Mãe preta, cuidadora, mulata, foi este o lugar social que a história colonial tentou nos atribuir. A base da pirâmide social, o seguimento mais pauperizado da sociedade brasileira, o grupo social mais violentado deste país, é este o destino que o capitalismo patriarcal racista tenta nos empurrar. Mas somos filhas de Dandara, Acotirene, Luiza Mahin e Maria Felipa, continuidade de Lélia Gonzalez, Maria Beatriz Nascimento, Luiza Barros e Marta Almeida, mulheres negras forjadas na luta, que rompem com o medo e, há séculos, quebram as correntes impostas pela colonização.
No sistema colonial, mulheres negras resistiam, construíam estratégias de sobrevivência e promoviam revoltas junto aos homens negros. À frente dos quilombos, elas organizavam a vida, a sociedade independente, defendiam o território e partiam para a luta armada, quando necessário. Nos territórios, construíam estratégias de sobrevivência, cuidavam-se entre si, se organizavam e compravam a alforria das mais jovens, evitando que as futuras gerações das famílias seguissem sendo escravizadas. Nas casas-grandes, envenenavam os senhores com suas misturas e saberes ancestrais. Das fazendas dos senhores, faziam fogo, destruindo a propriedade construída a suor, sangue e morte de pessoas escravizadas.
Esse Brasil tem muito de mulher negra, sua potência, intelectualidade e saberes ancestrais construíram esse país. Com suas histórias, a culinária, seus cânticos, sua religião e suas danças, a mulher negra contribuiu para a construção do que chamamos de cultura afro-brasileira. Com sua forma de comunicar, a troca do L pelo R produziu o que Lélia Gonzalez chamou de pretuguês. Nós, brasileiros, somos filhos das mães pretas que viveram os horrores da escravidão, mas que marcaram profundamente a nossa formação socio-histórica e cultural.
Junto dos homens negros, mulheres negras foram responsáveis pelo que Clóvis Moura chamou de desgaste permanente do sistema escravagista. A falsa, ou inconclusa, abolição só foi possível pela insurgência de mulheres e homens negros. Mesmo após essa falsa abolição, mulheres negras seguiram em movimento, já que a liberdade acontecia no papel, mas, na vida real, elas retornaram às casas-grandes, às cozinhas, lavanderias e demais trabalhos degradantes para garantir a subsistência dos seus. Ainda era tempo de lutar.
Na Frente Negra Brasileira, no Teatro Experimental do Negro, na construção do Movimento Negro contra a discriminação racial, que mais tarde se tornaria o Movimento Negro Unificado, as mulheres negras foram força presente. Na luta pela reforma sanitária, na construção do Sistema Único de Saúde, no movimento de favelas, na luta pela reforma psiquiátrica (viva, dona Ivone Lara), as mulheres negras se fizeram presentes. Como nos conta nossa mais velha, Sueli Carneiro, no movimento de mulheres, na luta feminista, foram as responsáveis por racializar o debate e desconstruir a figura da mulher branca como representação universal de mulheridade. No Movimento Negro Unificado, levaram a particularidade da mulher negra, dando luz às suas próprias demandas no interior de um movimento que, sim, ainda era bastante machista. No Brasil, a luta é companheira da mulher negra desde o seu nascimento.
Como seguimento específico, as mulheres negras se organizam a partir da década de 1970 e 1980. Juntas, construíram os coletivos Luiza Mahin, Alqualtune, o Grupo de Mulheres Negras do Rio de Janeiro, o Nzinga, construíram o primeiro Encontro de Mulheres de Favelas e Periferias, participaram como seguimento organizado do II Encontro Feminista da América Latina e do Caribe e demonstraram o racismo presente no interior do movimento feminista.

Em 2011, durante a realização do Fórum Afro XXI, nasceu a proposta de se organizar uma marcha de mulheres negras em Brasília. Foram dois anos de mobilizações (2013-2015), realização de debates, oficinas, passeatas, eventos formativos, articulação no território regional, nacional e internacional e, em 18 de novembro de 2015, mulheres de todas as regiões do Brasil ocuparam Brasília. Mulheres negras, cisgênero, transexuais, travestis, mulheres lésbicas, bissexuais, quilombolas, do campo e da cidade, mulheres ribeirinhas e em situação de rua formaram um só corpo, na busca pelo “Direito à vida, à liberdade, promoção da igualdade racial, direito ao trabalho, ao emprego e à proteção das trabalhadoras negras em todas as atividades, direito à terra, território e moradia, direito à cidade, justiça ambiental, defesa dos bens comuns e à não mercantilização da vida, direito à Seguridade Social, direito à educação, direito à justiça, direito à cultura, informação e comunicação, segurança pública”. Ocupadas na capital do país, foram recebidas pela então presidenta Dilma Rousseff, que reafirmou compromisso com o combate ao racismo, contra a violência e pelos direitos e oportunidades às mulheres negras.
Desde 2015, dez anos se passaram. As mulheres negras seguem vulnerabilizadas, os índices de violência doméstica e feminicídio contra mulheres negras cresceram, a precariedade nas relações de trabalho e em nossas condições de vida segue crescendo. Mas uma coisa mudou: estamos mais fortalecidas na luta, o debate da mulher negra está em pauta na sociedade civil, nos espaços acadêmicos, de militância e nas políticas públicas, e a relação indissociável de gênero e raça está mais nítida nos debates. A mulher negra foi e é protagonista no aprofundamento, radicalização e qualificação das discussões na área das relações étnico-raciais e de gênero.

Estamos em 2025, e dia 25 de novembro estaremos juntas, irmanadas em uma nova marcha. Mulheres, meninas, quilombolas, ribeirinhas, mulheres do campo e da cidade, trabalhadoras, artistas, mães, nossas mais jovens e também as mais velhas, ocupando Brasília contra o racismo e pelo bem viver.
A Marcha das Mulheres Negras 2025 está sendo organizada de norte a sul do Brasil, em todos os 27 estados da federação, através dos comitês impulsionadores estaduais, municipais e regionais, mobilizados por mulheres negras, integrantes de organizações, grupos comunitários ou militantes independentes.
Em 2025, estaremos em marcha por reparação e pelo bem viver, na busca por condições dignas de vida, trabalho e autonomia, direitos e oportunidades, o acesso igualitário à saúde, educação, moradia e bem-estar, o combate ao racismo, machismo e à misoginia que atinge de modo mais profundo os corpos das mulheres negras, a busca pelo empoderamento e voz, para que as mulheres negras falem e sejam ouvidas, tecnologia e futuro digital, para que nossos saberes ocupem espaços e nossa intelectualidade seja reconhecida, autonomia econômica e geração de renda, na busca por nossa autonomia econômica, e educação quilombola e saberes tradicionais, pela valorização dos saberes ancestrais e da agricultura.
Se, em 2015, levamos cem mil mulheres à Brasília, em 2025 aspiramos ocupar a capital com um milhão de mulheres irmanadas pela luta, na busca pelo bem viver e pela reparação. Se, em 2015, fizemos barulho, em 2025 faremos história.
A dor não pode e não será o único caminho possível para as mulheres negras, não estamos e não estaremos condenadas à opressão de gênero e raça, não sucumbiremos. A mulher negra quer viver, a mulher negra quer bem viver.
Bem viver, uma forma alternativa de sociabilidade, em contraposição ao capitalismo racista patriarcal. Uma sociabilidade onde as lutas feministas e antirracistas estejam no centro, onde os saberes ancestrais e a valorização das matas e dos animais sejam a prioridade. Uma nova forma de viver, que difere do modo de socialidade que a colonização nos ensinou. A mulher negra quer viver, quer gozar da vida boa para si e para os seus, quer o fim do genocídio contra a juventude negra, quer condições dignas de vida e de trabalho, quer o respeito a si e à sua existência enquanto mulher negra.
Em busca de vida, estaremos em marcha no dia 25 de novembro de 2025 e convidamos todas as irmãs, mulheres negras, indígenas, as amefricanas e ameríndias a se somarem, porque mulheres negras se fortalecem e se unificam em bando.
A mulher negra quer viver.
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Autoria: Samara Santos
Desgner: Helida Costa
Edição: Wellington Silva
Desenvolvimento: Will Lopes
Este conteúdo integra o projeto Narrativas em Marcha, Comunicando o Futuro, realizado por meio do Edital Nilma Bentes, do Fundo FASE, e com o apoio do Grupo Mãe Andresa. Saiba mais em blogueirasnegras.org/narrativas-em-marcha-comunicando-o-futuro.
