Se você vivia muito tempo achando que não era negro ou negra, se você sabia que era, mas não se sentia confortável com isso ou até mesmo se você sabia e se sentia confortável, porém se sentia inseguro ou insegura para poder afirmar sua negritude, você com certeza vai se identificar com esse texto.
No texto “The Process of Becoming Black: Leonard Howell and the Manifestation of Rastafari (algo como: Tornando-se negro: Leonardo Howell e a Manifestação do Rastafari)”, o psicólogo Christopher A. D. Charles conta a história do primeiro homem Rastafari.
Charles explica como Leonard Howell constroe sua identidade negra que, como ele afirma, “era física”, porém não psicológica. Como isso seria possível?
Nós vivemos numa sociedade eurocêntrica, onde somente o sujeito branco e a cultura que ele representa tem lugar, para inserir-se nessa cultura o sujeito negro que não pode ou não “quer” lutar pela sua inserção, só tem uma opção: ser assimilado pela cultura opressora.
Nesse primeiro processo, o de assimilação, o sujeito negro é compelido a rejeitar a sua negritude e adquire geralmente uma postura contrária a tudo o que é negro. É comum que ele culpe outras pessoas negras por seus comportamentos e posturas, que seriam “o motivo de não serem aceitos pela branquitude”. Também com frequência ele rechaçará adjetivos racializantes, preferindo denominar-se “brasileiro” ou simplesmente “humano”.
No segundo processo o sujeito negro desenvolverá uma posição de imparcialidade, ele deixará aos poucos de enxergar a si e a sua negritude como um “impecilho” à sua aceitação na sociedade. Muito provavelmente ele estará em contato com alguém que já terá passado pelo processo de construção da negritude, e que será importante no processo de desconstrução da auto-rejeição, ou racismo introjetado da pessoa.
A terceira fase desse processo é a mais conflituosa, as lembranças dos comportamentos de auto-ódio e da assimilaçao do comportamento racista mostra-se muito dolorosa para o indivíduo negro. Por isso é extremamente comum, mas também importante, que o indivíduo rejeite toda e qualquer manifestação e representação da branquitude.
Quem, em processo de construção de sua identidade negra não ouviu o famoso “você tem ódio de brancos”? De uma maneira poderia-se afirmar que a pessoa realmente nutre uma certa raiva e uma grande revolta contra a branquitude. Essa raiva, porém (eu prefiro chamar de rejeição) é uma parte importante da construção de uma identidade negra que existe emancipadamente da branca, que existe independentemente da determinação e da aceitação da branca.
Nessa fase também é comum que o indivíduo negro se afaste de tudo e de todos os que mostram pouco interesse pela causa/temática negra. Simplificando, a pessoa tende a ter pouca paciência com quem tenha pouco interesse em desconstruir o racismo assim como ele, e que é por isso, um potencial (re)produtor de racismo ou eurocentrismo.
Segundo Christopher A. D. Charles, também é comum que a pessoa negra romantize ou idealize a negritude durante essa fase, chegando até mesmo a considerá-la superior às outras identidades.
Desse modo, torna-se necessário dizer que não, não se trata de radicalismo a maneira mais ofensiva com a qual algumas pessoas negras afirmam ou reafirmam sua negritude. E penso que falta(va) saber e discutir-se mais esse processo; de saber o quanto é importante para a pessoa negra se afastar de ambientes e de pessoas que, conscientemente ou não, a estão expondo a uma situação de conflito.
Até mesmo no nosso meio, penso que muito conflitos referentes à identidade negra acabam acontecendo, porque ignoramos quem esteja vivenciando uma dessas fases. Muito provavelmente a própria pessoa não percebe estar em alguma dessas fases, o que a torna, assim, mais sensível a certos questionamentos.
A quarta fase é a última do processo e é chamado de “internalização” da afrocentricidade. Nessa fase todas as dúvidas quanto à própria negritude se dispersam e o sujeito negro se sente confortável com a própria identidade. O ataque da branquitude racista já não o desestrutura mais, ainda que continue a atingi-lo de alguma maneira. Além disso o sujeito negro biracial ou multicultural consegue aceitar suas duas culturas/identidades sem ter que entrar em conflitos identitários. Nessa fase tanto para o sujeito afrocentrado ou que só descende de africanos, quanto o biracial/multicultural, consegue divisar, enxergar, as várias camadas e a complexidade que envolvem as opressões racias na sociedade. Ele consegue ver e compreender melhor a interação dos sujeitos de diferentes identidades raciais dentro da sociedade multicultural, multiracial e multi-étnica à qual pertence.
Agora, o que dizer de pessoas que não deixam a terceira fase ou terceiro processo? Essa é uma pergunta para qual eu ainda não encontrei resposta. Me pergunto porém se a incapacidade de passar para a fase seguinte não vem de uma opressão maior, da possibilidade de vivência da negritude do sujeito ou até mesmo da negação ao acesso a informações afrocentradas, que não partam da perspectiva da cultura dominante branca.
Espero que essa introdução ao texto do psicólogo Christopher A.D. Charles tenha ajudado tanto pessoas negras, quanto brancas interressadas em desconstruir o racismo, a entender porque “o amiguinho ou amiguinha” de repente, desde que “sabe que é negro ou negra” se tornou “radical” “chato” ou “vê racismo em tudo”. Ele ou ela está assim porque realmente vê o racismo que está em tudo e em todos os lugares na nossa sociedade. E estar vendo tudo isso que ele antes ignorava sem a ajuda de um “filtro” o torna menos intolerante a estas manifestações de racismo.
Aliás, o termo intolerante é com certeza o mais correto para descrever o que essa pessoa está sentindo, já que é o verbo que se usava para descrever quando um torturado durante a Inquisição “suportava”, ou seja, não sucumbia à tortura. É assim que a pessoa se sente, sobrevivendo a uma sessão de tortura.
Para terminar, é importante que se compreenda que essa fase é muito importante para a pessoa em processo de construção da identidade negra, pois o distanciamento da branquitude a ajuda a se sentir bem com o que descobriram ser, mas que continua sendo rejeitado por tudo ao seu redor.
Quem ainda assim, insistir em ver a afrocentralização dessas pessoas como ódio ou ameaça à própria identidade (branca) ou à pseudo-harmonia da convivência das “raças” no nosso país, deve se perguntar se não chegou a hora dele próprio desconstruir a sua noção de branquitude.
*Texto base para esse texto: „The Process of Becoming Black: Leonard Howell and the Manifestation of Rastafari“ de Christopher A.D. Charles. Visitado em 30.05.2015 no sítio: https://www.academia.edu/1634293/The_Process_of_Becoming_Black_Leonard_Howell_and_the_Manifestation_of_Rastafari
**Meus sinceros agradecimentos à querida Carolina Pinho Santos! Por me fazer refletir, por me fazer atentar para as diferentes fases nas quais as pessoas negras se enconstram durante a construção de suas negritudes e identidades e o quanto alguns questionamentos podem machucar nessas fases.