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“minha mãe nunca buscou outro termo que não ‘negra’. ela dizia: ‘filha, você é negra’. ela nunca me chamou de morena, de nenhuma outra coisa. depois, quando você vai ascendendo de série na escola, várias questões vão surgindo na sua cabeça e aí vc tb já não sabe se vc quer ser tão negra igual aprendeu a ser. e aí por várias vezes eu achava melhor que as pessoas me chamassem de morena mesmo, porque era mais fácil, se eu fosse morena do cabelo alisado era mais fácil eu fazer parte de um grupo de amigos.” (luz ribeiro)
[/quote_box_left]sobre a coluna: nessa coluna ver(te)b(r)al, amplio o registro dos saberes que cada pessoa preta na/da diáspora carrega consigo, compartilha com azamiga, usa pra transformar a própria vida, a realidade (im)própria y pra mudar alguns pedaços do mundo. a cada quinze publico entrevistas feitas com ativistas e/ou artistas negras, assuntando sobre o que temos feito, como temos nos conectado, quais são as coisas importantes que orientam nossas práticas y pensamentos: uma compilação de saberes, uma “wikintrevista” de teoria feminista popular negra contemporânea. na semana passada publiquei a primeira parte da entrevista com a poetisa, atriz, slammer, dançarina luz ribeiro. vamos ao final da entrevista!
taten: luz, quando c falou de ter sido questionada tipo “nem é tão negra assim”… é muito doído isso do “nem tão negra assim”, porque parece uma escala de pigmento. sim o racismo especializa suas perversidades a partir de uma escala cromática, e as pessoas mais retintas recebem isso com uma contundência específica (como você diz naquele poema, “quanto mais retinto, mais fácil de ser extinto”), mas vejo a negritude relacionada a pertencimento cultural e racial, autoafirmação, reconhecimento de uma comunidade. o colorismo me parece muito herança colonial, dos sistemas brancos y escravocratas de classificação dxs escravizadxs.
fiquei muito maravilhada quando vc falou que sua mãe ensinou pra todas as filhas que elas eram negras mesmo, que ninguém podia roubar isso de vocês. acho que nesse ponto você foi privilegiada, essa não é a realidade majoritária das famílias negras brasileiras né? pra maioria, o que pega é a ideia de limpeza do ventre: mulheres de pele escura que se casem com homens brancos, vice-versa, na esperança de que a prole venha cada vez mais clara porque isso significaria distanciamento da negritude. o branqueamento é uma política do século xix mas continua bombando né. mas a resistência não dorme, também: então, de um lado, as referências da ancestralidade têm retomado figuras históricas e/ou ancestrais, e de outro também temos reverenciado ancestrais mais próximas em nossa vida, familiares. vc pode falar alguma coisa sobre o fortalecimento identitário que sua mãe incentivou? acho muito diferente sua experiência.
luz: eu me lembro e até falei pra minha mãe, é uma coisa muito latente. uma vez eu tava chorando e ela perguntou o motivo – era algo que girava em torno disso, do racismo. ela me pegou pela mão, me botou na frente do espelho e me disse que eu era linda do jeito que eu era. e aí já fomos muito confrontadas por isso. meu pai é branco, minha mãe sempre se denominou negra mas as pessoas dizem que ela é parda. e ela sempre se denominou negra, e sempre disse que não era por eu ser retinta (termo que aprendi depois), não era por eu ser mais escura que minha irmã que ela não era negra: éramos todas negras. isso foi algo que nunca tive dificuldade de afirmar; às vezes eu via na escola outras meninas negras afirmando “eu sou morena”, e me causava um estranhamento, porque dentro de casa eu já tinha aprendido que eu era negra.
minha mãe nunca buscou outro termo que não “negra”. ela dizia: “filha, você é negra”. ela nunca me chamou de morena, de nenhuma outra coisa. depois, quando você vai ascendendo de série, várias questões vão surgindo na sua cabeça e aí vc tb já não sabe se vc quer ser tão negra igual aprendeu a ser. e aí por várias vezes eu achava melhor que as pessoas me chamassem de morena mesmo, porque era mais fácil, se eu fosse morena do cabelo alisado era mais fácil eu fazer parte de um grupo de amigos. agora, se fosse negra, se resolvesse fazer com que o cabelo permanecesse em riste, era mais difícil de fazer parte de um grupo. e é muito loko, porque eu tinha aprendido [a afirmar a negritude] quando era criança, depois eu me distanciei (“não, acho melhor eu amorenar mesmo, ficar moreninha”). e aí o quanto o processo pra voltar a “ok, eu sou negra mesmo, esse é o meu cabelo, vou ficar com meu cabelo assim”, o quanto esse processo de me achar, também, foi muito doloroso. o me perder foi muito doloroso, mas o me achar também. até porque é uma coisa que dói o tempo todo.
ontem mesmo até comentei com minha mãe: as pessoas fingem que tão te aceitando do jeito que você é. porque meu primo tava aqui e ele falava o tempo todo “como seu cabelo é bonito, deixa eu pegar no seu cabelo?”. ok, mas no mesmo dia, depois, ele me perguntou “por que você não vai no beleza natural?”. eu respondi que não queria ir lá porque iam alisar o meu cabelo, e ele disse “não, não é alisar! eles vão soltar”. eu falei: “isso, vai passar por transformação química, de novo, que foi algo de que já me desvencilhei, e a cada dia eu descubro um novo jeito de não precisar chegar nisso de novo”. então é muito loko no sentido de que as pessoas ficam só mascarando. “ok, seu cabelo é bonito, mas você devia ir no beleza natural”. “o seu cabelo é bonito, mas já pensou que se você puxar ele bastante o quanto ele vai estar cumprido?”. “olha, seu cabelo é legal, mas atrapalha né, quando você vai no cinema e você fica na frente de alguém…”. então a presença da minha mãe é uma presença muito importante. eu até brinquei com ela, “mãe, acho que vou pintar meu cabelo de preto. ou vou aproveitar as mechas e pintar de roxo”. ela disse “eu acho que você devia pintar logo todo de roxo, já muda de vez!”
minha mãe é uma conexão muito grande. pensando ancestralmente pra que esse código permaneça. ela me conta muita história das coisas que meu avô fazia, como que era o relacionamento do meu avô com a minha avó. o que minha avó teve que fazer, porque ela era branca, meu avô negro e descendente de escravizados. a gente tava até falando disso essa semana: da cor do meu vô! que é uma cor que não tem, eu não vejo ninguém aqui em são paulo com uma cor daquela. um negro avermelhado, coisa muito linda! meu avô parece uma pedra, sabe? polida, diariamente. e aí essa memória permanece muito viva, acho que minha mãe tem muita paciência em ficar contando essas memórias, as histórias que aconteceram quando ela era criança, os monstros que existiam… as coisas que as crianças tinham medo, é muito mágico.
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“a gente tava até falando disso essa semana: da cor do meu vô! que é uma cor que não tem, eu não vejo ninguém aqui em são paulo com uma cor daquela. um negro avermelhado, coisa muito linda! meu avô parece uma pedra, sabe? polida, diariamente. e aí essa memória permanece muito viva”
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quanto a meu pai, quanto a ancestralidade de busca e pertencimento, eu conheço muitas histórias do meu pai mas elas são um pouco mais desligadas, até porque a região é de minas gerais, um outro tipo de história, e porque meu pai é uma pessoa branca. então são outras histórias, são outros aprendizados. o tipo de código que a gente falou anteriormente vem mais pelas histórias da minha mãe. meu vô também era um mega contador de histórias, adorava contar história!
taten: e quanto ao feminismo, como você sente, entende, pratica feminismo? você se considera feminista? além da sua mãe, você tem outras referências nesse sentido?
luz: sim, eu me considero feminista. numa conversa recente me perguntaram que linha de feminismo eu fazia. respondi que não fiquem me perguntando que linha de feminismo eu defendo; não defendo linha de feminismo nenhum. eu defendo mulheres, buscando a igualdade, os espaços, nossas coisas. mas particularmente tenho muita dificuldade em seguir linhas. vejo hoje em dia as pessoas falando muito mal do feminismo radical – mas eu conheci o feminismo pelo feminismo radical, então eu via aquilo e achei muito importante. eu não sigo linha nenhuma, até porque às vezes me perco quanto a referências, às vezes acho que as pessoas ficam muito voltadas pra esse lugar de o que foi fulanx, cicranx que disse… não tenho isso de referência bibliográfica pra ficar citando, mesmo que eu leia muita coisa eu e vá mudar minha vida, eu vou ser grata a uma pessoa que nem sei quem é porque não decoro.
taten: eu sou uma dessas pessoas com algumas críticas ao feminismo radical – especialmente por ter se tornado tão transfóbico. também me confunde um pouco a coisa de muitas heteras serem feministas radicais, e falarem sobre lesbiandade como algo “político”, ou seja, que não precisa ter relação com práticas afetivoSSEXUAIS… meu grande incômodo mesmo é que acaba que o feminismo radical hoje tem sido uma das principais correntes de ativistas/teóricas que tá difundindo muita transfobia, sou muito radicalmente contra isso. também me desapetece a forma com que rolam as brigas e disputas principalmente em redes sociais (transfeminismo X radfem), um gasto de energia, uma onda bélica sem possibilidade de transformação (muito por conta do fundamentalismo transfóbico)… menciono isso até com receio de me envolver e te envolver nessas polêmicas que são muito paias e bélicas.
luz: eu vejo o feminismo em vertentes inúmeras. muito branco, muito elitista E muito transfóbico, de maneira que eu não me sinto contemplada, mas foi através do feminismo radical que cheguei ao feminismo. e eu me considero feminista porque quero meu lugar no espaço, acredito que eu ainda não estou onde deveria estar mas busco esse lugar. então sou feminista no sentido de que ok, eu posso andar com short do tamanho que eu quiser, e nenhum hom… ninguém tem o direito de violar meu corpo porque eu estou andando com a roupa que eu quero usar. sou feminista porque não acho que um cara tem que ganhar mais que eu pra exercer a mesma função.
quanto a referências, lembro que quando li “a hora da estrela” da clarice lispector pela primeira vez… eu sempre gostei muito de ler, ou, na verdade, eu me fiz gostar de ler. porque sou muito competitiva e não escondo isso de ninguém, só que tive muita dificuldade em ganhar as coisas. tipo assim, sempre gostei de esporte mas meu time de futebol nunca ganhava. gostava de jogar vôlei mas nem entrava no time, porque eu não tinha os pré-requisitos pra fazer parte do time, nem de vôlei nem de handebol na escola. e até porque tive muito tempo de introspecção, eu tinha dificuldade de chegar em algumas atividades. mas descobri que tinha um lugar chamado “sala de leitura”, e as pessoas que mais lessem livros durante o ano ganhavam livros. eu falei “bom, é aí que eu vou competir, porque depende literalmente só de mim, eu não preciso ter amiga, não preciso ter time pra nada”. e aí eu lembro que, no primeiro ano, eu fiquei em segundo lugar e quem ganhou foi outra pessoa, o que foi justo, porque realmente ela passava o tempo todo lendo. muitos dos livros que eu pegava era só pra ver as figuras, depois devolvia. e aí, o mesmo grau de competitividade que eu tenho, eu tenho também de justiça. então pensei em fazer jus, “eu quero ganhar e vou fazer jus”, e foi quando eu comecei a pegar vários livros e de fato eu lia mesmo os livros. aí eu ganhei! foi o primeiro ano em que ganhei alguma coisa na escola, falei pra minha mãe, a pessoa que mais leu livros na escola.
lembro que numa dessas leituras eu tava lendo muito livro infantil, e a moça da biblioteca falou “eu acho que você já passou do tempo de ler essas coisas”. ela viu que eu não tava demonstrando mais tanto interesse, aí eu lembro que ela me deu um livro de poesia da cecília meireles e um livro da clarice lispector. o da cecília meireles eu achei legal. mas eu lembro que quando eu li “a hora da estrela” eu era super nova e eu não entendia nada do que tava escrito ali, mas eu achei muito fantásticas algumas coisas que tavam no texto, tipo quando a macabea fala “eu me doo o tempo todo”. na hora eu entendi que era “eu me doo” de doer, aí eu pensei “nossa, tadinha”, porque ela tinha pedido aspirina pra alguém e se doía. depois de grande eu comecei a ver que podia ser “eu me doo” de doar, também. mas lembro que essa frase me fez ficar muito apaixonada por esse livro, e acabou que eu fiquei muito apaixonada pela clarice lispector. aí eu comecei a ler muitas coisas dela, e não entendia nada porque eu era muito nova pra entender a complexidade que era. e depois de grande tive que reler tudo depois de grande.
acho que a clarice lispector foi uma referência do que eu queria ser, porque lembro que quando eu li aquilo eu queria muito ser aquilo. e num dado momento na vida, quando eu ouvi sandra de sá cantando “olhos coloridos” foi uma coisa muito importante. porque ao menos no mundo em que eu vivia, das músicas que chegavam até mim, não tinha muita coisa que falavam “ser negro é legal”. e de repente você ouve “meu cabelo enrolado / todos querem imitar / eles estão baratinados”. e eu fiquei muito impressionada! então sandra de sá, essa música “olhos coloridos” em específico, também foi algo grandioso.
uma vez assisti a um filme da tina tunner, que vi escondida (falei pra minha mãe depois de grande!). eu vi a chamada e achei fantástica, era algo que não podia ser totalmente exibido por conta do horário, mas era assim: um homem que empurrava uma mulher num aquário. aquela imagem ficou muito forte na minha cabeça. pedi pra minha mãe pra assistir o filme, ela não deixou. aí fiquei muito aflita querendo assistir, muito aflita querendo assistir. aí quando o filme começou eu acordei, dei a volta no corredor pra minha mãe não me ver, e fiquei vendo o filme todinho pela porta de vidro. a tina tunner também se tornou uma grande representatividade pra mim, porque interpretava alguém que sofreu a vida toda e de repente consegue se libertar daquilo com uma força grandiosa. e por ela ser negra! é disso que eu tô falando. eu gostava muito de xuxa, eu gostava muito de mara, mas era uma coisa distante. aquilo que o povo fala o tempo todo: não tem paquita preta. teve muitas pessoas que me encantaram no decorrer da vida. mas essas foram marcos. e depois de grande: carolina maria de jesus, quando você vê alguém que não se encaixa nos termos da poética mas é capaz de mudar a vida! porque você lê “quarto de despejo”… quem nunca passou pelo menos por uns daqueles dias?
novos anoscasa vazia.
poucas vezes consegui observar minha respiração
sentir a cama como um território inatingido pela sua extensão.
agora consigo me ouvir.
posso me ver
e vejo-me só.
a ausência ou deficiência de um sentido aprimorou outro
por isso me ouço tão bem.
cansei da busca de ser amada ou amar
hoje eu quero viver
quero cantar, sorrir, dançar…
e por que não dançar sorrindo? (ou vice-versa?)
tudo é imperativo:
arrumar gavetas
lavar a alma
organizar a vida!
buscar o amor, amando-me primeiro.
eu consegui referências de mulheres negras tardiamente, a vida não tinha me apresentado. até então, a única referência que eu tinha literária que poderia mudar minha vida era clarice lispector. hoje em dia vejo carolina maria de jesus, mulheres negras no cenário atual que mudaram meu jeito de escrever, como a elizandra de souza. depois que participei do projeto “pretexto de mulheres negras” a convite dela, isso mudou minha escrita completamente. meu primeiro texto feminista surgiu por participar desse projeto, de ouvir várias vozes de mulheres que querem se libertar do racismo, se libertar do machismo, e aí eu tô lá só falando de dor de cotovelo… falei “não, meu, minha palavra tem mais potência do que isso! posso continuar falando de dor de cotovelo, mas acho que minha palavra tem mais potência.” então participar desse livro, pretexto de mulheres negras, foi um divisor de águas. e aí tem outras, diana ross… mas daí é numa esfera mais musical. depois, com o tempo, é que eu fui achando outras referências.
taten: então tá. pra terminar, só falta minha última pergunta: e a poesia, é o quê?
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eu acho que a poesia torna a gente menos invisível. menos.
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luz: eu já respondi várias coisas pra essa pergunta. a gente tem que ficar fazendo essas biografias pra enviar nos projetos, então eu já respondi muitas coisas. eu acho que a poesia, dentro dessas coisas que eu já respondi, é quase um antídoto contra a invisibilidade. eu demorei vinte e… vinte? aquela que vai se perdendo nas contas… mas eu acho que a primeira vez que eu me senti de fato ouvida foi quando eu fui no sarau da cooperifa e aí falaram meu nome, as pessoas bateram palma, e elas ficaram todas em silêncio. pra ouvir uma coisa que elas nem saberiam que eu ia falar! e aquilo me causou um estranhamento muito grande, eu pensei “nossa, as pessoas tão todas quietas!”, a sensação que eu tinha é que eu ia morrer, eu não tava dando conta de falar pras pessoas. então eu acho que a poesia torna a gente menos invisível. menos. eu acho que a poesia também, no meu caso, é uma possibilidade de eu não embrutecer mais, assim: não embrutecer vírgula mais. então cada vez que eu consigo exprimir em palavras ou chegar próxima do que eu quero falar em palavras, eu me deixo embrutecer menos. e acho que quando a gente embrutece menos a gente consegue… dar chance pro outro. que é muito difícil dar chance pro outro vivendo em são paulo! é uma cidade que quer te afastar o tempo todo. eu conheço gente que mora aqui do lado e eu não vejo as pessoas… é uma cidade que quer te afastar o tempo todo. então eu acho a poesia muito importante pra isso, pra eu ser menos invisível, pra talvez eu chegar próxima daquilo que seria uma voz, sabe? às vezes eu até me iludo achando que eu tenho voz pras coisas… e às vezes eu até tenho, mesmo! acho que é isso: ser menos invisível, buscar uma voz, e ser menos bruta.
taten: muito agradecida, lóv! aprendo muito contigo <3
[o livro pretexto de mulheres negras, organizado por carmen faustino y elizandra souza, foi publicado pelo coletivo mjiba – jovem mulher revolucionária – em são paulo, 2013. é uma coletânea com 22 poetas, incluindo luz ribeiro, que na época assinava lu’z ribeiro. mais info sobre o mjiba aqui: http://mjiba.blogspot.com.br/
a primeira parte da entrevista com luz ribeiro tá disponível aqui: http://blogueirasnegras.org/2016/01/09/coluna-vertebral-entrevista-luz-ribeiro/
sugestões dúvidas receitas carinhos? [email protected]]