Eu não sou seu negro (James Baldwin)
Em tempos em que o silêncio sufocante tratado pela escritora Audre Lord, não só pode nos sufocar como poderá nos matar, estamos cada vez mais doentes ensimesmados, James Baldwin um dos grandes intelectuais do século XX e ativista negro norte americano nunca foi tão atual. Diante a crescente do conservadorismo mundial, de marchas de simpatizantes nazistas, de um autoritarismo disfarçado de pequeno poder que se estabelece em todas as relações, nas ações policiais, no mal tratamento dos serviços públicos aos pobres brasileiros, da merenda que é regulada na escolas paulistanas e de toda a insanidade que assistimos em meio a nossa vida nervosa, os nervos da sobrevivência perante a humilhação moral. As coisas só mudam quando a confrontamos.
Esta é grande lição deixada por Baldwin, poeta e crítico social afro americano, nascido em Nova York em 1924 tem nos romances suas críticas centrais acerca das diversas opressões daquele momento histórico, da luta por direitos civis nos Estados Unidos na década de 60. Baldwin, como a maioria dos negros e negras do mundo possuí uma história de luta permeada pelo sofrimento iniciado desde infância mencionado na carta que escreveu à Angela Davis na prisão e que foi gentilmente traduzida pela primeira vez em português
“O triunfo americano – no qual sempre esteve implícita a tragédia americana – estava em fazer as pessoas negras desprezarem a si mesmas. Quando eu era pequeno, eu desprezava a mim mesmo; não sabia fazer melhor. E isso significava, embora inconscientemente, ou contra minha vontade, ou com grande dor, que eu também desprezava meu pai. E minha mãe. E meus irmãos. E minhas irmãs.
Quando eu estava crescendo, as pessoas negras estavam se matando umas às outras todas noites de sábado na avenida Lenox; e ninguém explicou a elas, ou a mim, que era intencional que elas assim agissem; que elas estavam cercadas onde estavam, como animais, para que não considerassem a si mesmas mais do que animais. Tudo sustentava esse sentido de realidade, nada o negava: e assim, quando chegava a hora de ir trabalhar, uma pessoa já estava pronta para ser tratada como um escravo.” Carta traduzida por Cassiano Terra Rodrigues na página da Correio da Cidadania consultada a 25.08.2017
O documentário EU NÃO SOU SEU NEGRO, que pretende ser uma biografia de Baldwin, relatando através de sua escrita e dos gestos irónicos que transparecem uma doçura e um bravio, intencionou mostrar as dificuldades do seu livro inacabado Remember this house, que seria uma história da América através das vidas de Martin Luther King, Jr. (1929-1968), o ativista dos direitos civis Medgar Evers (1925-1963), e Malcolm X (1925-1965), amigos de Baldwin, assassinados antes de completar 40 anos. O documentário é daqueles que nos deixa inquietante e com vergonha de viver em uma sociedade onde pessoas se auto destroem em nome de uma ojeriza ao outro, o diferente. Como dizia Fanon (2008: 181 – 191)
Se para mim, a um certo momento, colocou-se a necessidade de ser efetivamente solidário com um determinado passado, fi-lo na medida em que me comprometi comigo mesmo e com meu próximo em um combate com todo o meu ser, com toda a minha força, para que nunca mais existam povos oprimidos na terra. (…)A desgraça do homem de cor é ter sido escravizado. A desgraça e a desumanidade do branco consistem em ter matado o homem em algum lugar. Consiste, ainda hoje, em organizar racionalmente essa desumanização. Mas, eu, homem de cor, na medida em que me é possível existir absolutamente, não tenho o direito de me enquadrar em um mundo de reparações retroativas. Eu, homem de cor, só quero uma coisa:
Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre. O preto não é. Não mais do que o branco. Todos os dois têm de se afastar das vozes desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica comunicação.
A dispersão geográfica dos negros, no caso estadunidense, se deu pelo terror, terror tamanho, que retratado, causa dor ainda hoje. A maior vergonha da América, o seu histórico escravista, mantém-se na negação dos direitos civis à comunidade negra. No caso brasileiro, os negros não foram integrados ao Brasil que se construía no pós-escravidão, logo sua exclusão é própria e constitutiva daquele capitalismo colonial e perpassado de uma geração a outra. O documentário nos trouxe a realidade atemporal ao mostrar que nossas memórias e dores não empalidecem com o tempo, mesmo dentro de uma democracia fingida que garante legalmente uma suposta aceitação, sabemos que os nossos continuam morrendo e só descansam quando a batalha se encerra com nosso decesso. Buscamos o Poder Negro, aquele mencionado por Stokely & Hamilton (1967: 6) que consideramos a força do “Terceiro Mundo”, ou seja, a nossa luta estreitamente relacionada com as lutas de libertação em todo o mundo.
O diretor Raoul Peck, um negro haitiano, é um homem que atravessou seu tempo que dialoga com a história não com o cultismo ao passado, mas sim com as marcas deixadas para relacionarmos a situação do mundo atual. Também diretor do esperado filme “O Jovem Marx” Peck diferentemente da esquerda atual, relaciona a questão de classe e mostra como o capitalismo cumpre perfeitamente sua forma constitutiva de nos dividir cada vez mais e afirma que a “raça é apenas uma emanação do capitalismo” em ambos filmes o peso do capitalismo ainda se faz presente nas diversas opressões e análises, tanto a realizada por Marx como por Baldwin (PECK, 2017). Bastante mencionado nos últimos anos Peck coloca seu nome como cineasta abaixo das ideias que os seus filmes pretendem evidenciar. Todas as nossas escolhas são políticas e mesmo àqueles que se refugiam em sua branquitude privilegiada e socialmente construída em detrimento do outro, estão a consentir para a perpetuação da desigualdade, a física quântica avançou muito, mas tal ciência ainda não permite que ocupemos dois lugares no espaço, logo, os que se calam diante as atrocidades diárias também são responsáveis. Como declarou Baldwin à Angela o nosso compromisso com os nossos neste mundo “Se sabemos, então temos de lutar pela tua vida como se fosse a nossa – e ela é – e com nossos próprios corpos tornar intransponível o corredor para a câmara de gás. Pois, se vierem para te buscar de manhã, virão nos buscar à noite.”
Referências
FANON, Franz. (2008) Pele negra máscaras brancas. EDUFBA, Salvador.
STOKELY Carmichael & HAMILTON, V. Charles. (1967) Poder negro. Primeira Edição espanhola, Siglo XXI Editores, México.
Entrevista Concedida a Página Comunicação, Arte e Cultura em 01 de maio de 2017. Raoul Peck sobre ‘O Jovem Karl Marx’: “Vou ao passado para compreender a eleição de Trump.” Consultada a 12.06.2017
Rodrigues, T. Cassiano. O começo ou o fim da América. Carta de Baldwin à Angela Davis traduzida e publicada a 25.08.2017 em <http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/12796-o-comeco-ou-o-fim-da-america>