Ela tem uma cicatriz no coração.
Quando já não aguentava mais de falta de ar foi ao médico e descobriu uma cicatriz no coração causada por um infarto.
“Mas que é isso? Não teve a tal nenhum sintoma? Não ia ao médico? Louca!”
Não. Sua vida se resumia a cuidar. Cuidava das filhas pequenas, do marido alcoólatra, cuidava de tudo menos dela.
“Mas que mulher é essa?”
Não sei. Mas talvez seja aquela a varrer a rua, a catadora de papel que passa a maior parte do dia empurrando o carrinho lotado, a mulher por detrás do balcão fritando salgados. Essas mulheres que depois de um dia inteiro de trabalho pegam o ônibus lotado, chegam em casa pra ajudar os filhos, limpar a casa e escutar seus companheiros ou os homens com quem dividem um lar.
Essas, possuidoras de uma história na qual foram impedidas de dar afeto e proteção aos próprios filhos para cuidar dos filhos de suas patroas ou deixar impecável a casa, a comida, as roupas como se fossem da família – ops… mas sem esquecer que trabalhar para pessoas tão boas assim é um privilégio de poucas.
Na verdade, eu só quero dizer que ela tem uma cicatriz no coração como muitas. E hoje, ela aprendeu a olhar para si mesma, a perceber a dignidade do amplo cuidado e ao mesmo tempo a liberdade de estar desobrigada a ser submissa, aceitar a tudo e todos e achar que seu destino seria a brutalidade da vida e do trabalho.
“A cicatriz não vai desaparecer”, disse o médico.
Ela sorriu. Lembrou de uma frase estampada na parede do quarto da filha: “sou negra livre cheguei aqui à pé”. Uma leveza tomou seu coração, viu que o caminho foi difícil para ela e para muitas, teve firmeza (fé e confiança como me disse minha benzedeira) e apenas disse: “Essa cicatriz é a marca do chão que caminhei Doutor. Tem problema não”.