O feminismo branco não abandona os hábitos aristocráticos e racistas. Há feministas brancas abertas ao diálogo com as pautas que envolvem mulheres negras, entretanto as mesmas tem um limite de atuação que não ultrapassa a linha do pacto narcísico da branquitude, então não irão confrontar as irmãs brancas, serão sempre cordiais, por mais que discordem. No livro Ain’t I Woman: Black Women and feminism (1981) bell hooks faz importantes reflexões, uma delas é o fato de que em dado momento da história americana as mulheres brancas discursivamente se igualaram aos negros para dizer que também eram oprimidas e também houve o momento em que as mesmas se indignaram pelo fato dos homens brancos não terem estabelecido com elas uma solidariedade racial quando “forneceram” aos homens negros o direito ao sufrágio. No contexto brasileiro pouco sem tem informações/ registros sobre estes conflitos ligados ao voto, entretanto quando se ver as fotografias que registram o momento histórico do direito ao voto feminino de 1932 pode ser visto homens brancos, mas não se ver mulheres negras.
Outra questão levantada por hooks e que vejo ser reproduzido até hoje e também no contexto brasileiro é o fato de quando se fala de minorias sociais a partir das categorias “mulheres, negros, etc”, o modo como é empregada a categoria “mulheres” deixa a entender que se refere apenas as mulheres brancas e a categoria “negro” apenas aos homens negros, onde ficam as mulheres negras referenciadas neste discurso? Se ver certas exigências do feminismo acerca da linguagem configurada em torno do masculino, sabem bem estas mulheres, as brancas, que a linguagem tem o poder enorme de criar imaginários individuais e coletivos.
Li recentemente a entrevista “A história contada no corpo – Mulheres: Ontem, Hoje e Amanhã” publicado no site da Natura cuja entrevistada foi a teórica feminista Mary Del Priore, organizadora do livro “História das mulheres no Brasil”. Não tomei grandes sustos com a entrevista, pois atendeu minhas expectativas e manifestou aquela velha universalidade branca que se impõem como representativa de todas as outras universalidades. Na entrevista, após ter mencionado acerca da nudez das “índias brasileiras” como algo derivado de sua pobreza, Mary expressa o seguinte:
Império, a mulher combina despojamento e falta de vaidade com a chegada de produtos de perfumaria importados da Europa. Embora fosse proibida de olhar no espelho e até na água do banho para não alimentar vaidades, ela começa a se perfumar, a passar pós de arroz e a cuidar da silhueta usando corset.
É percebível que a mulher a qual Mary se refere não abrange todas as mulheres. A categoria ‘mulheres’ deveriam contemplar todas nós ao ser usada, mas o domínio da branquitude sobre as teorias feministas possibilitou que por anos o termo fosse mais uma estratégia de universalidade de uma experiência hegemônica sobre as demais, embora mulheres brancas sejam também pertencente as minorias sociais, alvo da nossa estrutural social sexista, devemos pensá-las também como forte contribuidoras da manutenção do domínio simbólico da branquitude. As teorias feministas das mulheres negras ainda não chegam (não deixam chegar) nas universidades, aliás grande parte das produções intelectuais dos sujeitos negros não ganham espaços, e quando estudantes e pesquisadoras(es) negras(os) manifestam estas ausências uma surdez simbólica surge e o questionamento acerca da invisibilidade é visto como um desrespeito aos anos de estudo do(a) professor(a) branco(a) vividos para se tornar especialista em gênero. E quem ousar falar de colonialidade de gênero e perspectivas descoloniais provoca aquele desconforto “quase” racista disfarçado de “somos todos humanos”. Caso alguns resolvam sugerir intelectuais negras(os) do Brasil ou de outros países da América Latina para compor a ementa curricular recebem certa deslegitimação teórica mesmo que quem o deslegitima nem tenha lido uma linha do que foi escrito pelas(os) intelectuais negras(os). Parece que passaram muito pó de arroz no feminismo branco acadêmico que não conseguem enxergar o quanto seus discursos que são legitimados por instâncias de poder como a academia não permite um avanço positivo para se discutir as universalidades femininas do Brasil.
Mary não consegue explicar os corpos cujo pó de arroz nunca fez parte de sua trajetória sócio- histórica e nem ao menos cita a palavra “branquitude” mesmo quando diz que a moda feminina durante o período Brasil-Colônia era ter a pele alva, estilo família Adams, por isto o uso excessivo do pó. E mesmo diante de perguntas que permitissem uma reflexão mais ampla do ser mulher como “Qual contribuição do carnaval na nossa relação com o corpo?” e “A relação de cada mulher com o corpo varia muito. Que fatores influenciam nesta relação?” o olhar reduzido e alvo como a neve que caem nos solos europeus não possibilitou compreender que o gênero feminino não é um privilégio da branquitude e que a condição de gênero da mulher negra vem sendo confiscada discursivamente.
No final da entrevista ao ser perguntada sobre as “novas gerações de mulheres”, Mary fala de escuta e diálogo graças à internet e comete o equivoco de expressar sobre a diversidade étnica e não falar da racial (Desde de quando a branquitude respeita a diversidade étnica? O genocídio indígena é um grande exemplo disto), aliás o termo “étnico” e “racial” não expressam a mesma coisa, entretanto a intenção hegemônica é convencer que estes termos sejam sinônimos, dê uma olhada em qualquer dicionário e veja lá o significado. Longe de ser um ato do “politicamente correto” esta preferência se dá pela dificuldade que a sociedade em geral tem em entender que nosso país é racista. Minha etnia é brasileira, minha identidade racial é negra e escrevo este texto em língua portuguesa do Brasil. Caras pessoas brancas, somos da mesma etnia que foi esculpida pela violência contra outras tantas etnias na época da colonização, eu sou da mesma etnia que vocês, sinto muito em dizer.
As realidades das mulheres brasileiras maquiadas pelo pó de arroz do feminismo branco ainda impossibilita-nos a dá longos passos rumo a mudança social, entretanto muitas mulheres negras expressam aquilo que mulheres brancas tem dificuldade de ouvir. O descaso com outras universalidades que compõem outros femininos e também outros feminismos,demonstra que mulheres brancas preferem ondas ao invés de tsunamis… pois sabem que tsunamis também destrói a hegemonia da branquitude.
Imagem de destaque – Everyday Feminism