Por Zaíra Pires para as Blogueiras Negras
[soundcloud url=”https://api.soundcloud.com/tracks/87274674″ width=”100%” height=”166″ iframe=”true” /]Mulher, negra, gorda, lésbica e feminista.
Não há como falar de Ellen Oléria sem começar pelo óbvio. Não há como porque essas características, em muitos espaços, precedem qualquer avaliação que se faça sobre ela, seu talento, seu trabalho, sua trajetória. Talvez o fato de ser lésbica e feminista fiquem subentendidos em um primeiro momento, mas ninguém permanece igual quando uma preta gorda adentra o espaço.
Ainda menos quando se trata de uma negra gorda feliz e bem sucedida: “ora vejam só que audácia dessa negrinha, ousar ser feliz e ainda esfregar na cara dos demais. Como se isso fosse permitido a essas pessoas”.
Meu símbolo de resistência e vitória, meu modelo de autenticidade em tempos em que tudo anda tão pasteurizado. Quando fico meio entristecida nesse caminho dolorido de militância, que nem sempre é gentil conosco (muito antes ao contrário), é dela que me lembro, de sua coragem e de sua poesia simples e forte. Penso em como ela não precisou se curvar para acessar espaços de dominação masculina-branca-heterossexual.
Ellen Oléria não nos surgiu com sua participação no programa The Voice Brasil, reality show musical do qual foi vencedora. Por isso vale dizer que, para nós, sua poesia já é antiga. Já faz tempo que ecoa em nossos ouvidos suas músicas autorais sobre sua sobrevivência na infância pobre e ao longo da vida cheia de escolhas corajosas. Sua condição de mulher negra e gorda, um corpo que agride tão audaciosamente as regras hegemônicas, é tema recorrente nas suas canções. Como em “antiga poesia”, música que abre essa postagem, em que Ellen louva as mulheres pretas de luta de vários tempos. Mulheres essas das quais ela faz parte, por cada dia que seu canto e sua escrita resistem e persistem politicamente, por nós, por ela, pelas mulheres que ainda hão de vir.
Para Ellen, toda luta é cotidiana, toda atitude corriqueira é política, é resistência. Ellen é carne dura que aguenta a pancada, se levanta e continua, porque, para nós, mulheres pretas, não há tempo a perder com pequenos sofrimentos. Há que deixá-los para trás e seguir o caminho, permeado de desafios, mas também de delícias que só tem a dádiva de conhecer quem tem os olhos e os ouvidos bem abertos e apurados pela ligeireza que essa vida dá. É uma sobrevivente, que nos empurra todos os dias e a cada dia para mais adiante, com passos firmes, mas sem perder a leveza e a doçura. Não endurece, não se acovarda, não esmorece. Sendo feliz e existindo, faz da sua rotina a sua plataforma. Como nos disse Caio: “não vamos enlouquecer, nem nos matar, nem desistir. Pelo contrário: vamos ficar ótimos e incomodar bastante ainda.”
Isso posto, vou contar uma história breve. Em Agosto, mês em que nós, Blogueiras Negras, participamos da blogagem coletiva pela visibilidade lésbica convocada pelo nosso blog amigo True Love, pensamos em publicar uma entrevista com a Nêga. Mesmo em meio aos preparativos pro casamento (Ellen se casou com Poliana Martins em 12 de agosto), as bonitas nos atenderam com todo o carinho e responderam às nossas perguntinhas impertinentes.
Ficamos com a entrevista na gaveta por semanas, já que na ocasião da blogagem não houve tempo hábil para editá-la com o cuidado que miss Oléria merecia. Mas agora chegou o momento. Nessa semana acontece a 3ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (III CONAPIR) em Brasília. A SEPPIR, secretaria responsável pela organização do evento, convidou as Blogueiras Negras a participarem da conferência e decidimos por Charô Nunes e Maria Rita Casagrande para representar nosso time brocador em terras de Brasília. E para nossa feliz surpresa, Ellen foi escalada para fazer um show na noite de quarta feira, 06, ocasião em que, mais uma vez, essa linda nos atendeu prontamente, com toda a sua delicadeza e elegância.
Muito brevemente, nossa menina nos falou sobre ainda se sentir privilegiada em acessar determinados espaços, a despeito da sua trajetória irretocável e vitoriosa. Temos um breve vídeo do seu sorrisão acolhedor que fala de tudo quanto é assunto sem perder a majestade.
Confiram conosco a íntegra da entrevista que nos foi concedida no último mês de setembro. Vejam como, mesmo nos terrenos mais áridos, ela pisa com a mesma delicadeza e classe da sua poesia combativa, que colore de arcoíris até o mais ordinário dos dias e desconstrói até as nossas certezas mais absolutas, cheias de verdades universais intolerantes e umbiguistas. Seu canto curativo e suas letras exatas são carregados de sutileza avassaladora e inescapável, que confronta os mais convictos com provocações sutis e geniais.
Enquanto isso, ouçam mais um som da Nêga.
[soundcloud url=”https://api.soundcloud.com/tracks/86933980″ width=”100%” height=”166″ iframe=”true” /]Blogueiras Negras: Qual o seu envolvimento com o feminismo? Com o movimento negro? Com a militância LGBT?
Ellen Oléria: acredito que toda forma de política eh feita nas escolhas do dia-a-dia. o cotidiano eh nosso piso ideológico mais transparente. assim milito diariamente. sou militante da vida. sou ativa no mundo.
BN: Ao assumir sua sexualidade publicamente, e manter-se “fora do armário” mesmo depois de se tornar conhecida em todo o país, você se torna símbolo e inspiração para diversas meninas e mulheres negras e lésbicas. Você tem consciência disso? Nos fale sobre o assunto. Como é ser lésbica, negra e gorda frequentando espaços que são tão comumente dominados pela branquitude, pela heteronormatividade e por padrões eurocêntricos de beleza e magreza?
EO: quero saber quais lugares não o são. facilmente devolveria essa pergunta pra qualquer outra mina negra. rs
tenho desafios cotidianos como toda gente. e acredito que me manter na rota dos meus desejos me fortalece pra superar cada um desses desafios.
lugares vazios são ocupados por ideologias dominantes. precisamos nos responsabilizar por nossas representatividades.
BN: Você teve uma fase de se descobrir lésbica? Ou isso sempre foi claro? E a reação da família e amigos? E como se assumiu? Nos conte como foi esse processo de descobrir, aceitar e assumir.
EO: pra mim amar sempre foi como brota o amor: natural e verdadeiro. as vezes doloroso e muitas vezes luminoso.
jah gostei de alguém que não gostou de mim. depois gostei de alguém que me quis também. alguém gostou de mim, mas não da maneira que me interessava partilhar.
beijei, fiz amor, namorei, casei, me divorciei.
tive o coração partido e me apaixonei pra voltar a crer no amor.
todo mundo tem um tempo pra viver encontros e desencontros. pra mim foi assim tb. por mais convicta em seus rumos afetivos que a pessoa seja, não acredito que alguém tenha clareza todo tempo em seus sentimentos. se fosse assim não teríamos aquele friozinho na barriga, ou as mãos suadas diante de um amor. soh a dúvida, a hipótese, pode nos levar a uma tese.
aceitar? assumir? jamais usaria essas palavras pra falar do meu amor.
meu amor foi bem vindo porque foi único e especial. e diante disso eu soh poderia querer partilhar com o mundo!
BN: O casamento homoafetivo é uma conquista recente. Para você, qual o significado dele?
EO: disse esses dias num texto e vou tomar a liberdade de reescrever aqui:
nosso casamento é a profissão pública da fé que depositamos mutuamente nesse encontro. eh a conclamação de que unimos nossos clãs e agora fazemos parte da mesma linhagem. eh constituir um conceito integral de família, não só porque partilhamos as provisões, mas também os cuidados legais uma sobre a outra. eh a confirmação e bênção de quem partilha comigo e com ela a vida em alianças de afeto. eh a garantia de que somos livres para construir memória juntas.
BN: Você se tornou vegana depois da sua participação no The Voice. O que motivou essa escolha?
EO: um desejo, uma decisão e um anjo vegano pra ajudar no desafio.
o propósito me deixou focada e me deu novas perspectivas.
BN: Sobre sua carreira, nos conte brevemente como se deu sua participação no The Voice Brasil. De onde veio a ideia de se inscrever no programa?
EO: algumas (muitas) pessoas entraram contato comigo pra falar sobre o projeto. e depois de avaliar as possibilidades e riscos decidi topar a empreitada.
fiz minha inscrição e tive a alegria de passar por várias fases até o encontro com o grande público na final.
BN: Gostaríamos de um comparativo entre a carreira independente e a nova fase, tendo contrato com uma grande gravadora.
EO: continuo trabalhando bastante, como sempre fiz. agora com mais acessos a outros tipos de mídia. continuo experimentando o som e me arriscando em iniciativas que acredito terem alguma força.
BN: Quais são seus planos profissionais a médio e longo prazo?
EO: quero viver e curtir muito esse momento.
tendo a oportunidade de musicar e ser levada pela canção onde meus pés puderem alcançar.
Mulher preta de fé, luta e generosidade, seu nome é poesia e nós estamos com você, a cada dia e em todos os dias!
Que as deusas e deuses todos abençoem sua caminhada, tão preciosa e urgente!
Escrevo esse texto da cidade de Belo Horizonte, emocionada, ouvindo Ellen no aparelho de som, com o encarte do CD aqui nas mãos, lendo e relendo sua dedicatória feita para mim dia 06, logo antes do show, em que ela me chama de ‘aliada’, de ‘mana’. Pensa numa pessoa abobalhada. Sou eu!