Nas frestas de um sistema projetado para nos silenciar, nós, mulheres negras, aprendemos a fazer da gambiarra a nossa mais fina arte e da tecnologia, um tambor que reverbera através do tempo e do espaço. Esta escrita não é um lamento, e sim uma celebração. É um mapa afetivo de como, mesmo diante de um abismo digital e social, transformamos cada pixel em um ponto de luz, cada linha de código em um verso de liberdade.
A tecnologia, nascida em berços de poder e exclusão, é ressignificada em nossas mãos como um terreiro digital, um quilombo virtual onde o afeto é a senha de acesso e a rebeldia é a linguagem de programação. É um manifesto tecido com as memórias de nossas rodas de conversa, com as vozes de nossas mães, educadoras e comunicadoras que, em sua caminhada, semeiam o Bem Viver como um projeto político inadiável.
Somos as herdeiras de Dandara, de Aqualtune, de Carolina Maria de Jesus. Somos filhas de mulheres que transformaram o impossível em cotidiano, que fizeram do “não” uma pergunta e da resistência uma arte. Agora, com dispositivos móveis nas mãos e wi-fi nas comunidades, continuamos a tradição ancestral de fazer muito com pouco, criamos pontes onde só havia abismos. Nossa relação com a tecnologia não é neutra nem inocente, é profundamente política, estratégica e afetiva, pois cada aplicativo baixado, cada perfil criado, cada conteúdo compartilhado é uma decisão consciente de ocupar espaços que nunca foram pensados para nós.

A tela fria de um celular, para nós, mães negras, se transforma em algo acolhedor que vira colo. Os grupos de mensagens são uma reedição contemporânea das redes de apoio que, historicamente, garantiram nossa sobrevivência e a de nossos filhos. Mas não nos enganemos: essa troca vai muito além de dicas de maternidade. Quando uma mãe compartilha a dor da violência obstétrica, ela não está apenas desabafando, está produzindo dados, criando um dossiê coletivo contra um sistema de saúde racista. Algo que antes era uma dor vivida em quatro paredes, com acesso à informação, mais mães conseguem perceber que a atitude vivida não é “natural”, e sim uma violação que atinge quase que majoritariamente mulheres negras de classe baixa.
Quando organizamos uma vaquinha para ajudar uma companheira a sair de um relacionamento abusivo, estamos criando nossas próprias políticas de segurança pública, baseadas no cuidado e na confiança. Esses grupos são também laboratórios de inovação social, e foi assim que nasceram as cooperativas de mães costureiras em São Paulo durante a pandemia, as redes de distribuição de cestas básicas e os coletivos de proteção digital contra a violência doméstica. Deste modo surgiram: Maria D’Ajuda, Justiceiras, entre outros. Nesses espaços, denunciamos a brutalidade policial, organizamos protestos por vagas em creches e nos fortalecemos para exigir das escolas uma educação antirracista. Esse aquilombamento digital desenvolve uma inteligência coletiva capaz de driblar a burocracia estatal e hackear sistemas excludentes.
E essa inteligência coletiva, que hackeia sistemas para garantir a sobrevivência, transborda para outro campo de batalha fundamental: a educação. Os movimentos liderados por mulheres negras representam uma das mais profundas revoluções educacionais do nosso tempo, não por acaso, mas por ocuparem uma posição única na intersecção de raça, gênero e classe, o que lhes confere uma consciência crítica aguçada. Essa liderança tem raízes históricas. Desde o período escravocrata, nós somos as guardiãs do conhecimento, perpetuando uma tradição de educação como ato de resistência. Essa prática se alimenta do conceito africano de maternidade expandida, que vai além dos filhos biológicos e inclui o cuidado com toda a comunidade, uma “maternidade pedagógica” que se preocupa com o futuro coletivo de nossas crianças.

Nas salas de aula, físicas ou virtuais, educadoras hackeiam o código-fonte do epistemicídio. Cansadas de um currículo que nos narra apenas a partir da dor, da vitimização e da pena, elas se tornam contrabandistas de futuros. Com canais no YouTube, perfis no Instagram e podcasts, elas não apenas complementam, mas dinamitam a estrutura de um conhecimento branco, cis e heteronormativo. É uma pedagogia feminista negra em ação, que entende a educação como ferramenta de libertação, trazendo o grito de resistência que por tanto tempo esteve preso em nossas gargantas.
Ao desenvolver metodologias que partem da realidade concreta de seus estudantes, suas vivências em comunidades, favelas Brasil afora, ensinando matemática através da economia dos salões afro ou história a partir das biografias de mulheres negras esquecidas, elas combatem, na prática, o que a nossa Sueli Carneiro definiu como “epistemicídio”: a morte sistemática de saberes. Ao ressuscitar conhecimentos historicamente apagados e legitimar saberes populares, elas tornam o aprendizado significativo, permitindo que as crianças se vejam refletidas no conteúdo e dentro da própria realidade, sem impedir que elas podem e devem buscar outras também.
O uso de tecnologias como realidade aumentada para visitar o Benin do século XVI ou podcasts onde adolescentes entrevistam avós sobre medicina tradicional africana são ferramentas de descolonização curricular. Quando nossas crianças aprendem sobre reinos africanos prósperos, elas desenvolvem orgulho de suas origens e fortalecem a autoestima. Essa revolução pedagógica transforma a própria estrutura da sala de aula. Círculos de cultura digital, onde meninas periféricas aprendem a programar contando suas próprias histórias, e hackathons feministas, como o ocorrido na USP São Carlos este ano, contrapõem-se ao modelo colonial de educação. Nesses ambientes colaborativos, o conhecimento é construído coletivamente, e as experiências pessoais são fontes legítimas de saber, uma prática que ecoa as ideias de bell hooks sobre uma pedagogia engajada e libertadora.
Essas educadoras nos ensinam a ler o mundo para além dos livros didáticos. Aplicando, na prática, a pedagogia crítica de Paulo Freire com um recorte racial e de gênero, nos capacitam a identificar as “armadilhas do racismo algorítmico”, um conceito explorado por pesquisadoras como Safiya Umoja e a querida Nina da Hora. Elas nos mostram que os algoritmos não são neutros e carregam os vieses de seus criadores, formando uma geração capaz de identificar, denunciar e subverter essas estruturas de opressão digital. E se a educação fornece as ferramentas críticas, são as comunicadoras que transformam essa consciência em um megafone, disputando a narrativa em tempo real.

As comunicadoras, griôs dos nossos tempos, fizeram das redes sociais seus púlpitos, entenderam que a disputa por narrativa é a mãe de todas as batalhas. Cansadas de sermos objeto de estudo ou estatística, tomaram o controle da câmera. Com um celular na mão e uma coragem ancestral no peito, desmascaram a falácia da meritocracia, expõem o racismo recreativo e impulsionam a economia local. Ao monetizar seu conteúdo, constroem autonomia financeira, um pilar fundamental da emancipação.
Essa prática de transformar a própria vida em texto político é a mais pura tradução da “escrevivência”, conceito imortalizado por Conceição Evaristo. Elas se tornam o que Patricia Hill Collins chama de “intelectuais do cotidiano”, cujas experiências vividas se transformam em conhecimento válido e potente. Quando uma influenciadora negra ensina um penteado afro no YouTube, ela não está apenas compartilhando uma técnica; está afirmando uma identidade e contestando padrões eurocêntricos. Elas são nossas jornalistas independentes, furando bloqueios informativos e revelando verdades que a grande mídia ignora.
Essa apropriação tecnológica é a mais pura tradução do Bem Viver, um conceito que se opõe à lógica predatória do capitalismo. Para nós, viver bem não é sobre acúmulo individual, mas sobre o florescimento coletivo. Ao usar a internet para fortalecer laços, educar de forma libertadora e comunicar nossa verdade, estamos plantando esse futuro no presente, a partir de uma perspectiva única que a pensadora Lélia Gonzalez chamaria de “amefricana”.
Essa busca por outros mundos possíveis, como nos convida a pensar o líder indígena Ailton Krenak, se materializa em nossas práticas digitais. Criamos redes de economia solidária no WhatsApp, círculos de cura no Instagram e desenvolvemos “algoritmos afetivos”, formas de interação que priorizam o cuidado, a escuta e a construção conjunta.
É claro que a jornada não é simples, nunca é. Navegamos em um oceano digital infestado por tubarões do discurso de ódio, enfrentamos a precariedade da conexão, a sombra da vigilância e a violência digital — desde o assédio até a exposição íntima — que atinge desproporcionalmente mulheres negras.
Essa consciência dos riscos impulsiona um movimento ainda mais profundo: a necessidade de não apenas ocupar, mas de construir e governar as ferramentas digitais. Por isso, o incentivo para que mais de nós participem ativamente da tecnologia, da programação à segurança de dados, é um passo crucial para a soberania digital.
Compreendendo que somos os alvos mais diretos de ataques coordenados, comunicadoras e ativistas se organizam. Um exemplo potente somos nós mesmas: a criação do Comitê de Tecnologia da Marcha das Mulheres Negras, uma iniciativa que nasceu da compreensão de que nosso ativismo precisa de trincheiras digitais seguras. A luta que leva milhares às ruas em novembro acontece todos os dias na internet. O comitê, portanto, é a organização da nossa linha de frente digital, trabalhando para proteger nossas vozes, educar sobre segurança e garantir que possamos continuar em marcha, seja no asfalto ou na fibra óptica.
Mas a história do povo negro é uma prova de que sabemos transformar veneno em remédio. Para cada ataque racista, respondemos com uma rede de apoio ainda mais forte. Nossa insurgência também passa pela criação de plataformas próprias, pois não nos contentamos em ser usuárias de tecnologias que outros criaram. Cada post, áudio, vídeo compartilhado por uma mulher negra é um ato de esperança radical. É a teimosa insistência em existir, amar, criar, em sonhar. É a reconstrução de nossas histórias e a afirmação de que o futuro não é um lugar aonde se chega, mas um lugar que se constrói coletivamente, em cada clique. Estamos tecendo um novo mundo, um onde a tecnologia serve à vida. E este mundo, tecido em fios de afeto e pixels, já começou.
Este mundo que construímos não é utopia distante, ele pulsa no presente. É um mundo onde nossas filhas podem crescer sabendo que podem ser programadoras, cientistas de dados e empreendedoras digitais, e o que bem quiserem. Um mundo onde o Ubuntu, “eu sou porque nós somos”, se traduz em protocolo de internet, onde a ancestralidade encontra a inovação. Um mundo tecido por nós, para nós, mas que se abre generosamente para todos que sonham com uma sociedade mais justa, humana e afetuosa, que estamos construindo, pixel por pixel, conexão por conexão, sonho por sonho. E ele já é real.
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Referências Bibliográficas Essenciais
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento.
Base teórica sobre “intelectuais do cotidiano” e o ponto de vista da mulher negra, essencial para compreender como experiências viram conhecimento político.
EVARISTO, Conceição. Becos da Memória.
A noção de “escrevivência” inspira a leitura da produção digital de mulheres negras como escrita de vida e resistência.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano.
Fundamental para entender a “amefricanidade” e a perspectiva político-cultural única das mulheres negras no Brasil e na diáspora.
DA HORA, Nina. MyNews Explica – Algoritmos.
Discussão acessível sobre racismo algorítmico e incentivo à participação negra na criação tecnológica.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida.
Obra central para compreender o conceito de epistemicídio e a deslegitimação histórica de saberes negros.
hooks, bell. O feminismo é para todo mundo.
Referência sobre pedagogias engajadas e libertadoras, essenciais para ler a atuação de educadoras negras no ambiente digital.
Tecnologia, Algoritmos e Ciberativismo
NOBLE, Safiya Umoja. Algoritmos da Opressão.
Mostra como mecanismos de busca reforçam racismo e sexismo.
SILVA, Tarcízio. Racismo Algorítmico.
Aprofunda o debate no contexto brasileiro, analisando desigualdades produzidas pelas plataformas digitais.
BENJAMIN, Ruha. Race After Technology.
Explora como tecnologias reproduzem discriminações sob aparência de neutralidade.
Ativismo Digital no Brasil
LIMA, Dulcilei; CARVALHO, Michele (Orgs.). Griots e Tecnologias Digitais.
Coletânea sobre ativismos, afeto e usos políticos das tecnologias por mulheres negras.
BARROS, Zelinda. Feminismo negro na Internet: cyberfeminismo ou ativismo digital?
Estudo pioneiro sobre o ativismo digital de mulheres negras no Brasil.
Fontes Jornalísticas e Relatórios
Coletivo Maria D’Ajuda
Reportagem: Uma linha de ajuda em segurança digital feita por feministas do Brasil.
Site acessado em 24/08/2025.
Cooperativa de Mulheres na Pandemia
Reportagem do UOL sobre imigrantes que criaram cooperativa de costura.
Acessado em 24/08/2025.
Hackathon USP São Carlos (2025)
Publicação do CodeLaces sobre hackathon WIT.
Acessado em 24/08/2025.
Pesquisa Nacional de Violência contra Mulheres Negras (2024)
Relatório DataSenado.
Acessado em 24/08/2025.
Coletivo Justiceiras
Plataforma de apoio a mulheres em situação de violência.
Acessado em 24/08/2025.
Organizações e Publicações Relevantes
PretaLab
Relatórios sobre inclusão de mulheres negras e indígenas na tecnologia.
Instituto Marielle Franco
Publicações sobre violência política de gênero e raça, incluindo no ambiente digital.
Imagens: Freepik
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Autoria: Greice da Hora
Desgner: Helida Costa
Edição: Wellington Silva
Desenvolvimento: Will Lopes
Este conteúdo integra o projeto Narrativas em Marcha, Comunicando o Futuro, realizado por meio do Edital Nilma Bentes, do Fundo FASE, e com o apoio do Grupo Mãe Andresa. Saiba mais em blogueirasnegras.org/narrativas-em-marcha-comunicando-o-futuro.
