Ao iniciar a leitura do livro “O Quarto de Despejo” confesso que não entendia muito bem o título do livro, mas com o passar da leitura ficou claro o motivo pelo qual a autora optou por ele. Ela considerava o ambiente em que vivia, a favela, como um quarto de despejo, lugar onde era despejado tudo o que não era útil na sociedade. Quando ela ia ao centro, isso ficava bem claro, pois ela dizia que o centro era um palácio e ao retornar para casa ela se sentia em um quarto de despejo.
Nesse quarto de despejo viviam todos aqueles que eram marginalizados pela sociedade, aqueles que lutavam diariamente para sobreviver. Ali havia muitos nordestinos que vieram para São Paulo em busca de oportunidades e encontraram as portas fechadas, sendo obrigados a viver na favela com seus familiares. Lá havia muita confusão, eles brigavam, bebiam, passavam fome, sofriam.
Durante a leitura desse livro é possível perceber como ser pobre nos anos de 1950 era um sofrimento diário. Carolina se levantava todos os dias e saía para buscar água e para catar papel em busca de dinheiro para alimentar seus filhos, alguns dias com sucesso, outros sem. Ela muitas vezes se alimentava porque alguma boa alma lhe ajudava.
Ela observava o ambiente em que vivia de uma forma muito perspicaz e tentava compreender tudo o que se passava, buscando ajudar os vizinhos, defendendo-os quando necessário e apartando brigas. Sempre que acontecia alguma confusão ela ligava para a polícia e tentava ajudar a solucionar os problemas.
Ela não compreendia como podia haver pessoas tão ignorantes como alguns de seus vizinhos que batiam em seus filhos e até mesmo jogavam fezes neles. Ela também dizia que bastava uma criança ir morar na favela que logo se modificava, tornando-se mal educada.
Apesar da labuta diária em busca de dinheiro para alimentar seus filhos e do ambiente hostil da favela, ela não se deixava levar pelos vícios, mas buscava estar sempre lúcida para cuidar de si mesma e de seus filhos. Ela apreciava muito a educação e disse que seus melhores amigos eram seus livros. Ela mantinha firme a esperança de que seu livro um dia seria publicado.
Lendo o diário de Carolina, temos a impressão de que ela é uma amiga íntima, nos preocupamos com ela e acompanhamos de perto seu dia a dia, ficando contentes quando ela consegue comprar sapatos para sua filha não andar descalça e quando ela consegue comprar carne, arroz e feijão, alimentos de luxo na favela segundo ela nos diz. Ficamos também tristes quando ela é maltratada por seus vizinhos e quando passa o dia todo na rua catando papel, mas não consegue o suficiente para se alimentar, ficando doente.
Carolina Maria de Jesus é um exemplo de resistência, lutou contra a fome e permaneceu firme em um sistema opressor. Não se casou novamente depois que teve os 3 filhos porque não queria homem em sua casa, dizia que um homem iria se incomodar com o fato de ela ler todos os dias, de andar pra cima e pra baixo registrando em seu diário os acontecimentos da favela. Ela era bem politizada e acompanhava de perto a atuação dos políticos, criticando-os por aparecerem na favela somente para angariar votos e depois esquecer que seus habitantes existem.
Ela também conviveu com o preconceito tanto na comunidade em que vivia quanto em outros espaços públicos, em que percebia que sua presença era indesejada. Muitos se incomodavam com suas roupas sujas e com seu cheiro. Quando ela ia buscar a pensão de seu marido, que poucas vezes ele depositava, via muitas outras mulheres sofrendo por não receber um tostão de pensão.
É interessante perceber como esse livro ainda é atual e nos ajuda a refletir sobre a condição de uma mulher negra naquela época. Percebemos que a sociedade avançou em alguns aspectos, mas ainda continua deixando a desejar em outros. Hoje há mais oportunidades de estudo e de trabalho, mas a representatividade da mulher negra nas universidades e nos postos de trabalho mais altos ainda é baixa. Há uma tentativa de mudança desse cenário, mas ainda muito tímida.
Hoje a mulher negra não esbarra na pobreza extrema, mas o racismo e o machismo a impede de caminhar completamente livre. Ainda há amarras sociais que tentam impedir sua ascensão social. É preciso continuar a luta em prol da igualdade de direitos e a cobrança por políticas públicas que atendam às necessidades da população negra, contribuindo para ampliar sua inserção no mercado de trabalho e em ambientes universitários.
Carolina Maria de Jesus é o exemplo de uma mulher negra que não se deixou abalar pelo sistema e conquistou seu maior desejo: publicar seu diário. Muitas pessoas leram sua história apenas para saber como era sua vida na favela, mas não perceberam a importância de sua figura. Ela era uma mulher forte e justa, não aceitava nada de errado e muitas vezes fazia o papel de defensora da comunidade. É assim que Carolina deve ser vista, como uma mulher forte que lutou diariamente contra o machismo, o racismo, a fome, a tristeza, mas que superou tudo isso e educou seus filhos, sem contudo esquecer de si mesma, alimentando-se de seus livros, como ela mesma disse: seus melhores amigos.
Nós, mulheres negras, já alcançamos alguns direitos, mas ainda faltam muitos. Não cessemos de afirmar diariamente nossa luta por condições melhores de estudo, trabalho e lazer, principalmente na periferia. Produzimos arte, mas muitas vezes ela é valorizada somente entre os nossos. Produzimos saber, mas muitas vezes eles ecoam apenas nas paredes de nossas casas. Produzimos história diariamente, mas muitas vezes as que preferem contar sobre nós são aquelas em que somos vítimas, apenas um número, uma estatística. Vamos fazer nossas vozes ecoarem e exigir uma representação positiva.
Imagem destacada: Fanpage Carolina Maria de Jesus