Sou negra, mulher e bissexual, e por toda a minha trajetória de vida, o racismo, o machismo e a bifobia estiveram presentes no meu cotididiano, cada qual operando concomitantemente através de mecanismos estruturalmente específicos. Por vivermos em uma sociedade monossexual, sempre tive muitas dificuldade para experienciar a minha sexualidade de forma plena e tranquila, e como mulher negra, os signos impostos em meu corpo através do meu gênero e minha cor, sempre impediram a possibilidade de eu viver saudavelmente a minha afetividade, sem que eu sofresse estigmas tanto de homens quanto de mulheres. A cor da minha pele e meu gênero sempre estiveram estampados no meu corpo, e a partir disso experienciei a minha bissexualidade dentro de um cenário onde esses fatores eram colocados constantemente na ordem do dia.
Desde sempre soube o que é ser mulher, e como isso definia bem qual era o lugar de subalternidade que me conferiram socialmente, sendo mulher e negra essa subalternidade ganha um duplo sentido através do machismo e do racismo institucionalizado, onde os nossos corpos foram construídos e consumidos historicamente como passíveis de domesticação e sexualização, atribuindo-nos dois lugares distintos e cruéis: o de mãe preta, ou de mulata.
Não é novidade, ou não o deveria ser, que as mulheres negras escravizadas eram tratadas como fábricas reprodutoras de mão de obra escrava, e foi à base de muito estupro e exploração dessas mulheres que fora construído o falso ideário da mulata exótica e fogosa, e o da mãe preta amorosa, que amamenta, cuida e limpa a sujeira de todos.
Sexualizar, erotizar, objetificar e desumanizar nossos corpos foi politicamente estratégico para a perpetuação do patriarcado e para a manutenção da ordem escravocrata, legitimando a exploração da imagem do corpo da mulher negra, onde mesmo após passado mais de 125 anos desde que fora abolida a escravidão, as consequências deixadas por esse processo estão intrísecas na maneira como somos vistas e colocadas socialmente.
Nos ensinam desde cedo a achar feio nosso traços, nosso cabelo, nossa cor, e quando somos consideradas belas, o somos porque de alguma forma ou outra nos aproximamos do padrão eurocêntrico de beleza. Em relação à esse quesito, sempre fomos e somos preteridas por outras que se enquadram mais facilmente nesse padrão estético, seja quando nos relacionamos com homens, ou mesmo com mulheres, pois como já havia dito no começo, a cor da minha pele sempre estará explícita, ao contrário da minha sexualidade.
Mesmo dentro do movimento negro há uma espécie de naturalização da condição hipersexualizada ou de servidão da mulher negra, e quando esta quebra com a lógica racista e machista de servir à satisfação dos desejos masculinos e se relaciona com uma mulher, logo é vista ou como máquina sexual disponível para a realização do fetiche masculino de possuir duas mulheres, ou como traidora do movimento, por quebrar com a lógica reprodutiva que condena os nossos corpos à gerir e abastecer os que estão pro vir.
Bissexuais em geral são acusados de estarem em um lugar de conforto, onde podem convenientemente se encaixar na ordem heteronormativa e viver sem maiores problemas….. Para a mulher negra, há desvantagens em quase todas e quaisquer forma de relação! Ao mesmo tempo que a minha passibilidade cis hetero pode camuflar a minha orientação sexual, essa mesma passibilidade não me isenta de sofrer racismo, que por sua vez influência também nas minhas relações com outras mulheres: em ambos os casos, a hipersexualização do meu corpo traz consequências devastadoras. Negras bi são duplamente sexualizadas pelos homens (por sermos negras, e por nos relacionarmos com mulher também), e quando nos relacionamos com uma mulher (isso quando não passa de uma noite), a nossa sexualidade é colocada em cheque, ou com o argumento de que somos fogosas, e por isso estamos em busca de sexo, ou porque não sabemos o que queremos.
Mulheres bi em geral são consideradas promíscuas, o que faz com que muitos homens queiram ter uma companheira bissexual e consequentemente usurfruir dessa condição, assim como inversamente faz com que outras mulheres não queiram se relacionar conosco pela fato de acharem que a qualquer momento podemos traí-la com um homem, como se bissexualidade significasse necessariamente não monogamia. Por já termos a saúde mental prejudicada devido ao racismo camuflado e ao machismo escancarado que vivemos através das relações sócioculturais que são estabelecidas cotidianamente, temos grandes chances de sofrer relações abusivas quando não nos sentimos seguras e confiantes em relação a nossa sexualidade. Somos duplamente oprimidas, enquanto mulher e negra, se sentir-se amada já nos é tão caro, ter a sexualidade deslegitimada e reprimida dificulta ainda mais a nossa busca pela autonomia dos nossos corpos, e o amor próprio que nos surrupiaram depois de anos de exploração e violência sistêmica..
Ser bissexual não é estar perdida entre a heterossexualidade e a homossexualidade e utilizar-se desse meio campo para usurfruir de um determinado privilégio, a passividade cis não me liberta, ou me camufla de uma parte do que sou, pois ao me relacionar tanto com homens quanto mulheres eu continuo sendo negra, e ser negra tanto em relações heteros quanto em relações homoafetivas me coloca frente à situações onde ou o machismo me subjulga, ou o racismo me inferioriza, cada qual da sua maneira.
No dia 23 de setembro é comemorado o dia da visibilidade bissexual, visibilidade esta que constantemente é negligenciada por nos encaixarem dentro de uma lógica monossexual de relacionamento, onde somos héteras quando nos relacionamos com homens e somos lésbicas quando nos relacionamos com mulheres. Não deixo de ser bi quando estou com quem quer que seja, e apesar de reconhecer que vivemos em uma sociedade compulsoriamente heterossexual, é mais que necessário que a minha identidade sexual seja respeitada, para que eu possa ser respeitada tanto quando me relaciono com um homem quanto quando me relaciono com uma mulher.
Falar da invisibilidade bi é também olhar para a minha trajetória e perceber como uma sociedade monossexista, machista e racista interagiram para que a minha sexualidade fosse a todo momento colocada em cheque, e mais ainda, deslegitimada!
Foi árduo crescer sem referências que pudessem me mostrar que sentir-se atraída por ambos os sexos não era problema nenhum, e que eu poderia ser amada por quem quer que fosse, idependente da minha cor e da minha preferência sexual.
Temos o direito de viver plenamente, e de forma saudável e respeitosa a sexualidade que nos couber, independente dela ser ou não monossexual. Não é minha responsabilidade (nem é de ninguém) direcionar os meus desejos afetivos e sexuais segundo o béu prazer de qual homem for, assim como não posso ser responsabilizada por outras mulheres que me acusam de compactuar com o patriarcado por eu me relacionar com homens, já que as estruturas opressivas que se colocam frente as situações cotidianas resultam vantagens apenas para os homens, homem e branco então, nem se fala! Não é justo me enquadrarem dentro de uma norma monosexual onde apenas um dos lados da minha sexualidade é legitima, enquanto a outra não existe. A passabilidade heterossexual não me isenta de sofrer lesbofobia quando estou me relacionando com uma mulher, assim como não me isenta de sofrer racismo quando me relaciono com quem quer que seja.
Bissexuais devem ser respeitados como tais, nem minha sexualidade e nem a cor da minha pele pode ser usado para tornar ilegítimo as minhas escolhas, pois nós existimos e resistimos!