O progresso da política institucional brasileira ainda é um atraso

Este território, de mais de 8 milhões e meio de extensão, que chamamos de casa e de nosso, é estruturado sob disputas de poder, entre corpos brancos e herdeiros – de capital, que frequentemente também é fruto de exploração. O terreno debaixo de nossos pés não têm dono, mas há grupos que se consideram herdeiros também da extensão territorial brasileira. Nesse jogo de quem tem mais e quem tem menos, há corpos que não participam de disputa alguma. Quem tem terra, tem direitos, e aos não incluídos – desde que o Brasil se tornou Brasil – os direitos são negados.

Por séculos, as populações indígena e africana foram escravizadas. Tiveram suas famílias interrompidas, com familiares e amigos afastados, catequizados, agredidos e assassinados. Os povos originários que estiveram aqui, antes da destruição causada pelo homem branco, assistiram sua história, língua e crença serem dizimadas. Anos depois, os povos negros que foram arrancados de suas terras e jogados no território brasileiro, passaram pelo mesmo, tendo sofrido com tentativas
de apagamento desde o princípio.

Marginalizados, violentados, exterminados. Após tanta violência e crime contra essas populações, o espaço da representação popular – que exprime bem o que é democracia – está sendo, aos poucos e devagar, ocupado também por indígenas e negros.

Desde 1.500, quando iniciou a colonização portuguesa do nosso território, e todos os originários foram designados como índios – por Colombo que considerou ter chegado à Índia, e, enganado, iniciou o hábito de nomear a população indígena de “índio”, costume que, inclusive, permanece até hoje, 523 anos depois –, os povos indígenas e negros vêm sendo subjugados, tratados como categoria inferior. Nos últimos anos, pelo menos no Brasil, as discussões em que se pautam os direitos dessas populações têm tomado mais força.

Ministras Sonia Guajajara e Anielle Franco – Divulgação

A discussão indígena, ainda fortemente desrespeitada, neste ano recebe maior visibilidade com um histórico Ministério direcionado diretamente para a promoção dos direitos dos povos indígenas.

Conforme o documento que detalha a sua criação, a pasta tem como alguns dos objetivos reconhecer, garantir e promover os direitos dos povos originários; proteger a população isolada e de recente contato; e demarcar, defender e gerir territórios e terras indígenas.

O Ministério dos Povos Indígenas, apesar de inovador no Brasil, tem um antecessor internacional. No Canadá, há 56 anos, existe uma precursora pasta – que ora ou outra alterna de nomenclatura, de acordo com o governo vigente — destinada a discutir os direitos dos indígenas.

No país, muitas leis aos povos originários foram regulamentadas ou estimuladas pela pasta. Passa de 80 o número de atos transformados em leis no Canadá, além de programas de assistência social instituídos atendendo às reivindicações da comunidade. Entre esses direitos conquistados, estão, por exemplo, a garantia de acesso à saúde e a condições dignas de moradia, como ter água potável e saneamento básico; o direito à terra e a própria regulamentação de seu uso, passando para a população indígena o poder de criar suas normas de uso da terra e da gestão ambiental, além de outros direitos.

Com passos lentos, e com 56 anos de atraso (e se formos considerar a existência do nosso país, são séculos que compõem esse atraso), no Brasil hoje temos um Ministério dos Povos Indígenas, coordenado pela indígena Sônia Guajajara, e embora seja muito recente, já nos proporcionou a significativa imagem de centenas de garimpeiros ilegais fugindo do território indígena Yanomami, com medo da apreensão programada para ocorrer no local — a qual busca efetivar o objetivo “promover ações de retirada de invasores das terras indígenas”, da pasta. Antes disso, as ações do Ministério nos entregaram as lamentáveis cenas dos corpos indígenas em situação de vulnerabilidade e desnutrição.

A brutalidade da cena justifica a importância de um órgão federal direcionado para os Povos Indígenas: para expulsar/punir invasores, e dar visibilidade para os crimes contra a população originária, assim, demarcando resoluções e impedimentos para a efetivação dos crimes. Com uma indígena no comando do Ministério, as demandas naturalmente são e serão identificadas. Como já ocorreu, com a renomeação da Funai, a qual passou a ser chamada de Fundação Nacional dos
Povos Indígenas, e que está sendo reconstruída, para voltar a atender a população, após quatro anos do desmonte que colaborou para impulsionar e possibilitar as transgressões contra as populações indígenas.

Com uma política de reparação, finalmente temos também um Ministério da Igualdade Racial. Pelo histórico do nosso país, de escravidão e racismo estrutural — ambos não seguem somente na memória histórica, mas no cotidiano em pleno 2023 — a urgência de um órgão federal específico para o assunto já existe há muito tempo. Com a jornalista e ativista pelas causas da negritude, Anielle Franco, o Estado, por meio da pasta ministerial da Igualdade Racial, parece estar tomando o rumo da reestruturação e combate ao crime de racismo, tão naturalizado na sociedade.

No início de fevereiro deste ano, Anielle foi levada, pelo presidente Lula, a uma viagem aos Estados Unidos, para participar e integrar as discussões internacionais sobre o combate à desigualdade racial e social. Conforme a ministra, essa também é uma forma de internacionalmente estabelecer uma política de memória. A criação dos ministérios, e os enfrentamentos que já se prevêem, a partir deles, com mulheres que trabalham — e falam — a partir de suas próprias vivências, no comando dos órgãos, materializa o que é muito discutido na política social: a política feita por meio de pessoas que integram as demandas, e não de pessoas que defendem as pautas, sem vivenciá-las de fato. Quando a porta de entrada na política era tão ínfima que nós não cabíamos lá, lutamos para eleger corpos padrões, que pautassem, ora ou outra, aquilo que defendemos.

São novos tempos, e para chegarmos nele, arrombamos aquela ínfima porta. Hoje cabemos —mesmo que ainda não nos queiram no espaço político —, e cabe também à nós, reconhecer a necessidade de estarmos nós em vez deles. Das nossas pautas, das nossas vivências e existências, somos nós que temos poder de fala e conhecimento. A importância dos Ministérios dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial vai além das ações, chega no imaginário e dele transcende. Mulheres indígenas e negras em cargos de relevância federal instigam a todas nós. É espaço e direito de todas nós. E não há mais tempo para atraso.

Lins Robalo
Rayssa Mambach

Mandata Popular

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