Eu cheguei às 8h da manhã.
Não queria perder um minuto sequer de toda aquela experiência. Quando eu cheguei, fui logo dar uma volta pelo alojamento, pra conhecer aquelas mulheres que vieram de longe pra marchar. Algumas ainda estavam dormindo. Uma senhora enrolada num edredom, de calça jeans e tênis, deitada num colchonete fininho, resistia aos gritos da amiga de que ela ficaria para trás. Outras: na fila do banho, trocando de roupa em “cabaninhas” improvisadas, amarrando turbantes de chita na cabeça umas das outras.
MAS HAVIA UMA ENERGIA FORTE DENTRO DAQUELE GINÁSIO. TODAS AS MULHERES PELAS QUAIS PASSEI SORRIRAM PRA MIM. DAQUELES SORRISOS DE QUANDO VOCÊ ENCONTRA UMA PESSOA NEGRA NO MERCADO, MAS AQUELE CUMPRIMENTO INFORMAL MARCA QUE VOCÊS ENXERGAM UMA À OUTRA. DAQUELES SORRISOS CÚMPLICES VIERAM AS MINHAS PRIMEIRAS LÁGRIMAS.
Depois eu resolvi circular pelo café da manhã, ver como estava o ânimo daquelas pretas, se estavam se alimentando direito. No caminho, dei de cara com a Pri Pereira, uma preta maravilhosa que é minha amiga de facebook e que eu admiro muito. Ela passou bem do meu lado. Mas eu travei, não tive coragem de falar pra ela da minha alegria em ver, ao vivo e em preto e preto, uma companheira tão especial no meu processo de (trans)formação cotidiano. Fiquei me sentindo uma idiota e fiz o compromisso de que eu não deixaria de falar com mais nenhuma mulher preta maravilhosa da minha admiração. Aquele era o dia! O nosso dia! E nele eu não abriria espaço pra vergonhas bocas e pudores sociais tolos.
Em seguida, meio tonta, como quem não se acostuma com uma luz forte sobre os olhos, encontrei uma mana do Piauí. Dessas manas que só o encontro, naquele ambiente sagrado de mulheres negras, me fez arrepiar todo o corpo e não conseguir segurar as lágrimas. Ficamos ali, nos abraçando, na alegria desse encontro quase programado, mas improvisado.
Seguimos conversando e circulando, fui apresentada a outras manas do Piauí. Elas viajaram 30 horas de ônibus, chegaram às 3h da manhã, mal tiveram tempo pra dormir e estivam ali, firmes. Encontramos as manas do Goiás, elas que saíram de casa à meia noite, chegaram às 5h e ficaram dormindo na vã. A marcha estava crescendo rápido. Muitas mulheres maravilhosas chegando, com suas faixas, seu turbantes, suas cores, suas individualidades. Foi quando passou por nós a Yazalu, de cara lavada, violão nas costas e numa disposição ímpar de tirar fotos com todas as manas, de fazer as trocas de admiração que queríamos.
Os trios foram chegando, as mulheres se aglomerando, começaram as falas emocionadas e o batuque contagiante do coco e do maracatu das mulheres da Paraíba, da Bahia, do Ceará, que foram se chegando, ficando pertinho, como numa reprodução geográfica da nossa conexão nordestina. A força de todas as que nos antecederam esteve conosco a partir daquele momento. Foi quando uma mana visualizou a SUELI Carneiro. Eu fiquei meio descrente, quase não acreditei, mas fomos atrás. Era ela. Nossa, que sensação difícil. Era como se a mão pudesse tocar as costas de Deus. E pôde. Eu a abracei. Só consegui dizer o quão maravilhosa e inspiradora ela era. A foto saiu e a sensação do encontro permanece e permanecerá pra sempre. Mais lágrimas no rosto e arrepio na pele.
Enfim na rua, começamos a marcha embalados no batuque do coco e do maracatu e do RAP que ecoava do segundo trio, que estava bem atrás de nós. Aliás, trio das SAPATafro, representando as negras lésbicas, bis, trans e as travestis. Estávamos marcando presença, ali, contra a interseccionalidade do racismo e homolesbotransfobia. Na voz da Yzalu, o segundo trio começou a tocar “Mulheres Negras” que, se misturando ao batuque, foi invadindo meu coração e resgatando em mim todas elas: Anastácia, Dandara, Tereza de Benguela, Maria Bonita, Claudia, minha mãe, minhas irmãs, minhas manas. Emoção foi tanta que me escorreu pelo rosto, molhando a pele do sobre o peito!
Seguimos marchando, agora com a Luana Hansen em cima do segundo trio cantando: “MARCHAR CONTRA O RACISMO, EU VOU! MARCHAR CONTRA A VIOLÊNCIA! MARCHAR PELO BEM VIVER, PELO BEM VIVER, PELO BEM VIVER!”. Depois de algum tempo, de alguns quilômetros, os pés começaram a doer, a mochila pesada demais nas costas. Depois de uma olhada pro lado, bateu também a vergonha! Várias crianças, mulheres do axé, mulheres negras com o rosto arcado pelo sol firmes, com suas bandeiras, faixas, suas crias no colo, pé ante pé, sem editar.
Nessa fase, a dor da falta de condicionamento físico, se somou a emoção de estar dividindo aquela rua com 30 mil negras, num processo catártico. Eu só pensava nessa semana, nesse 20 de Novembro, nessa vida de violências é muita resistência. Cada passo era um existir e resistir. Começou a tocar Sarará Criolo e surgiu um coral de vocês pretas que rapidinho se transformou num flashmob de mulheres negras. O cansaço acabou ali!
Estávamos, enfim, chegando ao gramado da Esplanada. Foi quando eu me dei conta do simbolismo. Aquelas mulheres negras atravessando as barracas padronizadas dos facistas golpistas antidemocráticos. Me parecia óbvio que ia dar confusão. E deu. Uma senhora pisou em uma das faixas enquanto cortava caminho pelo gramado. Logo foi agarrada pelo braço com a maior brutalidade. Outras mulheres negras vieram e começaram a bater boca com o racista que a agarrou e com outras/os que estavam envolta. Foi quando deram um soco na boca de uma das moças e começou a violência. Uma das senhoras que estava no segundo trio pediu ajuda: “Estão batendo nas mulheres negras, aqui! Reajam ou serão mortas! Reajam ou serão mortos”. Reagimos. Quatro tiros ao alto. A pouca polícia que estava presente: “deixa estourar”. Os seguranças do Ministério da Justiça não se dignificaram a nos ajudar. Um brado de cima do trio: “Cadê a Polícia Federal? Polícia Federal, se vocês não pararem essa merda, vocês serão responsabilizados”. Eis que surge uma viatura, o fascista-racista foi detido e seguimos, resistindo!
No final, já de volta à concentração e ao som do Ilê Ayê, fiquei revivendo a emoção de cada passo, de cada encontro, de cada rosto, voz e cabelo crespo. Sigo revivendo hoje, amanhã e sempre que a batalha antirracista nos demandar força.
MARCHANDO, RESISTIMOS!
Marcha das Mulheres Negras, Brasília, 18 de Novembro de 2015.