Esse texto foi escrito em janeiro de 2017. Havia acabado de ler Quarto de Despejo e estava [permaneço] impactada pela literatura de Carolina. Foram vários socos no estômago, choro, marcas, sorrisos, angústias. Tudo isso enquanto devorava sem sentir as palavras dessa doce e inteligente escritora.
Escrevi querendo escrever como ela. Direta e reta, firme e emotiva tudo junto e ao mesmo tempo. Não conseguirei, óbvio, mas em poucas palavras deixo a minha profunda devoção e admiração por essa literata fina, que inspirou e inspira este blog. Que é espelho e exemplo pra muitas das autoras deste site, que é uma das matronas e cabeças das Blogueiras Negras.
A academia não está preparada para Carolina, assim como não está preparada para nossas novas epistemologias, nossos novos jeitos de pensar, escrever, produzir. A velha academia assim como seus velhos homens brancos não estão a altura das nossas mulheres, das nossas experiências e escrevivências [Salve Conceição!].
À Carolina Maria de Jesus nossa reverência e saudação. Nossas humildes palavras, gestos e inspirações. À Caronlina Maria de Jesus nosso respeito de mulher preta, nossa reverência de ancestralidade e de mestra. À Carolina Maria de Jesus nosso infinito agradecimento!
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Adaga.: espada curta, de perfuração, com duplo corte de têmpera forte, serrada ou compacta. Era usada principalmente para aparar os golpes de espada dos adversários, por exemplo, em duelos. Enquanto que a espada era usada na mão direita, a adaga era usada pela esquerda e tinha também, por vezes, a função de destruir a ponta da espada do adversário, já que a sua têmpera era mais forte – além de que, por vezes, o seu gume era serrilhado.*
Dois lados.
A escrita de Carolina corta, fere. Como golpe certeiro de quem sabe manipular um alfange.
Eu nunca tinha lido de fato Carolina Maria: passei as vistas em frases, li artigos sobre e textos incríveis aqui nas Blogueiras Negras, mas até então não tinha tido acesso a um livro seu. Foi quando no final de 2016 dei de cara com uma edilção de 1970 de QUARTO DE DESPEJO. Uma leitura tão minha, um jeito tão avassalador de escrever que não demorou de ser devorado. Que poder!
O que Carolina Maria faz com sua escrita é o tempo inteiro rasgar seu peito enquanto entoa músicas pra embalar a dor. Uma escrita-poesia que brota de um terreno árido como é o da favela do Canidé na década de 50. As dificuldades narradas em meio ao céu azul e a lua imensa.
Um jeito todo especial de narrar as nuances, as sombras que uma vida de luta, trabalho e vontade de viver faz. Carolina Maria através da sua escrita diz pra gente que é possível apesar de toda adversidade, da falta de recurso e abundância de nada – é possível fazer com o que se tem. E no caso dela, canetas, papéis, trabalho e sonhos!
A escrita que equilibra a frieza de enfiar a adaga e a precisão de removê-la como quem afaga.
Dois gumes!
O frio e a dor de passar mais um dia com fome. Aliás, essa é a palavra que mais se repete no livro. Não dá pra imaginar como se sente uma pessoa que a tem de forma constante sem saber se irá saciá-la, assim como é impossível ficar imune a dor e a luta pela sobreviviência de Carolina. Mas há sonhos! Como uma alfange, a escrita de Carolina rasga tristezas e desenha desejos; Do amor, do livro publicado, de uma casa de alvenaria, sonhos de mulheres negras como nós. Do alívio da fome de forma permanente ou ainda da vontade de proporcionar aos filhos o melhor das coisas, da vida. Corte!
De maneira repentina ela te leva e traz como num doce embalo de samba triste, mas que faz sambar. Rápida e por isso mesmo doída, a maneira de Carolina escrever paralisa e te faz não querer mais sair das páginas do livro:
“Dizem que o Brasil já foi bom. Mas eu não sou da época do Brasil bom… Hoje eu fui me olhar no espelho. Fiquei horrorizada. O meu rosto é quase igual ao de minha saudosa mãe (…)”
Dois lados da mesma arma, duas faces da mesma lâmina que corta igual os corações agoniados e ansiosos por histórias de mulheres como nós – ou menos parecidas. Quarto de Despejo com certeza é o legado das dores e sonhos agudos e ressonantes das mulheres negras brasileiras e é nesse legado que queremos deitar, fazer reverência e com ele aprender.
O livro é o grito de mulheres negras ecoando dor e desejo. Palavras como lâminas de uma adaga forjada na vida de trabalho, de mulher negra e filhos, dos sonhos possíveis de uma vida melhor; Adaga afiada, de fino corte no coração de quem lê, chora, ri e pensa: como resistimos!
A sua escrita nunca morrerá, Carolina. Seu legado registrado, refalado, reescrito, porque sabemos o quão forte era o seu sonho e por isso mesmo ele não envelhece nem se esquece. Sua memória é nossa memória, e a literatura antes desconsiderada será sempre exaltada em cada sarau, em cada texto, em cada blog de mulher negra escritora.
Jamais te negaremos e passaremos adiante quem foste e o que significou para nós te ler e ser golpeada pela sua palavra-adaga, que apesar de cortar, afaga e nos traz a possibilidade de ser quem somos, escrever do jeito que quisermos e por isso mesmo saber que somos capazes de desenhar em papéis de pão ou de ofício um mundo melhor, sob a nossa perspectiva de liberdade.
Obrigada, mestra empunhadora das palavras afiadas!
*wikipedia