado, o mesmo Estado age com extrema letalidade ao aplicar a política do confronto desmedido nessas comunidades, tratando a juventude negra como inimiga pública e, assim, consolidando a morte como a via mais provável para quem já nasceu sob o signo da desigualdade. A única forma de romper este ciclo é através da transformação radical da segurança pública e de investimentos maciços em justiça social e na vida desses meninos e homens.
EXAUSTAS E SÓS: A POPULAÇÃO NEGRA É UMA MÃE
O Rio que corre tem caldas longas e rubras. O asfalto da comunidade do Complexo da Penha e do Complexo do Alemão está manchado e impregnado de sangue e dor. Nenhum Deus, mito ou verdade olhará incólume ao que assistimos todos, ateus e crentes, ao maior massacre desde 1990 – Carandiru. Nós somos uma Mãe, gritando pela dor da perda, pelo vazio no peito. Com medo de ser o próximo, de sua filha ser a próxima. Cansadas e desprotegidas, nós exigimos que esse extermínio acabe. Na Guerra às Drogas só a morte vence, só a perda cresce, só o trauma aumenta.
Nadando no Rio de Revolta e Dor, nós exigimos Justiça, políticas de vida e reparação, investigações idôneas, cuidado e paz. E, como Mães Negras, Mulheres Viúvas, Irmãs Solo, marcharemos daqui a 25 dias para arrancar respostas concretas, medidas rápidas e posicionamentos menos hipócritas.
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