A cor de Mainha na sala da dentista destoa. Um tom marrom forte, bonito, enfeitando um lugar tão alvo. As mãos dentro da luva que estão prestes a extrair mais um dente também são brancas. Dente número trinta e um. De original mesmo Maria, minha mãe, só ficou com quatro incisivos. Menos um hoje.
Ela sempre me contou algumas histórias de extrações. “Naquela época não tratava. Arrancavam logo. Às vezes quebrava a raiz dentro da gengiva, igual esse aqui que arranquei um tempo depois da tua cesariana. Quando inflamava, doía e nem tinha anestesia. Arrancavam logo.”
O procedimento dura pouco tempo. Mainha só sente a dor fina da agulha antes de ficar tudo dormente. Corajosa e calma o tempo todo.
Já eu fico aflita, quero pedir para a dentista ter muito cuidado com a boca de minha mãe, que ela já tinha vergonha de sorrir direito. Por favor cuidado, já tiraram dentes bons daí, sem anestesia, talvez na época só precisassem de obturação. Cuidado, é minha mãe.
Doses de alívio me acalmam cada vez que a mulher é gentil, explica o procedimento, pergunta se sente dor, diz que está quase acabando.
Até que acaba mesmo e saímos com ordens de repouso, tomar um sorvetinho e não fazer esforço.
No caminho do corredor até o caixa, onde a atendente espera os setenta reais pela extração simples a baixo custo, Mainha tece elogios com a boca dormente. “Tu viu se ela arrancou mesmo? Eu nem senti. Tão atenciosa ela, né? Na minha época dentista não era assim”.
Agora que enxergo a minha cor e a cor dos meus, é impossível não perceber o tanto de dor desnecessária que nossos corpos experienciam. Somos corpos que passeiam, seguem a vida, vão a público, mas com muitas marcas. Na carne, dentro da boca, nos cortes, nos calos das mãos que ficaram grossas com o tempo. E na alma. Somos feridos e não existe muito espaço para acolhimento e cura. Saímos de um consultório agradecidas demais por receber o mínimo de atenção e cuidado. Mas a gente sabe que não é bom abusar e se acostumar. O abraço e a escuta podem não durar tanto, afinal é muita demanda. Demanda de dor.
E a verdade é que eu entendo, e ultimamente até recomendo não chegar perto quando o racismo me faz sangrar por dias. Eu entendo. Mas dói. Dói porque sei que minha mãe só foi acolhida em um procedimento médico simples aos setenta anos de idade, e para estar lá com ela tive que investigar qual horário seria. Ela iria só. Costume!
Dói porque sei o quanto ela me ensinou sobre suportar e esconder, para sobreviver. E por saber que nossa dor é pesada demais. É bom dar um jeito nela antes que incomode alguém por perto.
E os jeitos são dois: suportar ou procurar cura. Esse espaço que a gente entende que não tem, é a parte que de nos foi arrancada, repetidas vezes, sem anestesia. O poder da cura que nós não conseguimos mais sentir precisa ser reconstruído, antes que tudo seja apenas dor. Todo corpo trabalha para não morrer, para não sucumbir. Onde está, no cansaço e nos traumas de gente preta, nossa capacidade de não abrir mão de nosso corpo e mente, mesmo com as feridas? Como? Sem bula, cardápio, manual ou mapa?
No amor. No cuidado. E no ajuste do olhar, das atitudes.
Eu sabia que minha mãe, negra, iria sozinha à dentista. Fui lá segurar sua mão. Ela não quis. Ofereci minha presença.
Cuidado é ancestral.