Brasil – 12 de outubro – dia de Nossa Senhora Aparecida
Nessa contraditória oposição que é o Brasil, país que mata preto feito barata e exterminam nossas vidas negras, todo 12 de outubro o país se movimenta para adorar uma santa negra preta retinta!
Os dados dessa aniquilação não deixam dúvidas e comprovam quem morre mais. A cada 10 jovens mortos 7 SÃO NEGROS, mulheres negras têm 3 VEZES MAIS CHANCES de sofrerem de feminicídio, segundo a ONU o critério RAÇA/COR é um eixo de diferenciação negativa.
Diante dessas informações que não se apresentam como um ornamento, mas evidenciam a estrutura racista e violenta da qual nossos corpos de negras e negros estão condicionados, gostaria de saber qual líder cristão católico hoje foi capaz de em sua homilia, diálogo ou sermão falar sobre o extermínio e genocídio do povo preto. Preto igual a santa padroeira deste país estruturado sob a violência do meu dos nossos corpos de negros.
Desde sempre, mesmo antes de eu professar minha fé eu sabia que Aparecida era como eu, preta. Mesmo que naquela época eu ainda não me afirmasse negra. Foi a Aparecida que eu entreguei e entrego minha vida, e nas minhas orações vez e outra eu digo: Mãe que tem a pele preta igual a minha…Mãe você que sabe o que é ser preta…
E ela me entende e eu tenho certeza.
Nesse país que mata preto, ter uma santa preta igual a mim realça a confortável ideia de uma dita igualdade. E isso tem a ver com os inúmeros processos de embranquecimento que marcam o Brasil desde o século 15; tem a ver com a marginalização histórica de toda uma cultura, dos ritos religiosos, das manifestações culturais dos meus, dos nossos corpos de negros.
No último 12 de outubro, eu esperava que alguém em algum momento pudesse trazer o debate do extermínio e genocídio dos corpos de negros, mas entre procissões e festividades nossos corpos marcados pela violência não causam comoção, não causam política. O grito de quem nasceu pra morrer não comove.
É preciso mudar as estruturas, mudar as visualidades, mudar o imaginário que se tem sobre nós. Pois, nesse país que tem uma Santa Preta, a violência destinada a esses nossos corpos de
negros deveria importar, deveria sensibilizar. Deveria afetar!
Cinco jovens mortos com 121 tiros, mais de 12 jovens mortos num bairro da periferia de Salvador e uma mulher negra baleada e arrastada por uma viatura da PM por quilômetros no Rio de Janeiro deveria importar, deveria afetar. Mas nossas mortes não viram justiça, não movimentam a boa rotina do mundo tão pouco causam espanto. No entanto, […] para nós, Cláudias, tudo perde o sentido quando uma mulher negra, moradora de favela, baleada no pescoço, pende um porta-malas e tem o corpo arrastado pelas ruas do centro do rio.
Transeuntes e motoristas buzinam, gritam, acenam, se desesperam, choram, lamentam, porém, os policiais que dirigem o carro não ouvem, não vêem, não param. Não param. Não param. As palavras humanidade, respeito, dignidade, cidadania, vida, direito, sonhos, justiça perdem o sentido. A gente perde as forças, a palavra. A gente míngua e o texto seca diante de mais um caso de horror racista que não comoverá o mundo e ainda terá a dimensão racial esvaziada.[…] tudo perde o sentido. A vida perde a poesia. A condição humana é rebaixada a cada ação policial.
Nossos corpos negros, nossos corpos de negros chocam mais quando não estão servindo de carne barata ou corpo estendido nos jornais que escorrem nosso sangue de preto. Deveria ser um choque para todos nós a um tal ponto que no dia 12/out/2017, comemoração dos 300 anos da aparição de Nossa Senhora Aparecida, não haveria outro tema senão as políticas de vidas negras.
No dia 12 de ouubrot de 2017 me veio à cabeça a obra de Antonio Obá, ATOS DA TRANSFIGURAÇÃO DESAPARIÇÃO OU RECEITA PARA FAZER UM SANTO.
Ele a quem nunca fomos apresentados, mas quem eu conheço pelas obras, me fez pensar sobre tudo isso. Na obra em questão, o artista nu, rala uma imagem de gesso de Nossa Senhora Aparecida, transformando a imagem da santa negra católica em um pó branco com o qual cobre seu corpo de negro.
Seu corpo de negro aparece camuflado como uma capa que borra sua identidade. Nesse dia 12 de outubro, Antonio Obá lançou a mim uma homilia profunda, inquieta e precisa. Em seu sermão silencioso há a certeza de que é preciso falar de coisas invisíveis.
Créditos da imagem: Francisco Moreira da Costa