Em toda minha memória escolar, dois contextos me marcaram muito:
1.: todas as situações de racismo explícito, especialmente as chacotas ao meu cabelo. Na época eu usava muito tranças. Tão certo assim, logo quis alisá-lo. Passei guanidina, escovava, passava prancha e até ferro. Tudo isso era muito mais hostil com as meninas pretas retintas, de cabelos crespos. Alguns professores (as) sabiam e não falavam nada, era tudo muito naturalizado como “brincadeira”.
2.: Inquietações nas aulas de história. Para mim era realmente muito difícil entender a revolução francesa, seu ideal “liberdade, igualdade, fraternidade”, ao mesmo tempo em que a frança escravizava pessoas negras. Eu me lembro de muitos detalhes desse aula, sentada na frente enquanto quase todos conversavam, e a professora branca não levava a sério as minhas perguntas.
As inquietações em sala se tornaram uma constante. Não se tinha internet, nem acesso a outras fontes como temos hoje. Tudo isso acabou me levando escolher a história para minha vida e profissão. Eu realmente precisava entender aquilo tudo.
Infelizmente minha história deve ser parecida com a de muitas crianças, jovens, adultos e idosos negros na escola. Essa mesma escola com potencial absurdo de nos libertar, também pode ser um importante instrumento de despontecialização, aprisionamento e lesões graves à integridade física e mental de pessoas negras. Não à toa, Sueli Carneiro, em sua tese “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”, nos convida a refletir sobre poder, saber e subjetivação. No capitulo 3, ela nos alerta sobre implicações do epistemicídio através da anulação e desqualificação do negro como portador, produtor de conhecimento e rebaixamento da sua capacidade cognitiva, sobre o processo persistente de negação do acesso a educação de qualidade, bem como sobre a produção de inferioridade intelectual. E enganam-se quem pensa que tudo isso não afeta as subjetividades, os modos de ser, a participação social e formas de interagir no mundo.
A escola não foi só isso para mim, obviamente. Apesar dessas situações, também tenho boas memórias da escola, dos meus colegas e dos meus professores e professoras. As minhas melhores amigas são dessa época inclusive.
Mas foi também na escola que entendi o lado doloroso de ser negra, justamente porque a escola em diversos momentos cumpriu esse papel controverso de legitimar “o meu lugar” na história. Só que comigo, felizmente, esse projeto não deu certo.
– Mas aonde você quer chegar com isso, Rafaela?
Conversando com amigas professoras negras de áreas distintas, muitas delas têm relatado a procura de professores e professoras, em sua maioria brancos, solicitando orientações para uma educação antirracista. Professores brancos de esquerda, muitos deles que se declararam antifascistas recentemente, com uma longa trajetória em sala de aula.
Ao compartilhar a angustia, percebemos todas que ela era coletiva. A partir disso, começamos a refletir sobre o que essa galera tem feito até aqui, em como essa negligência é uma postura racista, e como ela tem contribuído significativamente para perpetuação do racismo no Brasil. Ou vocês acham que a educação não cumpre um papel fundamental na reprodução do racismo?
A escola é um dos espaços de formação e construção de sujeitos para vida social, para confecção daquilo que entendemos e chamamos de história. Se não fosse também a educação, o racismo não teria como se reproduzir, nem existir até hoje.
Racismo é problema dos brancos(as)!!!! É tarefa histórica de vocês também resolverem isso, com ações políticas cotidianas que visem à efetivação da sua ruptura nas estruturas e instituições.
Infelizmente o racismo é algo tão naturalizado, que ele não aparece diante de vocês como problema. É importante lembrar que isso é ser branco e desfrutar da branquitude. É não ser racializado, nem se preocupar com isso numa sala de aula formada majoritariamente por pessoas negras. Ser branco é ser universal e reproduzir essa lógica racista conscientemente ou não.
Assumindo a posição de aliados na luta contra o racismo, é preciso ser antirracista na prática. Angela Davis foi enfática: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.”. Tal afirmativa nos faz refletir sobre o contexto histórico e político atual e qual papel precisamos assumir nesse processo.
O antirracismo não pode ser um lugar que você visita quando lhe convém, em que você pode ser apenas solidário ou continuar usando dos seus privilégios. Enquanto existir racismo, o antirracismo é uma postura política necessária em todos os espaços que ocupamos, em todas as relações.
Nesse sentido, o autossilenciamento que muitos brancos recorrem nas lutas negras, ao se omitir ou se desresponsabilizar do debate, muitas das vezes utilizando-se equivocadamente do conceito “lugar de fala”, em nada contribui para luta antirracista, só ajuda na manutenção dos seus privilégios. O silêncio faz parte do dispositivo do racismo brasileiro, assim também nos ensinou Kabengele Munanga.
Passou da hora de vocês pararem de se apoiar no falso álibi da falta de formação na temática e desconhecimento. Vivemos em uma sociedade racista e nossa postura deve ser de superar as práticas cristalizadas que se apóiam no “sempre foi assim”.
Romper com a lógica racializada no qual estamos todos inseridos, que estrutura as relações desiguais alicerçadas na injustiça, amplia o repertório de direitos para dignidade humana, combate as lógicas de privilégios através da conscientização em prol de outro projeto de mundo para toda sociedade. Para tanto, faz-se necessário um resgate histórico, político, social, cultural e educacional dos fundamentos dos epistemicídios no Brasil. Quando vocês, brancas(os), assumiram também essa tarefa?
Referência:
CARNEIRO. Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em educação). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: <https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf>. Acesso em 14 de jun. de 2020.
MUNANGA, Kabengele. As facetas de um racismo silenciado. In: SCWARCZ, Lilia. QUEIROZ, Renato da Silva (Org). Raça e Diversidade. São Paulo: Edusp, 1996. p. 13.
Imagem destacada – Andrea Piacquadio no Pexels