Este conteúdo tem por objetivo apresentar ao público a trajetória de três mulheres inspiradoras. Neste ano, especificamente no mês de setembro, o Instituto Negra do Ceará (INEGRA) completa 22 anos de existência. O texto destaca que o Ceará e a população negra local precisam lidar constantemente com o mito de que não existem pessoas negras no estado. Assim, torna-se essencial o resgate e a valorização do ativismo dessas mulheres que resistem em um cenário que insiste em invisibilizar essa luta.
Ao longo dessas duas décadas, diversas mulheres fundaram, participaram e continuam a construir o INEGRA no presente; a todas elas, o artigo dedica reverência e gratidão por abrirem caminhos e movimentarem a luta das mulheres negras no estado. Foram selecionadas três entrevistadas para representar a força, a ancestralidade e a continuidade de uma organização potente, que contribui significativamente para a busca de outra sociedade e do “bem viver”, uma das demandas centrais da II Marcha Global de Mulheres Negras.
Neste ano de realização da segunda marcha global, conhecer aquelas que fizeram parte dessa história e as que seguem pelos caminhos abertos no passado é fundamental para inspirar e manter o movimento vivo.
Conheça Margarida Marques

Meu nome é Margarida Maria Marques, tenho 63 anos, nasci na cidade de Sobral e vim no final da década de 60 para Fortaleza. Comecei minha atuação política no movimento estudantil na década de 80 e, posteriormente, no movimento sindical. Paralelamente, eu atuava numa organização chamada Juventude Operária Católica. No início da minha militância, por bastante tempo, a dimensão de classe era a fundamental, a que orientava a minha atuação e respondia a todas as questões, pois no movimento sindical da época ainda era muito difícil enfrentar as questões de gênero.
Ainda não era uma questão que se sobressaía nas pautas de classe. O tema ficava muitas vezes sufocado; a participação das mulheres e o enfrentamento de temas aos quais hoje conseguimos dar maior visibilidade, como questões de gênero, violência contra a mulher e abusos, eram bem difíceis. Por muito tempo atuei nessa perspectiva, mas essa mesma vivência foi me levando a uma consciência maior do meu lugar de mulher, e fui assumindo mais essa dimensão de gênero. Digo que primeiro me reconheci como classe, depois como mulher. E, muito tempo depois, me reconheci como mulher negra. Comecei, então, a ver de forma mais profunda essas três dimensões relacionadas: classe, gênero e raça.
Nessa caminhada, eu não atuava organizada num movimento de mulheres negras, mas cada vez mais assumia essa dimensão na minha ação política. A minha experiência organizada foi no INEGRA, onde pude desenvolver a ação coletiva numa perspectiva de irmandade. E também trabalhar a dimensão individual: você se reconhece, mas não se dissolve no coletivo; ao contrário, o coletivo te fortalece e você fortalece o coletivo.
Yasmin: COMO FOI PARA O INEGRA, NAQUELE ANO DE 2015, CONSTRUIR A PRIMEIRA MARCHA?
Margarida: O INEGRA trabalhou na construção da marcha em 2015 a partir da criação de pequenos grupos de reflexão e da aglutinação das mulheres mais diversas. Eram processos em que se refletia sobre a experiência pessoal e se analisava também a realidade coletiva das mulheres negras. Isso se deu em paralelo a um avanço, não tão silencioso, da extrema-direita; tanto que, na marcha em Brasília, sabemos que eles estavam acampados contra o governo da presidenta Dilma. Os processos de encontros e formação, tanto em Fortaleza quanto em nível estadual, na perspectiva de fomentar a importância da marcha e as razões pelas quais as mulheres negras marcham, foram a forma como o INEGRA trabalhou naquela construção.
Yasmin: QUE LEGADOS A SENHORA CONSIDERA QUE A MARCHA DE 2015 DEIXOU?
Margarida: Em relação ao legado, percebo que a marcha deu uma dimensão nacional diversa à caminhada e às trajetórias individuais e coletivas das várias experiências de organização das mulheres negras. Essa visibilidade nacional e a possibilidade de intercâmbio intergeracional foram fundamentais. É uma riqueza muito grande: as mais velhas, as mais novas e as que chegaram durante o processo vão trocando e construindo uma rede de saberes, de luta e de enfrentamento ao racismo.
Houve também a dimensão de fortalecer a organização política das mulheres negras como vozes políticas, atrizes políticas e sujeitas de sua história. Isso foi um fortalecimento muito grande do processo de 2015 que seguiu como legado. Trazer novas mulheres para essa caminhada é outra consequência. Foi um processo de visibilidade, organização e diversidade, com mulheres presentes de diferentes lugares: urbano, rural, academia, periferia e setor cultural. Toda essa riqueza se fortalece como um caldo que alimenta essa caminhada, atuando na luta contra o racismo, pelo bem viver e na construção de um novo projeto de sociedade.
Yasmin: QUE DIFERENÇAS VOCÊ PERCEBE NA CONSTRUÇÃO DA MARCHA ATUAL?
Margarida: As diferenças que percebo no processo atual são, sobretudo, na dimensão da comunicação, que considero muito mais organizada. O uso das redes sociais está mais eficiente; é uma característica importante. Os momentos de formação, usando as redes, estão podendo alcançar mais mulheres.
Outro aspecto é que a marcha está muito mais integrada ao contexto político. Temos um contexto bastante desafiador, e percebo que a marcha está abordando todas as questões e desafios da nossa conjuntura atual. Isso se reflete nos temas tratados em cada formação, o que é muito importante como contribuição para a construção desse outro projeto societário.
Yasmin: QUAL A MELHOR FORMA DE PRESERVAR A HISTÓRIA E A MEMÓRIA DA TRAJETÓRIA DO INEGRA NO CEARÁ?
Margarida: A melhor forma de preservar a memória e a trajetória das mulheres negras do Ceará é o registro. O registro é um elemento fundamental não só para guardar a memória, mas para constituir identidades. Nesse sentido, é muito importante ouvir as mulheres, registrar suas falas e visibilizar suas trajetórias. É um desafio, porque temos uma tradição maior de ativismo e menor de registro, o que muitas vezes nos faz perder a possibilidade de preservar as histórias de todas, dos coletivos e de cada uma individualmente.
Yasmin: DEIXE UM RECADO PARA MULHERES NEGRAS QUE QUEREM SE SOMAR OU QUE AINDA NÃO OUVIRAM FALAR NA MARCHA
Margarida: A importância e a beleza de participar da marcha residem, principalmente, no processo de encontros e reencontros, que são fortalecedores. Imaginem um movimento que traz diversidade, fé, cultura, várias lutas e o sonho de superação da realidade atual das mulheres negras. Vivenciar isso de forma coletiva tem uma força e uma beleza muito grandes. É importante participar por tudo o que a marcha representa politicamente no enfrentamento ao racismo, mas também é bonito ver todas essas mulheres negras caminhando, vindas de diversos lugares, do campo, da arte, das lutas. É necessário que todas possam encontrar seu lugar nessa trajetória.
Atualmente, o INEGRA é coordenado por Sarah Menezes, outra grande referência que traz um olhar atento e engajado para o movimento de mulheres negras. Assim ela se apresenta:

Eu sou Sarah Menezes, sou uma mulher negra, nasci no interior do Ceará. Atualmente tenho 36 anos, recém-completados, e integro o Instituto Negra do Ceará, além de algumas organizações como a Rede de Mulheres Negras do Nordeste e a Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), representando o INEGRA.
Minha maior motivação para entrar no ativismo e me juntar a mulheres negras foi começar a entender e sentir que algumas violências me atravessavam. Em certo momento, conheci o INEGRA, grupo do qual faço parte até hoje. Comecei a entender que aquilo não me afetava apenas de forma individual e que outras mulheres vivenciavam questões semelhantes. Passei a identificar o nome dessas violências, entender por que aconteciam e como poderia me proteger. Entendi que conseguia me proteger individualmente, mas também poderia proteger outras pensando no coletivo, juntando-me com outras mulheres negras. Essa foi a minha maior motivação para iniciar minha militância e meu ativismo.
Yasmin: COMO FOI PARA O INEGRA, NAQUELE ANO DE 2015, CONSTRUIR A PRIMEIRA MARCHA?
Sarah: O INEGRA participou da construção da marcha desde o seu início. Quando começou a se pensar, dentro da AMNB, sobre a necessidade de juntar mulheres em Brasília para demonstração de força e reivindicação política, o INEGRA estava presente como integrante da Articulação. Demos o pontapé inicial junto com outras companheiras para que a marcha fosse difundida. A construção em 2015 seguiu a forma como lidamos com nossas construções cotidianas: coletivamente, chamando as pessoas para contribuírem tanto com sua intelectualidade e saberes quanto com a movimentação para articulações políticas. Naquele momento, foi fundamental porque nos aproximamos de outras mulheres, conseguimos mobilizar um grupo e nos formar juntas.
Yasmin: QUE LEGADOS A SENHORA CONSIDERA QUE A MARCHA DE 2015 DEIXOU?
Sarah: O legado de 2015 foi o fortalecimento e o entendimento sobre como fazer articulações, além do crescimento em torno dos caminhos para reivindicações no âmbito das políticas públicas. Trouxe para o INEGRA um amadurecimento nas articulações, tanto com instâncias governamentais quanto com outros movimentos. Naquela ocasião, tínhamos movimentos mistos envolvidos, o que também gerou aprendizado: fomos nos colocando como protagonistas enquanto mulheres negras, mas entendendo quem são nossos aliados. Isso foi e ainda é importante para nos fortalecermos, pois, além do racismo, outras pautas nos unificam a outros movimentos, como a violência contra as mulheres e a luta anticapitalista.
Yasmin: QUE DIFERENÇAS VOCÊ PERCEBE NA CONSTRUÇÃO DA MARCHA ATUAL?
Sarah: A construção atual vem cercada de desafios. Viemos de um contexto em que a pandemia transformou nossas relações, inclusive enquanto seres coletivos. Um dos desafios é romper com a virtualidade e promover o encontro presencial, conversar olhando no olho. Esse era um grande diferencial de 2015, que conseguíamos fazer de forma mais ampla. Precisamos de amadurecimento para compreender o alcance das plataformas virtuais sem deixar que isso ultrapasse o valor da presença.
Outra diferença envolve a dinâmica da vida das mulheres negras. Com o avanço do capitalismo e a sobrecarga de trabalho, as mulheres estão cada vez mais sem tempo. O tempo tem sido uma ferramenta preciosa; isso entra na nossa luta contra a jornada 6×1, para termos tempo de viver e de lutar pelas nossas vidas. Esses são grandes desafios que tornam este processo diferente do de 2015.
A última mulher entrevistada foi Rayane Vieira Matos, a que entrou mais tarde no INEGRA, mas que vem sendo uma grande referência e uma força pulsante na resistência e no fortalecimento da organização. Assim Rayane se apresenta:

Eu sou Rayane Vieira Matos, integrante do Instituto Negra do Ceará. O ativismo entrou na minha vida junto com alguns processos, como a minha autoidentificação como mulher negra e a descoberta como trancista. Foi um atravessamento que veio de uma vontade muito interna; hoje sinto que foi um chamado da ancestralidade. Foi a partir do encontro com mulheres negras, que fortaleceu minha identidade, que passei a estar no movimento.
Yasmin: COMO FOI PARA O INEGRA, NAQUELE ANO DE 2015, CONSTRUIR A PRIMEIRA MARCHA?
Rayane: Eu não estive na marcha de 2015, mas, pelas memórias contadas e registradas, naquele ano o INEGRA dividia a sede com o Fórum Cearense de Mulheres na Casa Feminista. Foi nessa casa que ocorreu a grande mobilização em Fortaleza e região metropolitana, com formações políticas, rodas de conversa e atrações culturais, visando formar politicamente e garantir a participação das mulheres em Brasília.
Yasmin: QUE DIFERENÇAS VOCÊ PERCEBE NA CONSTRUÇÃO DA MARCHA ATUAL?
Rayane: A principal diferença é o contexto político, que tem sido cada vez mais desafiador com o avanço e a intensificação da extrema-direita e do fascismo no Brasil e no mundo. Isso atinge diretamente as mulheres negras organizadas. Encontramos barreiras ao pedir apoio a governos de direita ou não progressistas, embora tenhamos nossas alianças. Há também a questão da jornada de trabalho, que não permite que as mulheres tenham tempo para si, estando sempre sobrecarregadas. Além disso, existe o contexto de insegurança gerado por discursos de ódio. Queremos estar em um milhão de mulheres negras em Brasília, e isso vai mexer com o sistema nervoso de muita gente. Precisamos estar preparadas, asseguradas, contando umas com as outras e com a proteção dos nossos orixás, de Deus e da natureza.
Yasmin: QUAL A MELHOR FORMA DE PRESERVAR A HISTÓRIA E A MEMÓRIA DA TRAJETÓRIA DO INEGRA NO CEARÁ?
Rayane: Acredito que, nesses 22 anos, o INEGRA ficou marcado na história de muitas organizações e pessoas. Atualmente, estamos fazendo uma construção dessa memória, juntando depoimentos de parceiros e resgatando projetos, ações e denúncias. Estamos construindo esse registro a partir de nós mesmas, com nossa linguagem, para preservar o pioneirismo do INEGRA como o primeiro movimento de mulheres negras organizadas no Ceará. Depois surgiram outros, e continuam a brotar, porque acreditamos que o mundo só vai mudar a partir do plano político de bem viver das mulheres negras.
Yasmin: DEIXE UM RECADO PARA MULHERES NEGRAS QUE QUEREM SE SOMAR OU QUE AINDA NÃO OUVIRAM FALAR NA MARCHA
Rayane: Um recadinho do coração para todas as mulheres negras do Ceará: vamos marchar juntas por reparação e bem viver! No dia 25 de novembro. O bonde já vai sair daqui do Ceará. Então, vamos juntas para marchar em Brasília (Vaia Cearense!)
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Autoria: Yasmin Lindenmeyer
Desgner: Helida Costa
Edição: Wellington Silva
Desenvolvimento: Will Lopes
Este conteúdo integra o projeto Narrativas em Marcha, Comunicando o Futuro, realizado por meio do Edital Nilma Bentes, do Fundo FASE, e com o apoio do Grupo Mãe Andresa. Saiba mais em blogueirasnegras.org/narrativas-em-marcha-comunicando-o-futuro.
