Acho maravilhosa a experiência de ter histórias transgredindo os metros quadrados de uma tela de cinema. Mesmo sabendo que as minhas histórias e as histórias das mulheres que me representam são deturpadas pela cinematografia, ou pelo fato de não terem o privilégio de serem contadas, acredito na utilidade do cinema como algo grandioso, transformador e passível de ser manipulado por nós, os grupos socialmente desfavorecidos, com a intenção de contar as nossas histórias, com nossas vozes, do nosso jeito, com o nosso olhar. Ouvi em uma aula sobre teoria da literatura que a função da literatura é mentir, e essa mentira tem como ambição forjar uma verdade. Acredito, também, que o cinema partilhará dessa característica. Ele vai mentir, ocultar verdades, mostrar um prisma, de forma intencional, da verdade, ou da mentira. Ou inventará tudo. Até os documentários, tidos como registros históricos de algo ou da vida de alguém forjam “verdades”, escondem “mentiras”. E posso citar como exemplo What Happened, Miss Simone? Que foi amplamente criticado pelos conhecedores da vida de Nina Simone, pois o documentário foi restrito, dando holofote em uma Nina aquém de Nina Simone. A “verdade” que ali aparece isenta um marido agressor e explorador, e encarcera Nina em um corpo psicologicamente doente e passional. A musicista impecável, dona de uma voz incrível e ativista política, preocupada com uma sociedade melhor para negras e negros, se perde em uma exposição ingrata de uma vida que o cinema se limitou a mentir.
E ontem, pela primeira vez, eu vi um filme, dentro de uma tela, contando, de forma metafórica, a verdade: Kbela (http://www.kbela.org/). Com roteiro e direção de Yasmin Thayná, o filme retrata “ uma experiência audiovisual sobre ser mulher e tornar-se negra”, palavras utilizadas pela própria diretora. Em poucos minutos ela consegue resumir séculos de histórias de mulheres negras, que tiveram suas experiências castradas, vulnerabilizadas e periferizadas. Kbela é, na minha percepção, além de revolucionário, a retomada e a construção dos novos centros, mudando, drasticamente, a forma de fazer e ser cinema, pois vai muito mais de um roteiro e direção impecáveis e uma trilha sonora e fotografia, milimetricamente, cuidadosas. Kbela estabelece verossimilhança como marca principal, característica que nem todas as produções experientes e bem patrocinadas conseguem ao produzir cinema.
Apenas com duas sessões em Salvador, nos dias 8 e 9 de janeiro, as quais ficaram lotadas de expectadores e de uma fila extensa de interessados do lado de fora, o resumo da emoção de produzir e ser Kbela não poderia ser outra: “Estreia do nosso filme KBELA ontem em Salvador. Ainda ecoando em minha mente o momento durante o debate quando uma menina negra disse no microfone emocionada que nunca imaginou ouvir o som no cinema de um cabelo crespo sendo penteado. Ela nunca imaginou ouvir o mesmo som que ela ouve todos os dias antes de sair de casa. Ela nunca imaginou ouvir o som que vem dessa raiz, essa raiz que sempre lutou por um país de todos, essa raiz que está sempre com força e fazendo barulho nesse país. Pertencimento, se ver, se ouvir. Obrigada, Salvador. Obrigada”. (Yasmin Thayná). E nós, baianos e baianas, dizemos: obrigada, Kbela, obrigada. A Bahia te deu régua e compasso e Zózimo Bulbul alma no olho.