Eu vou escrever sem nome e sobrenome como um protesto silencioso, mas não somente. Também acredito que ser esquecida é ser lembrada, pelo menos um pouquinho, como cada uma de nós. É meu jeito de inscrever a minha existência na coletividade. De dizer – ei, eu existo mas eu não existiria sem você.
E por eu ser uma mulher preta duas vezes, como filha de dois continentes, a marca indelével do racismo me perseguiu durante toda a vida. Eu quase morri ao nascer. Eu quase morri de fome quando minha mãe não tinha o que comer. Eu morri cada vez que ela sofreu violência hospitalar. Eu morri quando a vida perdeu a cor. Morri uma miríade de vezes a cada minuto em que desejei não mais viver.
Com cada emprego dos sonhos que não puder ter. Com cada quadro que desisti de pintar… Com a certeza de que nada na minha estória vai para um lattes. Toda vez que tentam me convencer que aquele mestrado é uma loucura, que eu deveria desistir de estar ali, naquela faculdade.
Mas se pudesse falar sobre a minha primeira experiência de morte em vida… Lembraria com detalhes quando uma menina cuspiu na minha testa, ali no parquinho. Talvez porque seja exatamente assim que o racismo funcione. Ele quer nos matar bem no coração. Aquela menina sabia o que estava fazendo afinal: o meu coração bate na cabeça.
Eu lembro…
Lembrar, esse verbo que pode ser um gatilho para muitos, assim como tem se tornado para mim. Agora que vou me encaminhando para a segunda metade da vida e sou acometida pela… Falta de memória. Rá!!!
O que aconteceu com a minha mãe e acontece com muitas, agora acontece comigo. Lembro de uma vez quando ela me disse que não conseguia mais aprender. Que sentia que sua cabeça não era mais a mesma. Que não conseguia lembrar… E eu senti aquela queixa tão pequena, como assim não consegue ler um livro inteiro? Não consegue prestar atenção num filme? Foi exatamente assim que começou para mim… Os primeiros a me escapar foram os livros.
E agora, tenho medo de esquecer, por causa do luxo de um falso poder que me fez acreditar que poderia mudar o mundo e do transtorno afetivo bipolar, este que me faz esquecer. Desafios que trazem para o meu cotidiano e das pessoas que estão à minha volta o desafio de lembrar.
Meu deus, não é fácil. Requer o entendimento de que nem todos conseguimos lembrar.
Demanda abandonar um ponto de partida capacitista.
Nós que aqui estamos, por outro lado, temos de aprender a viver de outra maneira. Confesso que ainda não sei como fazer isso. Calendários, alarmes, post its, tudo. O que me demanda ler cada um dos livros que insistentemente grifei na última década como se fosse a primeira vez. O que me obriga a me repensar e a entender o que eu mesma escrevi… Hoje, minha vida é lembrar. Mas como?
Há alguns anos trabalho com memória, sem nem saber o que era isso. Não sabia que estava registrando memórias num caderninho de anotações. Para mim essa era uma questão pessoal, tão somente. Eu havia esquecido…
Então eu vi uma palestra das Blogueiras Negras sobre tecnologia em que falaram sobre os cabos submarinos que são na realidade a internet. E percebi como esse mapa antagoniza com aquele da diáspora africana e do tráfico de escravos. Por onde passaram milhões de pessoas, hoje não passam mais os cabos.
Mapa dos cabos submarinos por jansenart.
Mapa do tráfico negreiro por Slave Voyages.
O nome disso talvez seja o esquecimento como uma política de morte. Uma insistência política e tecdnológica de nos fazer esquecer quem somos. E que vai se instalando em nosso cotidiano como se esquecer fosse… Algo que acontece de forma casual. Como se fosse um fenômeno espontâneo toda a nossa informação passar pelos Estados Unidos… Como se fosse necessário interromper o fluxo de ideias e informações entre determinados pontos do globo.
Ora, sabemos que essses cabos não nos ligam às diversas áfricas para que não tenhamos soberania, como foi explicado nessa oficina.
Em outras palavras, zero informações…
Ainda assim, eu retornei até lá. Retornamos. Cada vez que rodeamos a eira, estamos voltando em direção à ancestralidade. Estamos viajando no tempo e no espaço. Acredito que seja assim em cada uma das nações afrobrasileiras, onde comemos as nossas comidas, cantamos os nossos cântigos, usamos as nossas roupas e ouvimos encantos que vem de muito longe…
Aqueles que venceram léguas…
Como canta com tanta beleza a grande senhora do Codó, Dona Tereza Légua Boji Buá da Assucena Trindade, no ori da venerável Onontochê Sandra de Xadantã. Aquela que construiu a casa para onde nós, aqueles que quase esquecemos, podemos renascer e assim voltar para lembrar. Aquela que com grande generosidade me faz viver o que Beatriz Nascimento, aquela que também me acompanha na minha jornada de pensar, escreveu.
Mas porque estou falando disso meu deus? Não me obriguem a ser objetiva e racional, essa não sou eu. Mas acreditem eu vou chegar lá. Um pouco de paciência.
Se você já teve a grande honra de ouvir Dona Tereza contar estórias e explicar o que é um quilombo ou explicar o que é identidade… Se leu Beatriz Nascimento, Sueli Carneiro e Muniz Sodré sabe que é nessa hora que é oportuno dizer… Que não existem cabos entre os dois continentes de meu nascimento mas retornei, retornamos… Légua por légua.
Através da rede que é formada no espaço e no tempo por nossos oris. Aquilo que eu chamava de triangulação há alguns anos sem entender o que estava dizendo!!! E isso eu também não lembrava. Será que eu já pensei isso antes, não lembro… Será que eu queria dizer – ei, eu existo mas eu não existiria sem você?
Mas, o que eu queria dizer é que…
A internet deles é feita de cabos submarinos. A nossa rede é a ancestralidade. Que tenhamos sabedoria e possamos respeitar os mais velhos, eles tem nome e sobrenome.
Eles se conectam usando computadores. Nós nos conectamos quando comemos e dançamos juntas. É isso que faz funcionar a nossa máquina, o nosso ori.
Eles nos marcam com ferro e com números de ips. Nos nos geolocalizamos através de nossas mentes. E recriamos em nossos terreiros um continente inteiro.
Eles querem que a gente ache que não conseguimos lembrar meras senhas. E nos lembramos de Nã Agontime.
Sua política secular de extermínio é nós fazer esquecer. A nossa liberdade é aquela de lembrar. E lembramos com nosso e de corpo inteiro. Política, espistemológica, afetiva, artística e cultural e… Tecnologicamente.
Nós não cabemos na internet, ela nos violenta justamente porque cada uma de nós pode sem qualquer cabo submarino retornar, agora mesmo. Quem você é na realidade está inscrito em seu corpo, em seus olhares, no seu jeito de andar e de falar. Só precisamos retornar à nós mesmas. O Dahomey também é aqui.
Afinal a memória é a nossa autonomia. E a autonomia é a nossa memória.
O oceano para nós não é uma barreira intransponível, pois somos um oceano inteiro.
Atlânticas, marianas, medusas do mar…
Que não nos esqueçamos, somos livres.