Por Mia McKenzie
Na sexta-feira passada a Beyoncé lançou um novo álbum, auto-intitulado, super-secreto e meu facebook imediatamente enlouqueceu, havia tantas pessoas falando sobre isso que eu tinha que ver o que estava acontecendo. Eu assisti todos os vídeos. E embora, eu não possa dizer que a maioria das músicas estejam emocionantes, muitos de seus vídeos estavam realmente incríveis. Satisfeita e entretida com tudo ao redor, segui em frente.
Foi então que a blogosfera feminista negra começou a se mostrar firme em prol da Bey, defendendo-a de todas as feministas brancas que a insultaram ao longo de todos esses anos. Todas, desde Mikki Kendall até o Crunk Feminist Collective declaravam que Bey era uma feminista. Com certeza ela é. Tipo, sério, por que ainda questionam isso?
Em seu artigo para o Guardian, intitulado “O novo álbum da Beyoncé deve silenciar críticas feministas”, Mikki Kendall escreve:
“Este álbum deixa evidente que seu feminismo não é acadêmico; não se trata do lançamento de uma moda ou de boas maneiras. É simplesmente parte dela, tanto quanto qualquer outra coisa em sua vida. Ela se posiciona em prol das mulheres sem estar contra os homens e ela quer que o mundo saiba que você pode ser feminista em um nível pessoal, sem sacrificar as emoções, amizades ou diversão”.
Ok, eu respeito Mikki Kendall, ela é super inteligente e normalmente costuma acertar em cheio. Mas, de fato, eu não sei por que ela está falando somente sobre o feminismo “pessoal” da Beyoncé. Ora, ela segue dizendo muito sobre a vida pessoal da estrela pop e o que há de feminista nela, sem nunca dizer muito sobre sua personalidade pública e como ela tem externalizado isso. O que me parece estranho! Mas, tudo bem, é óbvio que existem temas feministas em suas músicas e clipes como, por exemplo, “Pretty Hurts”. Em “*** Flawless” também existe alguns temas feministas e não há quase nada acontecendo aqui que seja anti-feminista (quase, nós vamos voltar a isso daqui a pouco).
Bem, por enquanto eu não tenho certeza se uma ou duas músicas feministas em um álbum com 14 faixas é realmente um triunfo feminista que deve silenciar todos os críticos (mas também, a pessimista que existe dentro de mim atua assim: isto é entretenimento corporativo, acrescenta-se o “feminismo” para as pessoas comentarem e, assim, vender mais discos).
Eu realmente vejo Beyoncé como uma feminista. Não apenas por causa deste álbum, mas por causa de coisas feministas que ela disse no passado que revelam sua postura. Ela não é uma feminista perfeita (nenhuma de nós somos), ela ainda tem um caminho a percorrer (a maioria de nós temos), mas ela é certamente uma feminista. No entanto, existem algumas preocupações legítimas. Então, exponho aqui o meu maior problema com o álbum:
Em sua nova canção “Drunk in Love” [Bêbada de amor], com participação de seu marido Jay-Z, o mesmo rima as seguintes frases: “Prenda a acusação, eu posso lançar murros como Mike” e “Baby, você sabe que eu não brinco… Eu sou Ike Turner… agora coma o bolo, Anna Mãe.”
No caso de você não está atualizada(o) sobre a figura do “espancador de esposa” presente na segunda frase. Trata-se do incidente infame e abusivo que verbalmente, fisicamente, psicologicamente e sexualmente aconteceu no casamento de Ike e Tina Turner, onde Ike forçou Tina (Anna Mãe) a comer um bolo, quebrando-o em seu rosto.
Um, o que?
Este trecho está em um dos últimos vídeos que eu assisti, logo depois de alguns legítimos e brilhantes vídeos em prol das mulheres. Senti como se levasse um tapa na cara, foi muito agressivo. No meio deste dito triunfo feminista, Jay-Z aparece glorificando a violência contra as mulheres e… que “legal” juntamente com Bey, a nova feminista negra super-heroína do Universo?
Acho que sim, porque ao longo do blog Crunk Feminist Collective, Crunktastic escreve assim: “Estou aqui por qualquer uma que está a procura da palavra-f [feminista] desde que muitas pessoas abandonaram-a (exceto as/os Republicanas/os e ninguém aqui está em prol delas/es.) O que procuramos quando abraçamos Queen Latifah e Erykah Badu embora elas evidentemente rejeitem o termo, mas que o sombreamento e policiamento em torno Bey quer abraçar? Bem, se Bey está abraçando este termo, isto é louvável”.
Sem ofensas as companheiras do CFC, mas será que estamos realmente afirmando o feminismo permitindo que seu marido cuspa um inacreditável discurso nojento contra as mulheres lado a lado com você, em seu novo álbum? Isto é exatamente tão legitimo quanto se afirmar feminista e demonstrar ideias feministas consistentes? Se sim, eu tenho que respeitosamente discordar. Eu raramente abraço o termo feminista, constantemente sinto o termo muito desconectado da minha experiência particular como mulher negra. Mas, ao passo que, eu muitas vezes rejeito o termo em si, meus ideais, minha política, e o meu trabalho, lançam fora do mundo o espalhar desses valores. A ideia de que abraçar o termo é por si só é louvável, é perigosa.
Outro trecho que também tem sido muito explorado é o fato da Beyoncé ter feito uma performance com Chimamanda Ngozi Adichie na música “*** Flawless”. Na qual ela diz cadelas “curvem-se” para ela, quando na gravação Adichie fala sobre o feminismo.
Adichie usa a citação de um dicionário para definir feminista como “uma pessoa que acredita na igualdade social, econômica e política dos sexos.” Este parece ser o caminho da Beyoncé ao se declarar feminista. Eu gosto desta citação, eu acho que ela é importante, e eu estou realmente feliz por ela existir. Quer dizer: eu acho que esta definição, ainda estabelece um padrão um pouco abaixo da meta. Eu diria que, com todo o respeito a quem escreveu o dicionário, nesta definição falta um sentido muito importante. Ora, eu acrescentaria: … é quem é capaz de olhar para o mundo com um olhar crítico, de modo a ser capaz de identificar os momentos e lugares onde essa igualdade não está presente.
Acreditar na igualdade dos sexos não fazendo qualquer análise consistente capaz de identificar quando e onde a desigualdade está realmente acontecendo (por exemplo: no trecho em que Ike Turner humilha e abusa de sua esposa), isto não é ser feminista. Porque eu não acredito que o feminismo é apenas sobre o que você acha que a sociedade deve ser no plano ideal, mas sim como você percebe a sociedade e como ela é. E como você luta contra as injustiças reais.
Na verdade, a Sra. Adichie tem sua própria definição de feminismo que para ela é “Um homem ou uma mulher que diz: ‘Sim, existe um problema com o gênero como ele se manifesta hoje e devemos corrigi-lo; devemos fazer melhor”’. É ótimo que a Bey encoraje as mulheres a compreender que receber menos é uma porcaria, mas também é muito importante não deixar seu marido rapper cantar abusos contra as mulheres em seu álbum “feminista”.
Kendall escreve: “O feminismo nunca foi do tamanho que sirva tudo, mas muitas das críticas que gira em torno de artistas como Beyoncé … presume que exista um guia unilateral sobre como ser o “tipo ‘certo’ de feminista.”
Claro que não há uma única maneira de ser feminista. Não há duas maneiras ou dez maneiras. Mas, o fato de que existem muitas maneiras de ser feminista não deve sugerir que todos os caminhos são caminhos feministas. O feminismo pode ser muitas coisas, mas não é todas as coisas. Você não pode fazer e dizer coisas que são contra as mulheres (ou permitir que seu marido ao seu lado faça em seu álbum) e reivindicar o feminismo ao mesmo tempo. O que eu quero dizer é, se podemos concordar em apenas uma coisa sobre o feminismo, deve ser que você não pode glorificar os abusos conjugais de Ike Turner e ser feminista.
Estou aqui pelas feministas negras, defendendo Beyoncé contra as críticas que ela não merece. Mas, também espero que possamos evocar as falhas presentes em suas expressões feministas. Eu entendo que, em algum momento, a Beyoncé feminista/não feminista tornou a discussão uma linha na areia, uma linha feita no passado na qual nós não estamos mais dispostas a deixar as feministas brancas ultrapassarem. Feministas negras e mulheres negras estão sendo alvo de constante desrespeito causado pelas feministas brancas, não somente no caso Beyoncé, mas nos inúmeros casos de mulheres e meninas negras ao longo desses anos. Nós estamos extremamente cansadas de tudo isso!
Defendemos a Beyoncé porque ela é um símbolo das formas, as quais as feministas brancas degradam, desumanizam e demonizam as mulheres negras à todo tempo. Ela é um exemplo evidente da maneira com que as feministas brancas ignoram e excluem as mulheres negras de “seus” movimentos, a maneira como pintam nossas experiências como algo secundário e inferior, a forma como rebaixam a nossa sexualidade e nosso direito de possuí-la. Nós a defendemos, contra as feministas brancas, pois sabemos que nós somos as únicas que podem e as únicas que vão fazer isto. Nós a defendemos porque sendo feminista ou não, ela é nossa irmã, nossa filha, nossa namorada. Nós a defendemos, porque ver uma mulher negra sendo atacada por pessoas brancas é, em si, parte do nosso feminismo.
Compreendemos perfeitamente que muito do que as feministas brancas disseram sobre a Beyoncé está em consonância com a mesma linguagem e atitudes misóginas que feministas brancas disparam em direção das mulheres negras desde… Bem, desde sempre. Ouvimos palavras em forma códigos e observamos seus narizes empinados. Nossas formas de estar no mundo nunca foram boas o suficiente para as feministas brancas. Defendemos Beyoncé, porque ela é uma de nós, ela é uma de nós, e nós não vamos virar as costas para ela, enquanto as mulheres brancas fizerem com ela o mesmo que elas fizeram com a gente ao longo da história.
Sim, estou aqui para isso. Estou aqui para defender o direito de Beyoncé de possuir sua sexualidade e não pedir desculpas por isso. Estou aqui para defender seu direito de descobrir quem ela é e no que ela acredita, sem ter que responder a cada feminista branca que pensa que ela não descobriu isso rápido o suficiente. Estou aqui por tudo isso. O que eu não estou aqui é para fingir que Beyoncé é alguma campeã do feminismo negro como um tipo de “foda-se” para as mulheres brancas, especialmente se isso significa ignorar seriamente as coisas problemáticas. Francamente, eu acho que podemos fazer muito melhor que isso. Acho – espero – que possamos defender a Beyoncé em todas as formas que são legítimas, e existem maneiras de fazer isto (há muitas) sem perder o nosso sentido do que realmente é o feminismo negro, em todas as suas complexidades, e o que realmente não é (veja novamente: Ike Turner). Espero – eu realmente espero que – possamos amar a Beyoncé e nos levantarmos em prol dela sem lhe dar (ou nós mesmas ou qualquer outra pessoa) uma rasteira.
Uma das minhas cenas favoritas dentre todos os novos vídeos da Beyoncé está em “Partition”, quando ela deixa cair o guardanapo somente para que uma mulher branca possa apanhá-lo. Eu interpreto isto como um momento incrível em que uma poderosa mulher negra vira o “script” das mulheres brancas que estão constantemente tentando colocá-la no “seu lugar”, e com um movimento sutil, acaba por colocar as brancas nos lugares delas. Eu sou completamente favor das mulheres negras lutarem contra as feministas brancas insensatas. Mas isso não devia acontecer em detrimento do feminismo negro, pois este engloba a necessidade de manter nossa lente crítica focada, não apenas sobre as mulheres brancas e outras que buscam ver nossas lágrimas caírem, mas também sobre nossos ídolos e nós mesmas.
[1] Traduzido por Aline Maia Nascimento: Cientista Social pela Universidade de Brasília [[email protected]] e Aline Matos da Rocha: Graduanda em filosofia pela Universidade de Brasília e Integrante do Afroatitude [[email protected]]. [2] Mia McKenzie é uma premiada escritora e criadora do blog Black Girl Dangerous. Este texto sobre Beyoncé foi postado em 16 de dezembro de 2013 em sua página: <http://www.blackgirldangerous.org/2013/12/defending-beyonce-black-feminists-white-feminists-line-sand/> [3] Crunk Feminist Collective (CFC) é um coletivo criando por feministas auto intituladas “feministas de cor”- embora no contexto brasileiro este termo tenha uma carga negativa, no contexto de hispanohablantes e/ou anglófonos não se trata de uma conotação racista, o termo “feminist of color” ou “feminstas de color” é oriundo da segunda onda do movimento feminista, na qual o racismo presente no feminismo majoritário foi amplamente denunciado por feministas negras. “Feministas de cor” e/ou “mulheres de cor” é uma expressão com grande força política, utilizada para abarcar a diversidade racial das excluídas do grupo étnico dominante. Para saber mais sobre o posicionamento do CFC em defesa da Beyoncé, veja a matéria lançada em seu site no dia 13 de Dezembro de 2013: <http://www.crunkfeministcollective.com/2013/12/13/5-reasons-im-here-for-beyonce-the-feminist/> [4] No texto original em inglês está “clear” (claro), porém, na tradução utilizamos a palavra evidente em substituição a “claro”, em consonância com a politização da linguagem que os movimentos negros estão fazendo, no sentido de refletir, (re) avaliar, substituir e (re) significar os campos semânticos das palavras, assim, derrubando as acepções racistas, sexistas, dicotômicas e excludentes que elas evocam. [5] Tina Turner, como relata a autora da matéria, sofreu violência doméstica de seu marido e também empresário: Ike Turner. Segundo notícias da imprensa norte americana foram muitos os casos em que Ike agrediu fisicamente Tina. Inclusive, Ike chegou a ameaçar matá-la, com arma em punho após o rompimento do relacionamento. Tina jamais reatou com o empresário e conseguiu refazer sua carreira com sucessos como What’s Love Got To Do With It, lançado em 1984. Título que também dá nome ao filme que fala sobre sua vida e carreira, lançado em 1993. [6] No texto encontra-se o termo “f-word”, que muitos chegam a traduzir como “palavra proibida”, nós acreditamos que nesse caso o sentido de “f-word” seja outro, de acordo com o contexto, para nós, o que coletivo chama de “palavra f” trata-se da palavra “feminista”.