Não a conheci, mal conheci a sua história assim como de tantas outras negras guerreiras que lutaram e resistiram através da arte, das ruas, das instâncias acadêmicas, políticas, sindicatos e tantos outros espaços sociais onde a disputa e a luta antirracista deve se fazer presente.
Os livros de história na escola nos privaram de conhecer as mais belas histórias e organizações das nossas guerreiras antecessoras, no combate a escravidão não lemos sobre Dandara ou sobre Teresa de Benguela, a televisão então, essa não há o que esperar! O local do negro como sendo um espaço subalternizado está cristalizado nas mídias hegemônicas. Invisibilizaram a história das nossas Neusa do Santos, Lélia Gonzales, Alzira Rufino, bell hook, Audre Lorde, Sueli Carneiro e tantas outras mulheres que tecem e teceram a nossa luta por garantia de direitos. Nós, mulheres negras e jovens não tivemos a oportunidade de conhecer ao longo da nossa vida essas trajetórias que nos acalentam até buscarmos os espaços de militância.
O famoso vídeo da peruana Victoria Eugenia Santa Cruz Gamarra ‘Me Gritaron Negra’ mexe com a gente em todos os sentidos, é possível saber exatamente que sentimento é aquele, de quando ainda criança somos expostas e apontadas como ‘uma coisa ruim’, na minha época a música cantarolada pelas outras crianças era ‘negra preta do suvaco fedorento rala a bunda no cimento pra ganhar mil e quinhetos’. Diante da ausência completa de referências positivas nas televisões, nas revistas infantis e juvenis, como crescer sem sentir sua autoestima ser mutilada todos os dias? Como não sentir dor quando nos gritavam negra?
O processo de reconhecimento, do tornar-se negra é doloroso, e cheio de insegurança. Quando ao acordar enxergamos um inimigo no espelho, não aceitar a forma disforme do nosso cabelo, o rosto que nunca é destaque na revista Claudia e a cor que carrega infinitas experiências. Ao nos enxergar, enxergamos a nossa dor e recuamos assim como no poema de Victoria, onde o sentimento de desconfiança e pesar faz morada.
Quantas meninas e adolescentes negras queimam seu coro cabeludo todos os dias para colher sorrisos e palavras de aprovação? Ou para passarmos despercebidas pelos racistas? Sabemos que isso nunca adiantou, só nos manteve nesse eterno limbo, onde não conseguimos ser o que éramos e nem seremos mulheres brancas, porque negra é o que somos.
“Alisei o cabelo, Passei pó na cara, e entre minhas entranhas sempre ressoava a mesma palavra Negra! Negra! Negra! Negra!Negra! Negra! Neeegra!”
Mas somos muitas espalhadas por aí, e quando uma mulher negra estende a mão para outra, quando nos reconhecemos em nossas companheiras, o sentimento de orgulho e coragem consegue se sobrepor a qualquer outro que possa nos fazer esmorecer.
“Até que um dia que retrocedia , retrocedia e que ia cair Negra! Negra! Negra! Negra!Negra! Negra! Negra! Negra!Negra! Negra! Negra! Negra! E daí? E daí? Negra! Sim Negra! Sou Negra!Negra Negra! Negra sou! Negra! Sim Negra!Sou”
A artista afroperuana, responsável pela criação da companhia de dança Teatro y Danzas Negras, Victoria morreu aos 91 e deixou um legado de luta e inspiração para todas as gerações. Seu grito ecoa dentro de cada mulher negra.
Victoria Santa Cruz vive!
*Com trechos traduzidos do poema Me Gritaron Negra de Victoria Santa Cruz
Imagem: http://utero.pe/