Peço licença à todas as palestrantes e também para o coletivo Pretas Candangas e Griô Produções, responsáveis pela organização do Latinidades, cujos trabalho e atuação são irretocáveis e inspiradores, para falar em primeiro lugar de duas griotes da diáspora negra: Inès Morales e Iradilva Miranda Dantas. A primeira faz parte do MOMUNE (Movimento de Mujeres Negras de la Frontera Norte de Esmeraldas, Equador). A segunda, e não menos importante, é benzedeira/curandeira e membro da Malungu e Coordenadora Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará. São elas que podem, para efeitos desse relato, serem os primeiros testemunhos de tantos momentos políticos e espirituais que tivemos nessa edição do evento.
Falar de Inès Morales é colocar em pauta diversas questões. A primeira delas talvez seja como somos apartadas de nós mesmas e uma das outras, aqui e lá fora. Quantas de nós sabemos que existem outras mulheres negras no Chile, no Equador, na Colômbia e na Argentina, por exemplo, lutando as mesmas batalhas? Quantas de nós fomos e somos separadas por fronteiras arbitrárias que não reconhecemos? Quem estabeleceu ou estabelece tais divisões entre nós? É disso que também fala a luta do MOMUNE, que, além de enfrentar questões ditas clássica de gênero e raça, coloca em xeque sua fronteira com a Colômbia, uma linha imaginária que as separa de suas (e nossas) irmãs afrocolombianas.
Já Iradilva Miranda Dantas também nos fala sobre território, sobre como ele é importante para a manutenção de nossos saberes ancentrais, mais uma vez de como ainda precisamos lutar para que sejam reconhecidos e valorizados. Em sua casinha, como chama o lugar que lhe serve de consultório, atende aproximadamente 60 pessoas por dia, o que demonstra sua vocação e a qualidade do trabalho desenvolvido. Mas para além de números, estamos falando de como a mulher negra pratica medicina num país que não a contempla como paciente e como agente de saúde em potencial e de fato. Que a pratica da curar de nossas benzedeiras em todo Brasil seja reconhecido como patrimônio imaterial e estratégico que é.
Na mesa Letras e Vozes da Diáspora Negra tivemos a presença da professora e ativista pernambucana Inaldete Pinheiro dispensa apresentações. Pesquisadora, foi responsável por denunciar como nossas crianças são representadas na literatura em Racismo e anti-racismo na literatura infanto-juvenil, sendo responsável por aplicar a Lei 10.639 muito antes que ela existisse. Falou também como tantas de nossas estórias são transmitidas por meio da oralidade, falando das famosas estórias de trancoso, aquelas que ouvimos de nossas avós e mães, e tantas vezes dão conta de uma universo fantástico povoado por personagens ancestrais.
Shirley Campell Barr, escritora e ativista costa-riquenha, autora do poema Rotundamente Negra, falou sobre nosso protagonismo, sobre a importância de nossa escrita. testemunhou, num dos momentos mais emocionantes de sua exposição, que escreve porque tem vontade e direito. “Me nego categoricamente a deixar de falar minha língua, meu acento e minha história”. Compartilhou também sua experiência vivendo no Brasil, onde pessoas negras não ocupam os espaços de poder, mando e prestigio.
A literatura erótica também esteve presente com a voz e a pena da jovem e carismática escritora brasileira Nina Silva que falou sobre como nossa sexualidade, usada pela branquitude para objetificar corpos negros, é ferramenta de militância. Somos corpos negros, afeitos às curvas e ao prazer. Nós mulheres, precisamos conhecermos, nos tocar. Acima de tudo, sermos nós as senhoras desse prazer.
Na conferência de Conferência de Abertura, Diálogos Afro-Atlânticos, fomos agraciadas com as presenças de Ana Maria Gonçalves e Paulina Chiziane. A primeira questionou o estereótipo da mulher negra forte. Sim, sabemos que o somos, mas queremos muito mais. Até mesmo para podermos dizer não à tarefa que sempre nos é relegada, de sermos cuidadoras de nós de todos os outros. Que o façamos apenas se o quisermos. A segunda nos trouxe uma discussão interessante de como o cristianismo tem sua origem africana menosprezada, como o protagonismo africano de sua construção é transformada numa manifestação demoníaca. Para a palestrante, não precisamos de uma nova igreja, mas sim nos apropriar mais uma vez daquela que criamos.
No primeiro dia, foi apresentada a performance Quadros com as atrizes Vera Lopes e Pâmela Amaro, em comemoração ao centenário da escritora Carolina Maria de Jesus. Esse foi um dos momentos mais emocionantes do festival, quando muitas de nós se emocionaram e choraram juntas. Outro momento de grande emoção se deu com a exibição do curta metragem O Dia de Jerusa, estrelado por Léa Garcia e Débora Marçal. Após a apresentação a diretora, Viviane Ferreira (BA/SP), nos emocionou ainda mais, reafirmando seu compromisso de fazer cinema fiel às questões do universo da mulher negra. Mais do que nunca o pessoal se tornou político.
A oficina de contação de estórias, feita pelas cariocas Sinara Rúbia e Ludmilla Almeida dos projetos Ton Ogbon e Grupo Cultural Vozes da África, fez da participação do público sua grande virtude. Tudo começou com a princesa Aláfia, para empoderar e fazer conhecer que somos muito mais que escravizados. Em seguida, audiência foi dividida em grupos e a cada uma coube recontar uma estória fazendo uso de panos, símbolos e instrumentos de percussão. De maneira muito simples e divertida, foi contada por exemplo a estória de Exu, de quem foi prontamente retirado o estigma, dando lugar a uma estória de dualidade, sabedoria, esperteza e humanidade.
Foi durante a mesa Sabedoria ancestral: memória, política e sustentabilidade que a pernambucana Martha Rosa Queirós, Chefe de Gabinete da Fundação Cultural Palmares, nos questionou o protagonismo dos maracatus africanos face ao movimento Mangue Beat, criado no ambiente universitário. Também nos lembrou do Maracatu Nação Leão Coroado Nação Nagô, na pessoa do seu mestre, o senhor Luis de França que permitiu que a mesma tocasse percurssão no grupo, o que abriu o caminho para diversas mulheres.
Já Célia Maria Corsino, Diretora do Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN, destacou que o patrimônio imaterial tem o mesmo status legal dos tombamentos. Mas tem uma peculiaridade importante, pois reconhece acima de tudo comunidades. Trouxe também um projeto que tem sido discutido na instituição, que versa sobre os mestres populares do saber. Está previsto que eles obtenham a mesma titulação que aqueles reconhecidos pela academia, recebendo inclusive bolsa equivalente à titulação para desenvolver seus projetos e formar aprendizes.
Heloisa Pires Lima, educadora, escritora e editora sediada em São Paulo, trouxe um vívido exemplo de como a oralidade, a proximidade das estórias xona sobre a figura de Njuzu, senhora das águas, com uma lenda contada da Amazônia. Junto com conosco, povos escravizados pelo europeu, viajaram significados e saberes que podem nos ajudar a reconstruir nossos elos perdidos com a África. Em sua fala, o convite: “quer mergulhar nessas águas” de conhecimento e ancestralidade?
Débora Marçal, atriz da companhia paulista Capulanas, participou da mesa Territórios Negros: fontes de sabedoria ancestral e falou sobre a trajetória do grupo e a apropriação do quintal como território negro. Contou também sobre a decisão de escrever sobre o grupo antes que alguém o fizesse, na conquista em ter o espaço para que o grupo desenvolvesse suas atividades. Ao final de sua fala, nos emocionou com seu canto na companhia das demais atrizes da companhia.
A engenheira florestal e ativista do MNU Minas Gerais, Angela Gomes, apresentou sua tese de doutorado, Territórios da Etnobotânica: Terreiros, Quilombos, Quintais. Nesse estudo reconheceu mais de 500 espécies trazidas do continente, com destaque para 80 plantas.Nos fez questionar que, acima de tudo, o tráfico de negros para a América tinha como um dos seus pilares a transferência de saberes e tecnologias ambientais, ainda hoje desprezados pela academia mas preservados pelos terreiros e pela cultura popular.
Esse é um post que não termina aqui mas é o momento apropriado para reverenciar as irmãs Pretas Candangas e a Griô Produções. Mulheres negras de luta que concretizaram aquilo que antes era apenas uma sonho para muitas. Uma possibilidade que agora é uma realidade palpável de mudança e empoderamento. Durante esses dias tivemos amor, compartilhamos lutas e projetos. Mais uma vez possibilidades que, como disse uma companheira, falam de uma ancestralidade nova e ao mesmo tempo antiga. Obrigada a todas as mulheres da organização, palestrantes e da audiência. Essa é uma experiência de vida que será por nós sempre lembrada com todo carinho e afeto.