Esse foi um dos comentários de Tereza (nome fictício), ao buscar a resposta a uma das questões do questionário que lhe fazia. Muitas lembranças de uma história dos tempos de liberdade eram revisitadas, quando ainda era artesã nas ruas da Zona Norte, perto daquela que seria sua morada pelos próximos 30 anos em que cumpre sua pena por latrocínio.
“Na cadeia, perdemos a nossa história, garota. Eu era artista, artesã. Quando você me perguntou sobre a aula de educação artística, me lembrei do quanto gostava de fazer meus artesanatos. Mas aqui, não importa muito o que você sabe fazer”, desabafa Tereza.
Diante das revelações desta mulher negra, forte e sorridente (muito parecida com outras mulheres de minha vida), procurava afastar do meu rosto qualquer expressão de julgamento, abaixava a cabeça a cada pergunta respondida, buscando assinalar a opção correta no papel. Ao mesmo tempo, escarafunchava os arquivos do meu cérebro atrás do significado da palavra latrocínio.
Segundos depois: latrocínio, roubo seguido de morte – minha memória raramente me deixava na mão. Sobre a morada de Tereza? Estamos falando da Penitenciária Feminina de Sant’ana.
Ao lado de outros/as entrevistadores/as, no início do mês de abril, tive a oportunidade de entrar na maior penitenciária da América Latina (com 2.712 mulheres presas), o que foi possível a partir da determinação do Tribunal de Justiça de São Paulo, que diante de um processo iniciado em 2012, autorizou o Grupo Educação nas Prisões¹ a atualizar o levantamento feito em 2011, pela ONG Ação Educativa nesta unidade.
Tal pesquisa constatou há três anos que para 40% das mulheres que não estudavam na penitenciária, a falta de tempo durante o dia foi apontada como o principal motivo para não irem à escola e grande parte do problema estava na coincidência de horários das aulas e do trabalho.
Dessa maneira, como parte de um processo que reivindica a oferta de ensino fundamental e médio no período noturno e na modalidade educação de jovens e adultos às mulheres desta unidade, aplicamos um questionário a 130 detentas, por três dias.
As preocupações começaram logo após a decisão do juiz da primeira vara da Fazenda Pública de São Paulo, ainda em fevereiro. Afinal, apesar de morar nas imediações de um complexo prisional e, muitas vezes, presenciar familiares carregando imensas sacolas com o “jumbo” todos os finais de semana e em alguns feriados, nunca tinha entrado em um presídio.
A hora da revista
As coordenadoras de equipe nos passaram inúmeras recomendações sobre vestimenta: “Sutiã sem arame metálico”; “roupas decotadas, shorts e camisas sem mangas não são autorizadas”; “camisa branca e calça bege ou amarela são as cores dos uniformes das detentas, portanto, não as utilizem”; “fiquem atentos a roupas com cores extravagantes”. Diante das recomendações e à frente do meu guarda-roupa, foi realmente difícil definir qual seria a melhor forma de me vestir. Em todo o processo, não pude deixar de pensar em como seria possível fazer uma rebelião com o suporte metálico do meu sutiã. Apesar de seguir todas as orientações, confesso que fiquei apreensiva na hora da revista. Não dá para saber o que se passa na cabeça dos agentes prisionais. Ouvimos tantas histórias…
Apesar da apreensão, passei na primeira tentativa pelo detector de metais e pela revista da agente. A inspeção que enfrentamos foi bem tranquila, muito parecida com as que estamos habituados nos aeroportos ou em shows de bandas internacionais. Outros/as colegas, no entanto, não tiveram a mesma sorte. Alguns tiveram que tirar cinto, tênis e outros objetos antes de entrar.
Do lado de lá
Como o esperado para um prédio inaugurado em 1920, a Penitenciária Feminina de Sant’ana é imponente, as colunas e os portões são enormes e os pavilhões grandiosos. Na entrada, tudo muito arborizado, realmente impressionante.
Passei por alguns caminhões, conversando com uma das funcionárias, que me contava gentilmente como era a rotina das ‘meninas’: “tudo aqui é feito por elas, que se dividem entre os trabalhos nas oficinas e na organização e manutenção do prédio.”, comentava.
As entrevistas foram realizadas em uma das salas de aula e o caminho até lá foi marcado por semelhanças. Desde a menina vestida de branco, com touca e galochas da mesma cor, até a moça que me deu “bom dia”, ao passar por nós carregando pesados sacos de lixo. Todos esses rostos assim como os de Tereza traziam a negritude estampada em suas feições. Foram poucas as mulheres brancas que vi nesse trajeto.
A primeira entrevistada foi a jovem Aline (nome fictício), negra reluzente, que segredou após uma gargalhada que estava na cadeia porque não tinha ouvido a mãe e gostava da farra. Ano de nascimento 1992. Ela sequer sabia qual era sua sentença.
Antes de Tereza conversei com uma mulher de 51 anos. Estava encerrando sua condenação e dizia manter sua família em Recife com o “trampo” que dava na cadeia. Relatou que gostaria de estudar, mas não poderia deixar de trabalhar.
A mais retinta de todas as ‘meninas’ que entrevistei era analfabeta, tinha um pouco mais de 30 anos de pena, sairia de lá – pelas suas contas – com quase 60. Comentou que gostaria de estudar para fazer “quem sabe” psicologia, já que “estar presa não era o mesmo que morrer”.
E todas essas impressões e semelhanças não eram simples coincidência. Em relação ao pertencimento étnico-racial, as mulheres negras (pretas + pardas) representam 56% das internas da Penitenciária Feminina de Sant’ana, enquanto as brancas são 38%; realidade que não segue tão distante da apurada para o total da população carcerária feminina do Estado, na qual as mulheres negras representam 44% e as brancas, 40%, segundo dados de 2010 do Ministério da Justiça, retirados do levantamento feito em 2011 pela Ação Educativa.
O mais assustador é pensar no quão seletivo é o sistema prisional no Estado de São Paulo: se considerarmos todas as mulheres – presas e não presas – do estado teremos 32,9% de negras e 65,5% de brancas (IBGE/PNAD, 2009). Ou seja, somos minoria no conjunto da população paulista. Isso não se repete quando tratamos da população encarcerada, a proporção de mulheres negras presas é 11% superior à representação desse grupo na totalidade das mulheres paulistas.
Em entrevista, a socióloga Edneia Gonçalves chama atenção para as diferenças existentes nesse grupo de mulheres negras. A partir de sua experiência no levantamento e análise dos dados da segunda etapa da pesquisa intitulada “Educação nas Prisões: estratégias para implementação em São Paulo”, lançada em dezembro de 2013, Edneia relata que pode perceber que os tipos de regime – fechado, semiaberto e provisório – aliado à faixa etária dão conta de narrativas muito distintas destas mulheres negras encarceradas.
“Quando você fala da Penitenciária Feminina de Sant’ana, onde o regime é fechado, encontramos índices consideráveis de mulheres com idade avançada, já julgadas, cujo envolvimento com o crime se dá mais tardiamente em função de muitas histórias dentro de histórias. Geralmente, abarcando intensos processos de vitimização ligados a história de vida de parceiros e filhos, seguidas por situações de abandono. Essas mulheres possuem penas altas, sobretudo por conta do tráfico de drogas. Já as mais novas, que representam a maioria nos Centros de Detenção Provisória, possuem narrativas que podemos definir como mais empoderadas, nas quais se destacam a relação precoce com as drogas, violação no direito à educação, passagens anteriores pela Fundação CASA [Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente] e trajetórias marcadas pelas disputas por espaços de poder inclusive com os homens, o que acaba por resultar em extremas situações de violência”, salienta.
Privadas APENAS do direito de liberdade
Em tempos de recrudescimento da segurança pública, defender os direitos da população encarcerada representa enfrentar forte resistência de setores conservadores da sociedade. Porém, ao contrário daqueles que defendem um modelo prisional que nega direitos e atua na lógica da vingança e da punição dos/as presos/as, a Constituição de 1988 prevê expressamente, em seu artigo 205, que a educação é um “direito de todos e dever do Estado”.
É importante ressaltar que homens e mulheres em espaços de privação de liberdade devem ter assegurados todos os seus direitos, como educação, saúde, assistência jurídica, trabalho, entre outros não atingidos pela perda do direito de ir e vir.
Quando o assunto são homens e mulheres em espaços de privação de liberdade, temos também respaldo no direito internacional, que descreve esta questão nas Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos (1957), nas Regras Mínimas das Nações Unidas para Administração da Justiça para os Menores (1985) e nos Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos (1990).
Em 2010, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Nacionais para Educação nas Prisões, documento homologado pelo Ministério da Educação que determina a vinculação da educação nas prisões às redes públicas de ensino, responsabilizando as secretarias estaduais de educação sua oferta e garantia de acesso e permanência.
Além disso, a Lei 12.433, sancionada em 29 de junho de 2011, que altera a Lei de Execução Penal, estabelece a remição de um dia de pena para cada 12 horas de frequência escolar. O tempo a ser descontado será acrescido de 1/3 do total em caso de conclusão de ensino fundamental, médio ou superior.
No entanto, apesar de todas estas resoluções, apenas 12% das mulheres na Penitenciária Feminina de Sant’ana estudam. Situação que reproduz a mesma lógica de exclusão e os percursos de violações de direitos que a população negra já está habituada fora do sistema penitenciário.
Garantir a oferta de ensino noturno, com profissionais habilitados, em espaços adequados, considerando as especificidades da população prisional é um dever do estado. No último dia 17 de abril, o Grupo Educação nas Prisões entregou os primeiros dados do levantamento realizado no início do mês, que reafirmou a demanda e o desejo de 96,6% da detentas em estudar.
O juiz da primeira vara da Fazenda Pública de São Paulo também determinou – para auxiliar na tomada de decisão do TJ-SP – que o Governo do Estado de São Paulo traga informações sobre as condições de estrutura de funcionamento da penitenciária de Sant’ana e da penitenciária feminina da Capital. Nesta última, há oferta de educação no período noturno, o que justifica a comparação.
Assim, o juiz solicitou informações sobre as diferenças entre as unidades, como o número de presas de cada instituição, bem como seu perfil (nacionalidade e crime cometido); informações sobre ocorrências graves de disciplina em ambas as unidades; a viabilidade ou não de oferecimento de serviço educacional aos sábados e alternativas para aumentar o acesso das presas da Penitenciária Feminina de Sant´Ana ao ensino.
1Grupo Educação nas Prisões – composto por Defensoria Pública de São Paulo, Ação Educativa, Conectas Direitos Humanos, Instituto Práxis, Instituto Terra Trabalho e Cidadania – ITTC e Pastoral Carcerária